Educação Infantil em tempo de incertezas
Esse espaço é destinado a pensarmos sobre o tema da educação infantil nos tempos de Covid-19 e há muitos elementos importantes a serem problematizados. Destaquei como primordiais para esse debate três tópicos: a situação atual, o diálogo e os direitos das crianças. O diálogo envolve os gestores, profissionais, familiares e outros setores da sociedade que compartilham a responsabilidade das crianças, visando à construção de formas para a garantia do bem estar desses indivíduos.
Ao pensar sobre essa situação atual, temos a certeza de que este é um tempo de incertezas, não sabemos o que virá pela frente, e quem poderá orientar sobre a segurança e o tempo de distanciamento social são os órgãos de saúde, os quais possuem o conhecimento técnico indispensável para isso, entretanto, paralelo a esse momento de instabilidade, temos a certeza de que precisamos conversar sobre isso, principalmente pelo fato de ser algo bastante novo.
Vamos dialogar abordando as ausências e as resistências vividas na educação infantil. Que ausências temos na educação infantil durante esse período? Temos a ausência dos encontros presenciais, das nossas rotinas, das nossas experiências, do nosso convívio em sociedade e dos colegas da instituição… já são tantas, não é mesmo?
Mais do que nunca a ausência das presenças físicas precisa nos mobilizar para uma presença de outra forma, porque os vínculos são importantes, para todos nós adultos, mas, principalmente para as crianças pequenas, da educação infantil. As ausências são sentidas por todos nós, contudo, de que forma a falta física pode ser amenizada?
O estabelecimento do vínculo é fundamental. Mas pensar sobre a forma como ele se estabelece também precisa ser dialogado. Esse vínculo é contato, é lembrança, é troca não presencial nesse momento… O que não podemos é nos silenciar durante esse período de incertezas, silenciar os sentimentos e o diálogo. Esse vínculo entre instituição e crianças, e consequentemente suas famílias, não se reduz à reprodução de tarefas e atividades a serem realizadas. É um vínculo que representa muito mais do que isso, que representa afetividade, memória e troca, é um vínculo que alimenta o afeto de estarmos juntos da maneira que for possível.
Então, inicialmente é fundamental estabelecer um canal de diálogo entre os adultos para conversarem sobre a situação e combinarem as formas de ação. E nós, professores, somos muito bons para pensar nas formas de agir, fazemos isso cotidianamente com os planejamentos, pois é algo que faz parte do nosso trabalho, e é assim que precisamos pensar esse momento de distanciamento e o momento do retorno. Outro canal a ser estabelecido com prioridade é o diálogo com as crianças.
Os dois canais de diálogo exigem um diálogo anterior, porque, antes destes, é preciso estar acontecendo a comunicação entre os/as profissionais da instituição. A equipe institucional precisa construir junto quais são as possibilidades de entendimento, é necessário um alinhamento da instituição sobre o que consideram importante conversar com as famílias, quais serão os canais e tempos disponibilizados. Nós professores e professoras também precisamos ser acolhidos, conversar sobre as nossas rotinas e sobre como pensamos em viver a situação desse momento. Inicialmente, sugerimos organizar um plano de ação para cada equipe escolar em relação ao que consideram importante e como irão proceder no período de distanciamento. Sem prazos, apenas um plano que estabeleça as ações para esse momento. Vamos viver o presente!
O senso de comunidade escolar e de participação precisa ser fortalecido. A comunidade escolar somos todos nós: gestores, professores, outros profissionais do espaço escolar, crianças e familiares, e juntos compreenderemos que a participação é um ato que envolve muito mais do que comunicar, é ouvir, acolher, construir juntos possibilidades para uma situação. É preciso evidenciar que todos os envolvidos na relação entre instituição e famílias querem a mesma prioridade: que nossas crianças estejam bem. Dessa forma, estaremos unidos e buscaremos ações conjuntas, compartilhadas, como canais de escuta e diálogo.
E as crianças, como estão nesse período? Sabemos que não é recomendado para crianças uma exposição de grande tempo diante de telas como celular, tablet e computador, entre outras, justificadas pelo fato de não contribuir para o desenvolvimento infantil, podendo causar alguns prejuízos, de acordo com estudos da área educacional e também da área da saúde. Então, esse é um aspecto a ser pensado pela instituição e deverá estar coerente em fazer pouco tempo ou nenhum de uso das telas. Podemos usar as mídias como estratégia para a comunicação, no entanto, não para propostas maçantes e sem sentido, não para propostas em desconexão com o período que estamos passando, não para propostas desvinculadas da função legitimada da educação infantil que é possibilitar o desenvolvimento integral das crianças, contemplando os aspectos cognitivos, físicos, históricos e socioemocionais.
Na educação infantil não temos uma relação de conteúdos, porque justamente acreditamos que as crianças se desenvolvem a partir das relações que estabelecem, das experiências que vivem, elas se constituem por meio do conhecimento histórico e cultural. O currículo da educação infantil é a vida que pulsa em todos nós, ele inclui os momentos de alimentação, os momentos de descanso, os momentos de afeto e tantos outros que são constituidores dos sujeitos.
