Robina Weermeijer 3

Memória, (auto)biografia e formação de professores

João Victor da Fonseca Oliveira

João Victor da Fonseca Oliveira

Graduando do curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Programa Residência Pedagógica (CAPES) na Escola Municipal Carlos Drummond de Andrade. Desenvolve pesquisas sobre a história da formação de professores para a educação básica na UFMG, e sobre a relação entre ensino e pesquisa.

E-mail: Contato: joaoprates2009@hotmail.com

O cotidiano escolar, assim como todo o campo educacional, é informado por práticas adquiridas, apropriadas e desenvolvidas pelos sujeitos que nele atuam, sob o risco de atuarem muito mais a pelas experiências individuais de aluno, ou pela memória que fazem dessa condição, do que em função do trabalho com os conhecimentos pedagógicos, reflexivamente construídos. Assim, o problema de reflexão deste trabalho baseia-se nessa preocupação e, por meio de uma breve revisão bibliográfica, intenta levantar algumas considerações em torno do tema, bem como se destina a responder a seguinte questão: por que refletir sobre as próprias memórias de escolarização é importante para as(os) professoras(es)?

Na década de 1960, o diálogo engenhoso entre as práticas de formação de professores e os novos modos de concebê-las desalinhou, no campo da produção educacional, uma reflexão significativa em torno do tema da “Memória”, em geral, e sua vinculação com o campo de formação de professores, em particular. O trabalho publicado em 1998, A memória como questão no campo da produção educacional: uma reflexão, de Denice Barbara Catani, é exemplar, nesse sentido. Segundo a autora, no campo da formação de professores, os estudos vinculados à memória buscam pensar o fenômeno, por meio das várias dimensões da história individual ou pela constituição, sagração e recuperação de uma memória coletiva da profissão. Nesse movimento, a memória é tomada como objeto de reflexão, aliada ao estudo das histórias de vida, como parte integrante dos processos de formação. A “escrita de si” e o recurso autobiográfico seriam, paulatinamente, compreendidos como meios eficazes de aprofundar a formação de professoras e professores, mediante o domínio sobre suas próprias histórias de formação.

Retornando a reflexão de Theodor Adorno, Catani (1998) explora sua incursão teórica, buscando compreender “o que significa elaborar o passado” (p. 121), convergindo sua investida em torno desse exercício que rompe o silêncio (ou o conserva) e alcança, por meio da memória, caminhos oportunos de formação. Elaborar o passado se torna tarefa primordial, especialmente para educadores, já que a memória passa a ser compreendida e encarada como dispositivo de constituição, não somente um lugar de lembrança.

Os meios para o estabelecimento desse campo de estudos que nos ajuda a perceber a importância de refletir sobre as próprias memórias da escolarização, lançou mão das fontes orais, e dos recursos da história oral, que, nesse momento, se expandia e se aprofundava teórica e metodologicamente. As fontes obtidas como memorialísticas, autobiográficas ou literárias sinalizaram um conjunto expressivo de lugares possíveis para os estudos em questão. Para Catani (1998), a questão da memória na narrativa

(…) permitiu constatar que, se de uma parte os textos autobiográficos ao falarem das histórias de formação e escolarização de seus autores constituíam pontos de partidas fecundos para o conhecimento na área da pedagogia, sugeriam também problemas relativos à própria escrita memorialística. Mais tarde, desenvolvendo estudos e práticas de formação de professores pelo recurso à produção de relatos autobiográficos, progredimos na compreensão de tais aspectos e principalmente no que diz respeito ao lugar do “sujeito na narrativa autobiográfica” (p.125).

A reflexão em volta da memória social e dos modos de ação das memórias individuais são tomadas pela autora, fundamentalmente, por meio das discussões em Pierre Nora, M. Halbwachs, Hugo Lovisolo, Michel Pollak, entre outros. Particularmente, na reflexão empreendida pela obra de Michel Pollak, apresentam-se as possibilidades de unir o trabalho de memória à prática de formação de professores, ao mesmo tempo em que contribui para que se assinale sua importância. Sobre Pollak, a autora considera que:

(…) ao tratar do significado que o relato da história de vida tem para o próprio indivíduo é que Pollak irá afirmar que as características das histórias de vida sugerem que elas devam ser consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade e não apenas como relatos factuais. Diz ainda: “através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros” (CATANI, 1998. p. 126-127).

