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Poucos segundos e uma nova vida: trajetórias de uma pessoa com paralisia cerebral

Geraldo Toledo de Paiva Junior

Geraldo Toledo de Paiva Junior

Geraldo Toledo de Paiva Junior é jornalista e especialista em Gestão de Instituições Federais de Ensino Superior. Atua há 12 anos como Assistente em Administração na UFMG, dez deles na FAE, e cursou os ensinos fundamental e médio em escolas públicas. Tem paralisia cerebral, com comprometimento da coordenação motora de braços e pernas.

E-mail: gjunior.jornalista@gmail.com

Pessoa com paralisia cerebral, com comprometimento da coordenação motora de braços e pernas, mas sem déficit cognitivo. A chegada até esse diagnóstico foi longa.

Nascido no interior do estado de Tocantins, na cidade Porto Nacional, no início da década de 1980, com pouco mais de 6 meses de gestação, vindo de uma gravidez de risco. O caçula de 4 irmãos, filho de pai militar – razão pela qual morávamos no Tocantins, mesmo meus pais sendo mineiros – e mãe do lar. Após um parto difícil, um erro de enfermagem na incubadora: o tubo de oxigênio foi parcialmente obstruído por alguns segundos.

A falha, para um bebê de menos de sete meses, prematuro extremo, teve sequelas que de imediato não foram percebidas, muito pela falta de estrutura do lugar, que contava com apenas um hospital e muito distante dos grandes centros. Mas não se passaram muitos meses para que se percebesse que as dificuldades iniciais não tinham passado, elas eram apenas o começo da longa batalha que eu e minha família travaríamos até o diagnóstico e posteriormente na adaptação ao cotidiano.

Não firmar o pescoço, não assentar, foram os primeiros sinais de que algo não ia bem. Devido à falta de infraestrutura do lugar, foi necessário deslocamento para Minas Gerais, terra natal de meus pais. Por fim, em São Paulo, graças à intervenção de uma prima médica, o diagnóstico de paralisia cerebral com comprometimento da coordenação motora de braços e pernas, mas sem sequelas cognitivas, chegou após uma tomografia.

Esse diagnóstico, foi apenas o ponto de partida para o que viria a seguir, com os exames embaixo do braço, voltamos a Porto Nacional, e por lá começamos os tratamentos necessários para minha recuperação, na medida do possível. Logo percebemos que naquela cidade isso não seria possível, a distância dos hospitais, das clínicas de fisioterapia e dos médicos especialistas inviabilizaria qualquer evolução.

De malas prontas, voltamos a Minas Gerais, tudo isso proporcionado pela inauguração do recém-construído Aeroporto Internacional de Confins, lá estaríamos perto da família, dos amigos e dos tratamentos necessários.

Em 1985, quase um ano após nossa chegada em Lagoa Santa (MG), já com acompanhamento da equipe do hospital da Aeronáutica de Lagoa Santa, decidiu-se pela realização de uma cirurgia nos tendões das pernas, que eram comprometidos em função da paralisia, o que me possibilitaria andar e realizar demais atividades com mais autonomia. Entretanto, como desafios são uma constante em minha vida, a cirurgia foi um fracasso, provocando um superalongamento nos tendões e me deixando sem a possibilidade de ficar em pé.

Assim cheguei à escola, engatinhado para me locomover e já com um ano de atraso na idade escolar. No primeiro ano frequentei uma Escola Estadual, onde, apesar de ser muito bem acolhido, não tive como desenvolver minhas capacidades, pois o corpo docente e a infraestrutura não possibilitavam minha adaptação, nem a realização de atividades junto à classe. A falta de capacitação dos professores, as turmas cheias, e o pouco contato com pessoas com deficiência contribuíram para a minha não adaptação.

Paralelamente a isso, também frequentava a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), para atividades de terapia ocupacional e acompanhamento psicológico. Em certo momento a psicóloga consultou minha mãe sobre a possibilidade da minha transferência para uma escola particular que estava sendo criada por ela, local que possibilitaria à profissional um acompanhamento mais próximo e poderia melhorar minha inserção no ambiente escolar. Como minha coordenação motora naquele momento não permitia o manuseio de lápis, ou outros instrumentos tradicionais de escrita, a escola particular possibilitou a utilização de técnicas que permitiam a introdução à escrita, mas de maneira não convencional. Entre elas estavam: A utilização de cubos com letras, para montagem das palavras e conhecimento de sílabas, tampas de caixa de sapato com farinha, para possibilitar o treinamento da escrita de palavras e conhecer os formatos das letras, colagem, pinturas, desenhos com linhas pontilhadas, dentre outras técnicas utilizadas.

