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A matemática dos pedreiros: Uma reflexão freiriana

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Dalvit Greiner de Paula

Professor na Educação de Jovens e Adultos desde 1995 em Belo Horizonte, licenciado em História com Mestrado pela UEMG e Doutorado pela UFMG em História da Educação

e-mail: dalvit.greiner@gmail.com

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Jane Martins de Paula

Professora Alfabetizadora desde 1993 formada em Magistério pelo IEMG; Licenciada em Língua Portuguesa pelo CEFET-MG e em Arte pela UEMG. Atuou na Educação de Jovens e Adultos em Belo Horizonte e com Língua Portuguesa para estrangeiros no Centro Cultural Brasil-República Dominicana, em Santo Domingo-RD.

e-mail: janemp@edu.pbh.gov.br

A ideia de que Paulo Freire teria criado uma metodologia de ensino é sempre intrigante. E, claro, verdadeira! É tudo uma questão de aplicação, na medida em que o professor ou professora pode aplicar uma cartilha ou tabuada qualquer. Mas, uma cartilha ou tabuada qualquer, se não forem questionados, nunca levarão à libertação do oprimido, “[…] afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada” (FREIRE, 1987, p. 19). Existem tantos métodos de ensino – e aprendemos tão pouco deles na Universidade – que nossa desconfiança se torna natural. Talvez pela naturalidade e obviedade do ensinar e aprender que aparentemente vivemos, uma vez que não vamos à escola para aprender a caminhar ou falar.

Em que, então, estaria a diferença? Estaria na nossa capacidade freiriana de perceber que jovens e adultos são “sujeitos pedagógicos” (ARROYO, 2012, p. 27) capazes de ensinar e aprender com e em suas ações, “[…] ficando atentos a suas presenças e a seus movimentos sociais e culturais, a suas práticas de liberdade e de recuperação da humanidade roubada” (ARROYO, 2012, p. 27). Parece algo abstrato, mas quando exercitamos nossa capacidade de abstração, por meio de uma leitura crítica, é também o momento em que atingimos o tempo da nossa consciência, quando descobrimos o nosso lugar no mundo. E, o que mais nos interessa: quando atingimos o tempo dessa abstração que é a liberdade, a utopia? É essa descoberta, é a consciência de que o conhecimento da liberdade, aparentemente algo abstrato, que nos coloca diante da possibilidade da mudança. Ou seja, jovens e adultos são capazes de ações sob todos os aspectos. São, portanto, protagonistas de suas vidas, da vida comunitária.

Paulo Freire não é apenas o nome de um homem que criou uma metodologia e nem o método Paulo Freire pode ser assim considerado se servir apenas para a alfabetização de adultos. Um método precisa ser mais amplo, por isso, precisamos incluir nesse processo de alfabetização, em paralelo a este, o processo de numeramento, ou seja, as competências e habilidades para pensar, compreender e registrar o mundo também na linguagem matemática. É, pois, o desejo e o resultado de pensarmos “[…] a Educação Matemática como parte dos esforços para se ampliarem as possibilidades de leitura crítica do mundo” (FONSECA, 2021, s.p.). Essa junção entre letras e algarismos para uma melhor leitura do mundo se torna ideal quando aplicada. Nesse sentido, a leitura do máximo de signos é fundamental para o raciocínio.

Thomas Hobbes (1588-1689), lá no Leviatã, capítulo V – Da razão e da ciência, afirma:

Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte, para o nome da outra parte. […] Em suma, seja em que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, há também lugar para a razão, e onde aquelas não tiverem o seu lugar, também a razão nada tem a fazer (HOBBES, 1997, p. 51).

Ou seja, letras e algarismos são símbolos que possuem as mesmas funções: representar a realidade que nos cerca. Precisamos, então, aprender a lê-los, adicionando e subtraindo um ao outro, de um e outro. Na feliz conclusão de uma estudante de Angicos, da mesma maneira que “[…] uma parede é feita de tijolos, um ao lado do outro, assim também se escrevem as palavras” (LYRA, 1996, p. 40), construindo o texto, expressando o pensamento e melhorando o entendimento da realidade. A realidade que o estudante consegue ler oralmente, pois não existe analfabeto oral, é de difícil transposição para a abstração matemática. Por isso, a Matemática, em geral, é vista como um problema, pois “[…] ela é ensinada sem a preocupação em estabelecer vínculos com a realidade, nem com o cotidiano do aluno” (KLÜSENER, 2004, p. 178). Na nossa crença de professoras e professores, isso, portanto, seria um problema de leitura, não de Matemática, como, em geral, se supõe.