As produções das memórias, à vista disso, diferem-se uma das outras, como se diferem seus próprios processos de explicitação. O que nos une às considerações da autora está naquilo que consideramos ser a potencialidade desse tipo de registro, já que a utilização das fontes memorialísticas poderia vir a integrar a escrita de uma história não só das relações com a escola, mas com o conhecimento e, de forma particular, do ponto de vista dos sujeitos alunos.

Elizeu Clementino de Souza, aprofundando o debate, relaciona a discussão sobre a pesquisa com autobiografias, Histórias de vida e História da Educação, de modo a ampliar as questões teórico-metodológicas com esse cruzamento. Seu texto, publicado em 2007, (Auto)biografia, histórias de vida e práticas de formação, defende a ideia central de que é na esteira da emergência de uma concepção científica mais acessível à pluralidade do saber humano que a memória aparece como eixo privilegiado, na articulação de sentidos entre o individual e o coletivo. Para o autor, “narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos um significado” (SOUZA, p. 66), não sem seleções conscientes ou inconscientes sobre o quê se cala e o quê se diz, em um processo no qual a conduta do pesquisador ou de quem realiza a escuta sensível não se isenta. Finalmente, argumenta que a escrita narrativa da trajetória escolar pode ajudar a compreender as itinerâncias no processo formativo, como meio de superar o reducionismo em teoria e prática, no cotidiano dos estágios supervisionados, durante a formação inicial e continuada dos(as) professores(as). Aqui, trata-se não somente de ressignificar a si mas também o papel do próprio estágio nesse processo de formação.

Por meio do diálogo fecundo com a Psicologia, o valor das narrativas retrospectivas, vindo de uma experiência de registros pessoais de situações vividas por um grupo de professoras, Cleide Nébias, em seu texto Memória, registro e subjetividade: escritas de professoras, publicado em 2005, analisa com base em Vygotsky, Bakhtin, Bosi, Ratner e Rubinstein, registros de memórias que, como afirma, buscam “provocar reflexões sobre situações vividas, relacionando-as às suas perspectivas profissionais” (p. 1). Memória e emoção, passado e presente, recordação e escrita, são mobilizados pela autora, que termina por destacar que há, nesse ínterim, construção de novos sentidos para as professoras envolvidas, por meio do trabalho com esse registro.

A contribuição da autora para o debate assenta-se na viabilidade de acesso aos valores de uma época, por meio das narrativas construídas acerca do passado que, uma vez dispostas no plano da memória, da oralidade, ou da escrita, são formas de autoconhecimento, de narrativa retrospectiva, de organização do pensamento, de reflexão sobre as histórias pessoais e condutas presentes. Ao trabalhar com autobiografias, Nébias (2005) pondera que tais obras são preciosas, na medida em que se constituem como registros de época e de espaço, com seus valores e costumes.

Nébias (2005) recupera uma passagem da autobiografia de Zélia Gattai, em que a expressão desse fragmento diz muito sobre o quê e como se informava a prática docente e de que modo a memória recuperou essa experiência:

Minha professora não batia nos alunos nem os punha de joelhos sobre o milho ou feijão; tentava manter a disciplina da classe utilizando-se de réguas – mantinha sobre a mesa pelo menos uma dezena de réguas, todas enfileiradas – que atirava na cabeça da criança faltosa, com uma técnica muito especial: segurava numa das pontas da régua, fazia pontaria e… jamais errava o alvo (GATTAI, 2000, p. 300-304 apud NÉBIAS, 2005, p. 2).

Mais uma vez, é a reflexão sobre si mesmo a tônica do debate. A construção das subjetividades de professoras e professores confere um sentido importante ao exercício de recuperação de suas histórias, ao passo que ocasiona uma análise sobre o sentido das permanências e das mudanças de suas práticas profissionais, e que, quando associadas a outros pontos comuns nas trajetórias de outros professores, terminam por demarcar histórias coletivas da própria profissão de professor, conforme reitera a autora. Inerente à compreensão de nossas condutas, recordar é “buscar significados da constituição de quem somos hoje” (NÉBIAS, p. 3). A conclusão a que chega é explicativa desse movimento que vê na memória um espaço de retenção, conservação, esquecimento e reprodução, que se expressam nas ações sociais:

Os escritos individuais dessas professoras e a história coletiva da vida escolar, possível de ser construída a partir dos registros e das discussões que provocaram entre os alunos-professores, permitem-nos afirmar que suas histórias escolares são, predominantemente, negadas como práticas pedagógicas adequadas. Seus escritos expressam um desejo de superarem os problemas identificados e de atuarem com competência e afetividade (p. 7).

