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Algumas reflexões sobre currículo de sociologia

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Thais Sartori Scheffer

Professora de Sociologia do Estado de Minas Gerais, Graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Mestranda do programa de pós graduação em Ciências Sociais da UFJF.

E-mail: thaisujs@hotmail.com

Não é uma tarefa fácil pensar a forma como trabalhar sociologia nas escolas. Primeiro, porque as experiências e produções sociológicas estão, em sua maioria, voltadas para a área acadêmica, bem distanciadas, portanto, das práticas pedagógicas que devem ser desenvolvidas no âmbito escolar. Essa tendência na produção acadêmica foi privilegiada pela ausência de tradição da ciência nas escolas brasileiras. As constantes idas e vindas da disciplina no currículo da educação básica contribuíram para a fragmentação da sua história e para o arrefecimento das pesquisas e da produção acadêmica referente à disciplina neste nível de ensino. Esse contexto esfacelado, com anos de discussões sobre sua implementação no currículo escolar, dificultou a construção de uma prática pedagógica consistente. Em outras palavras, priorizou-se a compreensão dos contextos políticos e educacionais em detrimento de uma verdadeira discussão sobre o ensino da disciplina.

O estudo sobre as propostas curriculares para a sociologia no ensino médio coloca em debate não só as produções curriculares, mas também a produção das práticas pedagógicas. Ao estudar os documentos propostos pelo MEC, embora estejam claras as seleções de conteúdos e as competências e habilidades que devem ser desenvolvidas, as propostas fazem pouca alusão à forma como devem ser trabalhadas, impondo-se, portanto, um questionamento sobre como os professores trabalham os conteúdos.

Com múltiplos olhares sobre seus temas, colocam-se importantes questões: como montar um currículo de sociologia para o ensino médio? Será possível desenvolver um currículo único? Para responder essas questões, é importante ter clareza sobre a legitimidade da sociologia como uma disciplina escolar. Trabalhos como os de Chervel (1990), ao estudar história, elucidam a compreensão do processo de constituição da sociologia como disciplina escolar. A história das disciplinas nas escolas evidencia que há condicionantes específicos que moldam os saberes pedagógicos, que são os modos de ensinar os conhecimentos científicos. Segundo o autor, as disciplinas não constituem saberes acabados e fixos, pelo contrário, são mutáveis de acordo com as mudanças sociais ou com a própria dinâmica escolar. São criadas pelo universo escolar, a partir de mecanismos próprios que estão mais relacionados com o ensino e com a aprendizagem do que com o conhecimento produzido pela ciência. Em outras palavras, o conteúdo escolar é mais influenciado pelas decisões sobre aquilo que é mais fácil compreender do que pela relevância científica.

Os trabalhos de Tadeu da Silva (1999, p. 16) ajudam a elucidar essa questão. Como Chervel, Silva discute várias teorias curriculares. Para ele, as teorias são elaboradas com o objetivo de formar um tipo de aluno, mesmo que não seja exteriorizada essa intenção. Embora em algumas teorias não fique evidente, o tipo de conhecimento selecionado é intencional, certamente expressando um tipo de leitura da realidade.

Para Chervel (1990), a formação da ciência em disciplina escolar está diretamente ligada ao processo de aprendizagem desenvolvido na escola; o mesmo defende Ileize Fiorelli Silva (2004), para quem o currículo é formado a partir dessa premissa. O autor divide as teorias curriculares em tradicionais e críticas: enquanto as tradicionais são dotadas de pretensão de neutralidade e cientificidade, camuflando as reais intenções curriculares, as teorias atuais – críticas e pós-críticas – demonstram consciência na seleção dos conteúdos ao incluírem o exercício de poder em suas discussões.

Isso possibilita a ampliação das análises curriculares sob um prisma mais amplo, almejando a formação da identidade do aluno a partir desse tipo de escolha. Salienta-se o poder do professor na seleção do currículo, na medida em que ele privilegiará um tipo de conhecimento em detrimento de outros. Se todo currículo é uma expressão de poder intencional, o papel do professor se torna mais amplo, e cabe a ele exercê-lo de maneira mais consciente, analisando as implicações de suas escolhas na formação do aluno. Escolher um currículo tradicional ou crítico não é a questão mais imediata, o mais relevante é a ponderação sobre suas escolhas:

O professor não poderá mais promover suas escolhas curriculares de maneira ingênua, ou seja, se antes as teorias tradicionais “facilitavam” a seleção de conhecimentos, atualmente, a responsabilidade pela formação da identidade do educando pertence ao professor. (SILVA, 2004, p. 150)

Se a produção de um currículo está condicionada a experiências e escolhas dos professores, estes, assumindo um papel atuante na formação dos alunos, para construir um currículo de sociologia nas escolas, precisam compreender o sentido da ciência no nível médio de ensino, na medida em que é exatamente essa percepção que dará subsídios para os professores selecionarem os conteúdos e produzirem suas próprias práticas metodológicas e pedagógicas.