Professoras e professores de adultos, principalmente de Matemática, deveriam tomar a leitura como estratégia privilegiada da atividade de ensino, na medida em que a leitura de tudo o que nos cerca, ou seja, do mundo, deve ser o principal objetivo a ser alcançado pela escola. Daqui, concluímos que a dificuldade que as pessoas têm, em qualquer idade, não é com a Matemática, mas com a leitura científica e acadêmica, quando não há a necessária mediação com a leitura de mundo que trazem da vida. Ou seja, “[…] se os educandos são outros à docência, os docentes poderão ser os mesmos? Questões desafiantes para a educação popular e escolar” (ARROYO, 2012, p. 26). Outros no sentido de que não são crianças, com vidas e experiências maiores. Isso significa, da parte das professoras e dos professores, aprender uma nova metodologia? Não necessariamente, mas, seria possível reiniciar um processo abortado, atualizando-o.

Resgatar e rememorar – e até mesmo reiniciar – o fazer infantil no adulto na tentativa de criar competências e habilidades que possivelmente não foram criadas ou foram esquecidas na atual profissão em que cada um ganha a vida. Em nossa experiência cotidiana, ainda encontramos adultos com problemas de lateralidade, principalmente quando lhes é proposto um exercício lúdico de matemática junto com a geografia, no pátio da escola, utilizando direções e sentidos. Esses alunos apresentam dificuldades para a conclusão da atividade. Aos estudantes do nível da certificação (segunda etapa), poderiam ser incluídos os ângulos e os pontos cardeais. Também encontramos problemas de proporção na construção de plantas baixas e maquetes, nesse caso, da própria casa em que moram.

É importante destacar que adultos ainda acreditam que o aprendizado é feito somente a partir do registro científico que a professora ou o professor realizam no quadro à sua frente, e registrado no seu caderno. Daí a importância de lhes reafirmar, constantemente, que é a prática de cada um que gera um conhecimento coletivo. Assim, nas palavras de Paulo Freire, registradas no livro As quarenta horas de Angicos, é preciso “[…] acreditar que a prática primeiro gera saber; segundo, que o saber que a prática gera não basta, porque precisa saber-se e, para saber-se, o saber da prática exige um outro que seja capaz de aplainar o saber da prática e dar nome a ele (CURY, 1996, p. 43). É dessa forma, pois, que surge a teoria, o conhecimento científico de algo que se conhece na sua particularidade exercida na prática.

Uma possibilidade para a ampliação desse raciocínio: nossa primeira percepção de que todos que vão à escola têm uma casa. O poder público ainda não conseguiu disponibilizar uma escola para pessoas em situação de rua, por exemplo. Os sem-teto devem se integrar, forçosamente, à escola daqueles que têm teto. Dessa maneira, o Estado obriga o cidadão a ter um endereço, uma casa, para então acessar a escola. A casa se tornaria o objeto gerador de raciocínio matemático: seja na sua falta, na sua pequenez ou, até mesmo, na sua grandeza. A casa, ou o desejo de ter uma, é uma palavra geradora para muita discussão dentro de uma sala de aula, principalmente para a Matemática, que, em geral, fica alheia a muitas discussões.

Na Escola Municipal Josefina Souza Lima, iniciamos nossa discussão sobre a quantidade de habitações no Brasil. A partir das informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística fomos ler as tabelas e gráficos. Aprender a ler um texto em forma de tabela é, de certo modo, fácil. Mas, e quando o texto é uma célula com um número dentro? A quantidade de casas no Brasil abre a discussão: tem casa para todo o mundo? Por que não temos casa para todos os brasileiros? Aqui entram novos números: área das habitações, aluguel e salário. Para os adultos, isso demonstra uma dificuldade prática de conciliação de opostos. Em Matemática, não existe uma equação que equilibre tais valores, pois as necessidades vão muito além dos salários. É dessa impossibilidade que a discussão caminha para a redução do aluguel e até mesmo para eliminá-lo. Percebe-se que a Matemática não aponta solução para tudo. Algumas são essencialmente políticas.