Já nessa época começaram os problemas que hoje são conhecidos como Bullying. Meus colegas de sala riam das minhas dificuldades, um desenho que escapulia das linhas pontilhadas já era motivo para gargalhadas intermináveis, e cada tentativa de firmar o lápis nas mãos que teimavam em não obedecer virava atração na sala, olhares, risadas, dedinhos apontados.

Apesar das dificuldades motoras e de relacionamento, alcancei o fim da educação infantil, praticamente alfabetizado, já lendo pequenos textos, conhecendo o formato de todas as letras e sílabas, os números e operações de somar e diminuir.

Nessa mesma época, minha mãe decidiu que era hora de deixar o acompanhamento na APAE, porque ela temia que a convivência naquele ambiente, apenas com pessoas que tinham condições físicas e mentais muito mais severas que eu, poderia, no médio prazo, prejudicar meu desenvolvimento.

Eu estava crescendo muito rápido e ganhando muito peso, pela falta de locomoção, em tempos em que transporte público e carros eram ainda piores em termos de adaptação, ir à escola foi se tornando uma atividade cada vez mais difícil. Com a saúde de minha mãe já ficando debilitada, meu pai conciliando a vida de militar com a rotina de atividades que minha condição demandava – como fisioterapia, intermináveis consultas médicas – a escola foi ficando em segundo plano.

A opção foi continuar os estudos com uma professora em domicílio, condição que durou 2 anos, aprendendo o conteúdo que equivaleu à 1ª e 2ª série do ensino fundamental.

Nesse tempo, continuei com os tratamentos, e com nove anos realizei outra cirurgia, que me possibilitou ficar de pé e conseguir a tão almejada autonomia, porém, devido ao meu tamanho e a outros fatores, não conseguiria mais me locomover sem ajuda de bengalas.

As conquistas possibilitadas pelo sucesso da nova cirurgia viabilizariam enfim a minha volta à escola e ao convívio social, poderia sair de casa, ir para ruas brincar, sem esfolar os joelhos me arrastando pelo asfalto.

O retorno à escola foi cercado de novos desafios. O primeiro foi o aceite de minha matrícula e inserção na série compatível com minha idade e meus conhecimentos. Depois de muitos recursos e auxílios foi admitido na escola para cursar a 2ª segunda serie, já na metade do ano e com quase 11 anos de idade.

Iniciei a 3ª já familiarizado com a escola e com 11 anos de idade – uma defasagem de pelo menos 2 anos em relação aos meus colegas de sala – e essa diferença de idade não ia demorar a me trazer consequências. As dificuldades de visão eram outro problema a ser enfrentado, porque, apesar da elevada altura para a idade, tinha que me assentar na frente para enxergar o quadro e, por consequência, atrapalhava os colegas menores que se sentavam logo atrás.

Nessa época já conseguia empunhar o lápis, porém a velocidade da escrita ainda era lenta, o que trazia problemas na hora de copiar as atividades do quadro. Enquanto a turma toda já estava no final, e encerrando a atividade de cópia, eu ainda estava no início, o que me causava constrangimento e frustração.

Uma professora, percebendo o que isso me causava, fez comigo um combinado: ela copiava a matéria do quadro no meu caderno, e nas atividades de livros, realizadas em sala, eu poderia escrever apenas as respostas. Já em casa faria todas as atividades completas, perguntas e resposta, já que teria tempo e calma para treinar a escrita.

Esse acordo me trouxe um ganho de aprendizagem muito grande, tanto que meu desempenho subiu de tal forma que, numa turma de cerca de 40 alunos, terminei o ano, segundo palavras da própria professora, como segundo melhor aluno, o que, além de tudo, contribuiu para minha autoestima e confiança na minha própria capacidade de aprender.

No ano seguinte, já na quinta série, não tinha mais esse combinado, mas eu já tinha a confiança em conversar com os professores quando não conseguia copiar, em dizer as dificuldades que tinha, em pedir ajuda nos conteúdos não assimilados nas aulas.

Nessa época já lidava melhor com as “brincadeiras” e piadinhas dos colegas e já tinha mais autonomia para me locomover, me mostrar e, principalmente, me impor no meio dos outros.