A respeito dessa questão, Sarandy (2004) questiona o sentido da disciplina, o que ela tem de específico que não encontramos nas demais áreas de conhecimento, como história e geografia, por exemplo. Cabe ressaltar que as ciências têm fronteiras dadas, antes de tudo, por divisões políticas internas, e, se tratando do ensino médio, é preciso criar essas diferenças e afirmar uma identidade para a sociologia. Para o autor, o contato do aluno com a teoria sociológica, ainda que pela didática do ensino médio, produzirá neles uma percepção, uma compreensão e um modo de raciocínio que nenhuma outra disciplina fará. É exatamente essa compreensão ou essa percepção específica que indica a identidade da sociologia e fornece seu sentido como disciplina do ensino médio, não os seus conteúdos em si mesmos. Assim, mais que discutir os chamados “problemas sociais” ou ensinar um infindável elenco de conceitos, o fundamental é o desenvolvimento da percepção sociológica.

As ideias do antropólogo Louis Dumont (apud SARANDY, 2001) consolidam essa análise. Para o autor, somente com o devido distanciamento de nossa própria sociedade e por meio de um olhar comparativo podemos perceber que nossa visão de mundo é mais uma entre tantas outras igualmente legítimas. Isso porque outros homens, de distintos lugares e tempos, organizam-se e vivem de maneiras diferentes da nossa. Só a sociologia pode criar subsídios responsáveis para o desenvolvimento dessa habilidade, atuando contra a mentalidade individualista do homem moderno.

Nesse sentido, o objetivo do ensino de sociologia é proporcionar a aprendizagem do modo próprio de pensar de uma área do saber. Para Sarandy, seja qual for o conteúdo escolhido para o trabalho, ele será sempre um meio para se atingir um fim, que é o desenvolvimento da perspectiva sociológica, como sugere o autor no trecho abaixo:

Mais que discorrer sobre uma série de conceitos, a disciplina pode contribuir para a formação humana na medida em que proporcione a problematização da realidade próxima dos educandos a partir de diferentes perspectivas, bem como pelo confronto com realidades culturalmente distantes. Trata-se de uma apropriação, por parte dos educandos, de um modo de pensar distinto sobre a realidade humana, não pela aprendizagem de uma teoria, mas pelo contato com diversas teorias e com a pesquisa sociológica, seus métodos e seus resultados. (2001, p. 4)

Esse tema também foi desenvolvido por Florestan Fernandes em 1987, em seu trabalho “Sociologia da educação como sociologia especial”. Para Fernandes, o que se pode fazer, então, no nível médio, é a partir de temas diversos ir variando estratégias de ensino e enfocando aspectos do pensamento sociológico, trabalhando na formação do aluno a partir daquilo que se entende por “pensar sociologicamente”. O ensino de sociologia não se prende aos resultados a que chegaram os cientistas sociais, nem ao resumo de suas obras, mas, de certa forma, às questões diante das quais eles se colocaram e ao percurso, ou seja, às estratégias de construção do conhecimento que eles descreveram. E ainda, de certo modo, produzir o conhecimento sobre o conhecimento, ou a consciência sobre a metodologia desenvolvida. Para o autor, se a sociologia não for trabalhada com esse objetivo, teremos uma decoreba sobre vida, obras e conclusões de um autor.

Nessa perspectiva, embora o número de aulas deixe de ser importante se pensarmos mais seriamente nos objetivos do ensino de sociologia, o autor conclui que não se pode pensar em uma aula por semana num curso de um ano, o que não quer dizer que se pretende dar ao curso um caráter enciclopédico ou uma exaustão de temas, teorias e conceitos que repetem os mesmos esquemas didáticos, não produzindo nenhum avanço no modo de pensar do aluno (FERNANDES, 1987,).

Esse ainda é um dos grandes problemas enfrentados por professores de sociologia nas escolas: o número de aulas é determinante para a produção do currículo. Moraes, no trabalho “Desafios para a implantação do ensino de sociologia na escola média brasileira” (2010), ao desenvolver a temática de um currículo de sociologia, questiona o fato de definir um conteúdo programático sem ter antes definido o número de aulas. O autor defende que é necessário se debruçar mais seriamente sobre essa realidade, que não tem sido suficientemente debatida e está diretamente ligada às questões sobre a proposta de um currículo único.

O sentido dado ao ensino de sociologia é “desenvolver o pensamento sociológico no aluno” ou “levar o aluno a pensar sociologicamente”. Para Moraes a questão dos conteúdos e da existência de uma proposta única acaba perdendo o sentido, ou por outro lado, não se entende o que seja mesmo esse “pensar sociologicamente”:

Primeiro, não se trata de uma quantidade específica de conteúdos; depois, não se trata de determinados conteúdos e não outros. Trata-se na verdade de uma feliz unidade entre conteúdos e metodologias, em que os conteúdos podem ser os mais diversos e a metodologia é que poderá fazer a diferença, por isso a questão da formação de professores passa não somente pelo domínio de conteúdos (bacharelado), mas principalmente pela licenciatura, ou o domínio das práticas e questões de ensino. De certa forma, a escolha dos conteúdos – temas, teorias e conceitos – não podendo ser percorridos todos – numa proposta exaustiva –, terá sempre um caráter arbitrário; depois, se não forem organizados sob perspectivas variadas em termos de metodologias de ensino, poderão ser uma repetição de estruturas apenas variando os temas, o que em termos de aprendizado será a reiteração. (2010, p. 5)