Essa eliminação do aluguel de uma casa passaria não apenas pela luta para a conquista de uma casa pronta, mas também pela aquisição de saberes e práticas para a sua construção. Isso nos colocaria diante de outra preocupação: o desemprego. Percebemos que o desemprego assola, em primeiro lugar, a indústria da construção civil, retirando do trabalhador mais explorado o seu acesso mínimo à moradia, que é a construção do barracão, mesmo na favela. Torna-se para nós, então, uma preocupação “[…] com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses” (FREIRE, 1996, p. 131), ou seja, daqueles que são permanentemente disponíveis no mercado de trabalho, capazes que são de acumular saberes úteis à comunidade, mas que são explorados pelo capital.

Dessa forma, percebemos que a construção de uma pequena casa se tornaria o lugar de exibição do conhecimento matemático popular não acadêmico, porém bastante sofisticado. Construir uma casa significa disponibilizar “[…] saberes socialmente construídos na prática comunitária” (FREIRE, 1996, p. 30). Assim, o que propusemos para usar o método de Paulo Freire foi entender os aspectos que envolvem a casa e a política de habitação que temos no Brasil.

Durante a discussão política, vem a necessidade de evocar os números, no entanto estes vêm com o alerta de que números também são manipuláveis e nem sempre exprimem a verdade sobre determinado assunto. Dessa maneira, para além das tabelas e gráficos do IBGE, é muito importante ouvir as pessoas e avaliar, em que medida, os números ajudam a entender a realidade que nos cerca. É necessário também pensarmos na prática do numeramento em sala de aula.  Como conferir valor àqueles números e equações que fazem parte do aprendizado, aproximando-os da realidade que circunda os estudantes, a escola, a comunidade?

Assim, voltamos aos rabiscos da casa, à planta baixa que nunca foi desenhada, apesar de as mudanças ocorrerem primeiro na cabeça daquelas mães e pais necessitados de mais espaço ou de reorganizar o mesmo espaço. Vivemos num mundo tridimensional, o que dificulta um regresso ao mundo bidimensional da cartografia – outro gênero textual – para provocar o entendimento da realidade. A casa não se desenha, faz-se cotidianamente. Daí o fato de que, raramente, projetam no papel um novo cômodo ou uma readequação do espaço doméstico. O mundo bidimensional de uma planta baixa, reduzida, se torna uma abstração de difícil tradução da realidade tridimensional, por isso, a dificuldade no aprendizado das proporções.

Na outra ponta, não é difícil para um pedreiro – ou mesmo alguém que não seja um pedreiro ou servente – compreender a bidimensionalidade de um piso cerâmico ou de um outro piso qualquer. A percepção da bidimensionalidade no piso encontra-se no seu formato inicial, enquanto da casa como um todo, não.

A experiência do olhar é que torna o aprendizado significativo. A bidimensionalidade é sentida, pois está inserida no campo de visão do estudante. É o espaço disponível para a sua casa. É preciso, então, levantar essa área bidimensional para o entendimento das paredes. Tijolos são pequenas áreas que serão somadas – ou multiplicadas – para que se construa uma área perpendicular ao chão. O conceito de área é entendido na horizontal. Na maioria dos casos observados, a verticalidade – ou o prumo – é um conceito difícil na medida em que no papel tudo é horizontalizado na folha do caderno.

Figura 1: Mapa mental “A matemática dos pedreiros”

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Uma história. Perguntamos ao senhor Nelson, 65 anos, como fazer para acertar o esquadro de um marco que seria assentado na parede sem o uso da ferramenta. O senhor Nelson foi até o quadro e aplicou o Teorema de Pitágoras. Perguntei onde aprendera aquilo e a resposta foi surpreendente: meu pai. Seu pai estudou ou… Não concluímos a pergunta. Ao que ele respondeu: meu pai era analfabeto. Só sabia fazer algumas contas de cabeça.

Ora, uma boa porta mede 200 cm de altura e 80 cm de largura. Como calcular o seu esquadro seguindo o Teorema de Pitágoras? Segundo o senhor Nelson, a diagonal sempre será 215 cm. Caso não seja esse valor, o marco estará fora do esquadro. O marco deveria ser travado com essas medidas: 200 de altura, 80 de largura e 215 na diagonal. Ele guardava esses números na cabeça.