Neste momento começaram a surgir outras dificuldades, tanto do ponto de vista pedagógico quanto das relações interpessoais. Aulas como as de Educação Artística e Geometria, num primeiro momento, me trouxeram bastante dificuldade, pois a falta de coordenação motora fazia com que meus desenhos não saíssem nada bons. A professora que na época ministrava as duas disciplinas chegava, por exemplo, a me criticar publicamente diante dos colegas, o que me deixava extremamente constrangido. Essas críticas só se encerraram quando minha mãe procurou tanto a direção da escola como a própria educadora, mostrando indignação com o tratamento que me era dado e explicando, com maiores detalhes, principalmente para aquela educadora, no que consistia minha deficiência e os reflexos que ela poderia trazer.

Socialmente havia pontos positivos e negativos. De positivo, progressivamente, meu ciclo de amizades, embora ainda um pouco restrito, começava a se ampliar e a sair dos limites da escola. Passei a frequentar as festas dos meus amigos, a sair para passear, a me divertir nas praças, nas quadras.

Contudo houve também um aumento na quantidade e na intensidade das demonstrações de preconceito. Palavras e expressões como “retardado”, “fugitivo da APAE” se tornavam cada vez mais comuns em relação a mim, somando-se a isso, questionamentos referentes à minha sexualidade me traziam muita chateação, principalmente levando-se em conta que eu estava passando pela adolescência.

Houve momentos em que essas dificuldades interferiram inclusive em meu desempenho escolar, e nesse contexto, mais uma vez, minha família foi fundamental, acompanhando a situação de maneira bem próxima e me apoiando até na contratação de professor particular para aulas de reforço. Assim essa fase foi, pouco a pouco, sendo superada, consegui a conclusão do ensino fundamental, com boas notas de maneira geral, apesar de reconhecer que tinha na época alguma dificuldade em Matemática.

No ensino médio, houve uma grande mudança em minhas relações dentro da escola. Ela começou pela própria mudança de ambiente, visto que esta última escola atendia apenas até a antiga 8ª série do ensino fundamenta, e me mudei para outra escola em Lagoa Santa-MG, focada exclusivamente no ensino médio.

Uma mudança muito importante foi no perfil da turma em que estava inserido a partir de então. Ela era composta, principalmente, por pessoas mais velhas, muitas delas retornando à escola, depois de bastante tempo afastadas.

Este fato diminuiu consideravelmente não apenas a quantidade como também a intensidade dos problemas tanto didáticos quanto pessoais e de interação social pelos quais passava no ambiente anterior, dessa forma fui aos poucos ganhando abertura com os novos colegas e ficando cada vez mais à vontade, não só no ambiente escolar como também em outros espaços, como festas, aniversários, dentre outros eventos organizados pela turma.

Tal transformação não significou ausência de problemas, e eles curiosamente aconteciam com alunos que já haviam convivido comigo na escola do ensino fundamental. A partir daí, passei a experimentar uma situação até então nunca vivida, pois em diversas situações de conflitos e dificuldades, por exemplo, era amparado e defendido por meus colegas de turma.

Mudança análoga ocorreu em relação à disciplina de Educação Artística, que, assim como no ensino fundamental, também cursei no ensino médio. Nessa segunda ocasião, com apoio de meus colegas, conversei logo no início das aulas com a professora e, apesar de meus desenhos e demais expressões de arte de fato não serem os melhores, passei por essa disciplina, sem grandes sobressaltos.

A melhoria na compreensão de minha condição e do apoio institucional também puderam ser percebidos quando, no primeiro ano, a então professora de Matemática, ao ensinar o conteúdo relativo a funções, chegava a me ajudar na elaboração dos respectivos gráficos, evidentemente assim que eu conseguisse realizar toda a parte de contas e operações e chegar nos resultados, sem, no entanto, interferir no meu raciocínio, estando ele certo ou não matematicamente.

Existia ainda o que hoje chamo de “grande sacada” da direção e do serviço de acompanhamento educacional existente na escola. A instituição tinha a política de, no início de cada ano, escolher o representante de turma, com seu respectivo suplente, e quando estava no segundo ano, pouco antes do início dessa eleição em minha turma, a orientadora educacional me disse: “Geraldo, você vai se candidatar a representante” e eu, meio surpreso, respondi: “vou, é? Mas será?” A orientadora responde de pronto: “vai”, e para minha surpresa fui eleito.