Sarandy, ao escrever sobre a introdução da sociologia no nível médio, aponta que, diferente de outras disciplinas, a sociologia ainda está construindo um saber organizado para esse nível de ensino. A história e a geografia, provavelmente devido à longa tradição no meio escolar, estão bem estabelecidas, têm um discurso construído sobre a realidade, já aceito e amplamente disponível para todos os professores. Os cientistas sociais não contam com essa experiência, além de suas produções sobre o ensino da sociologia no ensino médio serem bastante dispersas entre os profissionais. Não existe uma rede de comunicação e diálogo que favoreça maior intercâmbio de ideias e experiências práticas. Na maioria das vezes, as experiências com o ensino não são registradas, não integram um sistema cumulativo de experiências históricas da comunidade de cientistas sociais e nem sempre estão amplamente disponíveis:

A carência de reflexões e orientações pedagógicas dos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes ao ensino de ciências sociais, o conteúdo teórico dos livros didáticos e o modo como são organizados os planos de curso têm como origem dois vieses nas práticas pedagógicas dos professores do ensino médio: o academicismo – que, em grande medida, reproduz os modelos aprendidos na graduação – e a militância ideologicamente orientada – que, por sua vez, é responsável pelo recorte específico dos conceitos e temáticas normalmente trabalhados ou, até mesmo, pelo sentido dado a certos conceitos sociológicos. Esses dois vieses acabam por contribuir tanto para uma baixa qualidade no ensino dessa disciplina, quanto para sua pouca legitimidade social. (SARANDY, 2001, p. 5)

O que se retém dessas reflexões é o fato de o conhecimento sociológico ser compreendido como algo que poderá beneficiar o aluno na medida em que lhe propicia habilidades para analisar a realidade que o cerca e na qual está inserido. Mais do que isso, a sociologia constitui uma contribuição decisiva para a formação da pessoa humana, já que nega o individualismo e demonstra claramente nossa dependência em relação ao todo, isto é, à sociedade na qual estamos inseridos. Assim, a sociologia deve fazer parte dos currículos, mas não de “qualquer tipo de ensino médio ou de qualquer currículo”. Ao pensar na ciência dentro das escolas, está pensando-se no papel do ensino médio e em que tipo de indivíduo se pretende formar.

Por essa razão, várias são as indagações impostas hoje aos sociólogos e professores do ensino médio: compreender como esses conteúdos estão chegando e sendo desenvolvidos pelos professores efetivamente nas salas de aula. Ter a dimensão dos seus impactos na vida cotidiana dos alunos e do ambiente escolar, certificar como as secretarias de educação têm se comprometido com o desenvolvimento qualitativo desses conteúdos.

A permanência da disciplina na educação básica passa pelas discussões que levam a compreensão de como trabalhar os conteúdos sociológicos nas escolas básicas, percebendo os problemas enfrentados por professores da disciplina e compreendendo o decisivo papel do professor na formação desses currículos, como estes estão sendo elaborados? Como e qual sociologia está sendo ensinada nas escolas?

Sabemos que o currículo é formado por escolhas, que podem ser de caráter político, pedagógico, entre outros, de modo que essas escolhas são fundamentais na definição do trabalho com a sociologia no nível médio. Ao privilegiar um tipo de conhecimento em detrimento de outro durante o processo de escolha dos conteúdos, o professor está intencionalmente selecionando o tipo de conhecimento que será transmitido. Assim, o seu papel torna-se mais amplo, diretamente responsável pela consolidação da sociologia no ensino médio, já que é o responsável por desenvolver nos alunos habilidade para compreender o sentido e o olhar sociológico para a sociedade.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.

FERNANDES, F. Sociologia da educação como “sociologia especial”. In: PEREIRA, L.; FORACCHI, M. Educação e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987.

MORAES, A. C. Desafios para a implementação do ensino de sociologia na escola média brasileira. Cadernos do NUPPs, São Paulo, ano 2, n. 1, set. 2010.

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SARANDY, F. M. S. A sociologia volta à escola: um estudo dos manuais de sociologia para o ensino médio no Brasil. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

_______Reflexões acerca do sentido da Sociologia no Ensino Médio em Espaço Acadêmico – Revista Eletrônica Mensal, Ano I, nº. 05, outubro de 2001.

SILVA, I. F. A sociologia no ensino médio: perfil dos professores, dos conteúdos e das metodologias no primeiro ano de reimplantação nas Escolas de Londrina, PR e região – 1999. In: LEJEUNE,  M. G. de C. (Org.). Sociologia e ensino em debate: experiências e discussão de sociologia no ensino médio. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 77-94.

SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

TAKAGI, C. T. T.; MORAES, A. C. Um olhar sobre o ensino de sociologia: pesquisa e ensino. Mediações, Londrina, v. 12, n. 1, p. 93-112, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas>. Acesso em: 16 out. 2009.

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