Nesse debate, a questão de gênero ganha destaque, já que o gênero como um chamamento social atua sobre os sujeitos antes mesmo de seu nascimento. Torna-se possível, então, pensar características comuns a um coletivo, por meio da categoria de gênero, como memória feminina, por exemplo. Há uma generificação também da memória quando meninos e meninas são convocados a assumirem papéis distintos na sociedade. Papéis profundamente generificados. Esse é o esforço de Souza et al. (1996), em Memória e autobiografia: formação de mulheres e formação de professoras, ao se empenharem por teorizar sobre a questão da memória, precisamente da memória feminina e da autobiografia. A aposta comum consiste em reconhecer o exercício profissional implicado com a história individual de cada pessoa, bem como à sua história de formação. A importância de refletir sobre as próprias memórias de escolarização, nesse caso, pela autobiografia, torna-se importante para as professoras, uma vez que propiciam “análises e reflexões sobre o processo de formação de modo a potencializar a redefinição de si nas relações docentes, nas quais o objeto é a formação do outro” (Op. cit., p. 62).

A produção de relatos autobiográficos provoca um trabalho de memória que, ao ser acionado, pode colocar em questão representações e práticas mobilizadas pelos professores que pertencem ao conjunto de sua trajetória, sem que algumas delas tenham qualquer reflexão comprometida com o exercício consciente da docência, mobilizados pelas teorias e metodologias pedagógicas, por exemplo. A reflexão em torno das memórias de escolarização é um caminho favorável para a desnaturalização das condutas e das leituras de mundo que foram encaminhadas pelo cotidiano da própria escolarização.

Memória, relatos, autobiografia, escrita de si e formação de professores são termos chave na conceituação dessa problemática. Destaca-se que o conceito de “trabalho de memória”, aqui, é retomado de Paul Ricoeur (2007), para quem “a memória seria um trabalho contínuo sempre capaz de se sobrepor a processos estruturais pré-estabelecidos” (p. 27).  É, portanto, um exercício, um trabalho e, como tal, enreda deslocamentos.

Assumindo a importância da memória como atualização no presente das experiências vividas no passado, o exercício que se impõe é o de mensurar as especificidades da memória como modo de percebê-la como também “marcada e estruturada pelos tipos de papéis sociais desempenhados” (SOUZA et al., p. 65). O estudo da memória feminina é notável nesse exercício, já que a esse grupo destinou-se uma esfera específica, a do privado. Desse ponto de vista, socialmente constituído e socialmente direcionado, as mulheres constroem suas lembranças, e é com base nesse ponto de vista que poderão, então, redimensionar e, sempre que possível, desconstruir tais pontos de vista. De que forma é possível acessar o campo do privado, no estudo da memória feminina? Diários íntimos, cartas sigilosas, arquivos de família e outras formas de lembranças são lugares privilegiados de acesso a esses “pequenos museus da lembrança feminina” (SOUZA et al., p. 64). Ressalta-se que a distinção ou mesmo a diferença entre as formas de memória específica nos homens e nas mulheres deve repousar não em fatores biológicos, mas na percepção que “é o lugar social que é determinante para a estrutura da memória sobre o social” (SOUZA et al., p. 64).

Contudo, o trabalho de memória merece atenção cuidadosa, já que lembrar é também esquecer, posto que nossas lembranças sejam sempre parciais e interessadas. Assumindo seus limites, poderemos vislumbrar as possibilidades da memória, conscientes de sua aparição também na prática e no cotidiano escolar. Essa memória que nos informa é também engajada e seletiva, traz consigo marcas que continuam sendo ressignificadas no presente. Como espaço aberto, ordenado pela lembrança, temos que

[a] memória não obedece apenas à razão, porque ela também está relacionada, por um lado, a tradições herdadas, que fazem parte de nossas identidades e que não respondem a nosso controle, e, por outro, a sentimentos profundos, como amor, ódio, humilhação, dor e ressentimento, que surgem independentemente de nossas vontades (ARAÚJO; SANTOS, 2007, p. 96).