Estamos falando de uma formação humana. De um trabalho com fundamentação que temos realizado nessa área, de acordo com as pesquisas, de acordo com a legislação nacional, de acordo com os princípios que fundamentam os direitos das crianças, pois trabalhamos com a relação humana e não com a relação de conteúdos. Lutamos contra a produtividade infantil e focamos nas experiências, nos sentimentos.
E o que podemos perspectivar sobre o retorno? Não sabemos quando, mas precisamos discutir isso para não sermos surpreendidos, assim como fomos com a necessidade do distanciamento social. Precisamos acolher os adultos. Precisamos acolher as crianças. Discutir nesse debate intersetorial, com órgãos de saúde, órgãos de financiamento, de representação dos profissionais e das instituições e dos direitos das crianças, para construirmos quais serão os protocolos necessários e como será essa reorganização de uma forma que respeite os direitos fundamentais das crianças.
Esse retorno presencial precisa ser dedicado primeiro à organização dos espaços e tempos e somente depois para as famílias e as crianças. Outro fato é pensar que a retomada não pode ocorrer da mesma forma que nos organizávamos antes, existem medidas de segurança que precisam ser pensadas pós-pandemia que implicam novos espaços e tempos para a educação infantil. Precisamos avaliar alternativas para o atendimento presencial das crianças diferentes das habituais.
Qual é o protocolo que atende os direitos das crianças? Manter o protocolo sanitário é necessário, manter o protocolo pedagógico também é. Queremos e precisamos de um diálogo que respeite o que os professores dizem, porque não adianta ouvir e depois desconsiderar por completo suas indicações e posicionamentos. Nós não temos essa política intersetorial instituída ainda e precisamos constituir esse espaço no Brasil. É preciso priorizar as ações para que o urgente não tome o lugar do importante. O importante é garantir o bem estar, a saúde e o desenvolvimento das crianças, precisamos ter esse fato bem definido, por mais que todas as demandas de retomada à vida “normal” sejam o desejo dos professores, das famílias e das crianças.
Nesse contexto, temos vivido também muitas resistências, sendo que a dificuldade em pensar em um formato diferente daquele que tínhamos é a primeira delas, visto que nada substitui tão bem o encontro presencial, estamos discutindo as possibilidades de amenizar as ausências… As relações intersetoriais tão importantes em torno da infância têm sido outra resistência que urge neste momento, buscando o diálogo entre os setores, sem desconsiderar o saber dos profissionais da área, esse precisa ser o ponto de partida para qualquer discussão.
Os professores estão trabalhando muito, estão se reinventando com conhecimentos que muitos não dominavam, grande parte deles utilizando os seus materiais pessoais e se dividindo para planejar momentos interessantes que façam sentido para os seus grupos e contribuam para a ampliação dos conhecimentos. É preciso lembrar que eles dividem também o seu tempo na organização familiar e, muitas vezes, silenciam suas dificuldades e medos nesse período de instabilidade para todos.
As propostas pensadas durante esse período e enviadas às famílias e crianças precisam fazer sentido para as crianças, precisam fortalecer o vínculo entre professores e crianças, instituição e família, precisam ser propostas voltadas para a realização desses indivíduos, de forma que contribua para que eles se sintam acolhidos e possam ampliar seus conhecimentos; no entanto, destacamos que são propostas para além de uma lista de atividades ou de exposição desses aprendizes às telas, são propostas que devem acontecer em tempo reduzido, diferente do presencial, mas coerentes com a proposta de formação humana que pretendemos.
Então, realizar uma atividade da casa em conjunto, cuidar de plantas, fazer alguma receita de culinária, ler uma historia, viver uma brincadeira juntos é o que dará qualidade nesse tempo de convivência. Que esse tempo seja explorado para o fortalecimento dos vínculos e princípios defendidos por nós, na educação, os princípios éticos, políticos e estéticos.
Que essas propostas não desconsiderem as desigualdades sociais que já são gritantes, que não desconsiderem esse tempo de medo e insegurança de todos, que não desconsiderem o papel que é da escola e o papel que é da família, que não desconsiderem a falta de condições emocionais e disponibilidade dos professores e das famílias, que não desconsiderem a necessidade de reformularmos nossa rotina e que possamos garantir que estejamos todos emocionalmente saudáveis. Que as propostas possam contemplar todas as crianças para que vivam seus direitos de aprender, de brincar e de viver experiências ricas e saudáveis.
A resistência está também em olhar para as necessidades, o que é indispensável nesse momento? Olhar para esse tempo revela, todavia, relações que já estavam tensionadas para a educação infantil, evidenciando que a área da educação para a infância vive tempo de incertezas, independente da pandemia. Essas necessidades não são iguais para todas as pessoas, para todas as crianças, e como poderemos contemplar esse fato desde o planejamento das propostas até a realização das ações? Essas são algumas questões para provocar a reflexão sobre a discussão da educação infantil.
Keila Cristina Arruda Villamayor Gonzalez
Professora da Educação Infantil, município de São José, SC.