Jonas, 42 anos, propôs uma outra solução que aprendeu com um colega de profissão: um marco tem que ter as laterais iguais, mas ele não se fecha ficando aberto embaixo, formando uma letra “U” de cabeça para baixo. Bastava fechá-lo embaixo com a mesma medida da parte horizontal superior. Daí, concordamos com Paulo Freire: “[…] é a capacidade que o homem tem de perceber esse mundo exterior, e os elementos que estão no seu contexto”, (CURY, 1996, p. 24) que o fazem buscar soluções para os seus problemas, sejam eles técnicos ou sociais. Assim, amizades e experiências diferentes davam soluções diferentes a um mesmo problema, demonstrando a multiplicidade da aprendizagem. Poderíamos, então, desenvolver com os estudantes dois conceitos: o Teorema de Pitágoras e os segmentos de reta paralelos. Dessa maneira percebemos que

[…] o processo pedagógico inclui, portanto, o uso explícito de ideias alternativas, sua crítica e a avaliação de seu domínio. No entanto, ele não inclui a supressão das ideias alternativas, nem eleva ou reduz o status da concepção de uma pessoa […]. Ninguém sobrevive sem senso comum (MORTIMER, 2011, p. 177).

Para concluir, podemos pensar que o processo de reconhecimento e legitimação do conhecimento insere o papel da professora e do professor no encontro do registro científico com o conhecimento popular. Nenhum tipo de conhecimento é desprezível ou pode ser desprezado com a condição de que deve ser interrogado em sua cultura, sua integridade e sua factibilidade. Inserido nesse conhecimento, também se encontram outras e novas formas de aprendizagem a que nós, professoras e professores, devemos estar atentos. Como Arroyo (2012) propõe:

Paulo Freire construiu sua reflexão e prática educativa, referida sempre aos novos sujeitos sociais, políticos, aos movimentos de jovens, de trabalhadores e camponeses dos anos de 1960/1970, aos movimentos culturais e de libertação dos povos da África e da América Latina. O mais importante na pedagogia da prática da liberdade e do oprimido não é que ela desvia o foco da atenção pedagógica deste para aquele método, mas dos objetos e métodos, dos conteúdos e das instituições para os sujeitos. Paulo não inventa metodologias para educar os adultos camponeses ou trabalhadores nem os oprimidos, mas reeduca a sensibilidade pedagógica para captar os oprimidos como sujeitos de sua educação, de construção de saberes, conhecimentos, valores e cultura. Outros sujeitos sociais, culturais, pedagógicos em aprendizados, em formação (ARROYO, 2012, p. 27).

É a essa reeducação da sensibilidade pedagógica que devemos nos render para reafirmar, cotidianamente, nosso fazer de professoras e professores.

  

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel González. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

FONSECA, Maria da Conceição Ferreira Reis. Glossário Ceale: Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita para Educadores. Disponível em http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/numeramento. Acessado em 16 de julho de 2021 às 17h 27min.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. edição. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1996.

HOBBES, Thomas. Da razão e da ciência, in: HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástica e Civil. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1997, p. 51-57. ISBN: 85-351-0995-1.

KLÜSENER, Renita. Ler, escrever e compreender a matemática, ao invés de tropeçar nos símbolos, in: NEVES, Iara Conceição Bittencourt; SOUZA, Jusamara Vieira; SCHÄFFER, Neiva Otero; GUEDES, Paulo Coimbra; KLÜSENER, Renita. Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre, RS:    UFRGS, 2004, p. 177-191. ISBN: 85-7025-745-7.

LYRA, Carlos. As 40 horas de Angicos: uma experiência pioneira de educação. São Paulo, SP: Cortez, 1996.

MORTIMER, Eduardo Fleury. Mudança conceitual ou mudança de perfil conceitual, in: LOPES, Eliana Marta Teixeira; PEREIRA, Marcelo Ricardo (Org.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2011, p. 165-192. ISBN: 978-85-7041-923-1.

Imagem de destaque: Maison en cours de construction avec Inkarakara – Author: Bernard mu

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