Esses sentidos que são estabelecidos pela lembrança não podem ser negligenciados no movimento atento de tomada de consciência crítica sobre as experiências que nos permitem elaborar nossa experiência de aluno, assumindo reflexivamente a condição docente.[1] Retomar aquilo que nos estrutura torna possível uma conduta docente mais consciente, quiçá menos inconsequente. Resulta, pois, em perguntar-nos sobre aquilo que queremos esquecer, ou aquilo que já naturalizamos.

A tríade memória, identidade e experiência, tomadas como construções, pelas quais nos movemos, encerra de alguma maneira a rede de sentidos envoltos na questão central deste trabalho. A identidade, aqui, é pensada como uma construção nunca acabada, aberta à temporalidade, à contingência, como também constituída, entre outros elementos, pela experiência, na qual se constitui a subjetividade. Nessa direção, Pasquali (2013) considera as identidades como uma posição relacional, “que não depende do acontecimento, posto que está mediada, matizada pela linguagem e pelo marco cultural interpretativo no qual se expressa, se pensa e se conceitua”[2] (p. 200). Pelo exercício da memória, pela trama de construírem-se a si como objeto de reflexão, as identidades em confronto com as experiências podem ser repensadas à luz de uma nova postura, que é também um modo de nos aproximarmos aos processos que queremos explicar, ou, ao menos, compreender para melhor encará-los, no cotidiano do universo educacional.

A produção de relato autobiográfico, a elaboração das experiências por meio da oralidade, ou mesmo a simples lembrança colocada em análise (ou desconfiança) são caminhos favoráveis à formação da professora e do professor quando tomadas em um processo dinâmico de aproximação e distanciamento com sua própria trajetória de escolarização e, possam, assim, favorecer a compreensão dos processos formadores. A escrita de si é um recurso importante nesse percurso, uma vez que, ao ter-se a si como objeto de uma narrativa, e ao produzir-se como objeto de reflexão, a professora ou o professor opera com a memória, que a todo o momento sugere um passado que segue questionando, plantando perguntas, intervindo sobre o presente, afinal, “a memória não é um arquivo senão um ordenador que ativa um processo de constante leitura e aprendizagem” (PASQUALI, p. 201). Num decurso que é também experiência, já que “da experiência aprendemos um saber e o reconstruímos permanentemente através de novos sentidos e significados que podemos dar-lhes” (PASQUALI, 2013, p. 201). É em função dessa possibilidade, como meio de revisitação das práticas, e de redefinição de si, que a reflexão sobre as próprias memórias da escolarização permitem a emergência de um lugar e de uma prática privilegiada no processo de formação docente.

 

 

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História, memória e esquecimento: implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, p. 95-111,  dez. 2007.

CATANI, Denice Barbara. A Memória como questão no campo da produção educacional: uma reflexão. Revisa de História da Educação, ASHPHE/FaE/UFPel, Pelotas, p. 119-129, set. 1998..

NÉBIAS, Cleide. Memória, registro e subjetividades: escritas de professoras. Interações, v. 10, n. 20. São Paulo, dez. 2005.

PASQUALI, Laura. Narraciones, memórias, identidades: conceptos y problemas. In: Memórias de la lucha armada em Argentina (1969-1976). Revista Antíteses, v. 6, n. 11, p. 193-213, jan./jun. 2013.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

SOUSA, Cynthia Pereira; CATANI, Denice Barbara; SOUZA, Maria Cecília Cortes; BUENO, Belmira Oliveira. Memória e autobiografia. Formação de mulheres e formação de professoras. Revista Brasileira de Educação, p.61-76, maio/jun./ jul./ago, 1996.

SOUZA, Elizeu Clementino de. (Auto)biografia, histórias de vida e práticas de formação. In: NASCIMENTO, A. D.; HETKOWSKI, T. M. (Org.). Memória e formação de professores. (online). Salvador: EDUFBA, 2007. 310p. ISBN 978-85-232-0484-6. Disponível em: <http://books.scielo.org>. Acesso em: 23 abr. 2018.

 

[1] Cf. o conceito de consciência crítica, em Paulo Freire, que se contrapõe à noção de consciência ingênua. In: FREIRE, P. (2001). Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro.

[2] Tradução do autor.

Imagem de destaque: Photo by Robina Weermeijer on Unsplash

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