Isso me trouxe novas atribuições e, consequentemente, o aumento da responsabilidade sobre mim e também em relação aos meus colegas de turma. Aos poucos fui entendendo que essa atribuição foi uma maneira encontrada pela direção da escola de me integrar ainda mais, não apenas com os que eram de minha turma, mas também com o restante da comunidade escolar.

Ainda posso destacar, na passagem pela escola, meu curioso terceiro ano. Curioso pelo fato de que, talvez pela primeira vez, me senti, em muitos sentidos, igual a qualquer um dos jovens de minha idade.

Até então, tinha boas notas, apesar de alguma dificuldade em Matemática e, principalmente, Química, contudo, no último ano do ensino médio, meu rendimento caiu assustadoramente. Por outro lado, minha vida social foi “turbinada” exponencialmente. Festas, idas a bares, lanchonetes, cinemas, passeios e uma série de atividades com meus colegas de escola acabaram por derrubar minhas médias.

Quando dei por mim, no final do 1° bimestre, tinha três médias perdidas, e em Matemática. O arraso completo! apenas 8 pontos em 25 possíveis. Entrei em pânico e falava: “conto para minha mãe ou não conto ?” Não contei, embora ela já soubesse de tudo.

Acredito que, pelo fato de eu ter ficado tão desesperado e ter mergulhado de cabeça nos estudos para recuperar as notas, ela apenas acompanhou sem muitos comentários. Nesse período só pensava em uma coisa: “Meu Deus! Tomar bomba no terceiro ano, ninguém merece!” virei noites e noites estudando, e consegui.

Paralelamente a isso, chegava a época do vestibular da UFMG, e os professores dizendo: “o vestibular da UFMG está chegando, vamos lá pessoal, vamos fazer!” Dos cerca de 40 alunos de minha sala apenas dois se arriscaram nessa tentativa, eu era um deles. Tentei vestibular para Comunicação Social e não passei.

Após deixar a escola, no final desse ano, em certo momento do período de férias, minha mãe disse: “amanhã vamos fazer sua matrícula no pré-vestibular, em Belo Horizonte”. Fiquei em choque e pensava: “Meu Deus, não vou dar conta! Como vai ser?” E lá fui eu. Saí de uma situação em que estudava em uma escola que ficava a menos de cinco minutos da minha casa, e passei a estudar em outra cidade.

Para tentar diminuir o impacto dessa mudança enorme em minha rotina, minha mãe praticamente obrigou minha irmã mais velha a se matricular por pelo menos seis meses no mesmo cursinho, e, consequentemente, ela voltou a estudar 12 anos depois de deixar a escola.

Isso me trouxe um verdadeiro turbilhão de sensações e de experiências que eu talvez nunca tenha vivido, pois, ao mesmo tempo que estava empolgado pelo fato de poder me preparar para uma nova tentativa a uma vaga no curso de Comunicação Social, da UFMG, tinha medo de não me adaptar a essa nova realidade.

Mergulhei de cabeça nos estudos, mas, concomitantemente, me choquei com as realidades distintas que existiam naquele ambiente, principalmente no que se refere aos níveis de exigência de aprendizagem aos quais os quase 200 colegas de minha turma haviam sido submetidos em suas diferentes trajetórias escolares. Percebi minha defasagem de aprendizado em relação a eles e que precisaria me dedicar mais, para tentar entrar na Federal.

Batalhei por dois anos seguidos uma vaga na UFMG, sempre no curso de Comunicação Social, sem êxito. No início do terceiro ano de cursinho, decidi tentar vaga em faculdades particulares, e, no meio daquele ano, me candidatei ao curso de Jornalismo em duas faculdades privadas, sendo aprovado em ambas.

Além dessa trajetória, nesse período, houve um desenvolvimento em termos de autonomia para a realização de atividades, independência em relação à minha família, como até então nunca havia conseguido, graças ao apoio de professores, demais funcionários e colegas daquela instituição, fazendo com que me sentisse muito bem aceito e adaptado naquele ambiente. Isso serviu de “combustível” em diversas outras fases de minha vida, e me serve de referência há quase 20 anos, mesmo já tendo passado por faculdade, especialização e com uma carreira da qual tenho muito orgulho, mas certo de que os desafios continuam.

JUNIOR, Geraldo Toledo de Paiva.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 4, Número Especial Educação Especial Escolar,março,2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Joyce Fernandes de Freitas 

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