“vamos conversar sobre a escola?”: olhares após a gravação

A série “O pão nosso de cada dia”, finalizada no nosso número 13, foi construída em um processo que durou um ano e envolveu o Núcleo de Vídeos do Projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil (PEPB) e a Revista Brasileira de Educação Básica. Durante a produção da série estávamos instigados pelos desafios do cotidiano de professores em sala de aula frente aos desafios da educação básica brasileira na construção de uma carreira docente. Porém, ao fim da série um novo cenário estava posto e um novo desafio se colocava para nós: o próximo número e o próximo vídeo. 

No dia a dia do PEPB a relação entre comunicação e educação nos atravessa recorrentemente. Em meio às definições das estratégias de cobertura das manifestações em defesa da educação refletimos sobre como ampliar o nosso diálogo com a sociedade trazendo as pessoas, suas experiências, vivências e concepções sobre a escola. Com isso consideramos a produção de um vídeo curto que abrisse a possibilidade de provocar o nosso olhar sobre a importância que as pessoas atribuem a educação. Com essa provocação inicial Vanessa Macêdo, Thiago Rosado, Letícia Pires, Matheus Philipp, Bruna Donini e Lyndon Matos saímos às ruas. 

A seguir convido a todos para ler o relato descritivo do diretor do vídeo Thiago Rosado e o texto de opinião crítica do Lyndon Matos, estudante de pedagogia que está cumprindo estágio obrigatório da Revista Brasileira de Educação Básica.

Thiago Rosado – Núcleo de vídeos (Direção, montagem e edição)

No âmbito da publicação da 14ª edição da Revista Brasileira de Educação Básica, surgiram alguns bons desafios para o núcleo de vídeos resolver. Do que iríamos falar? Com quem iríamos conversar? Onde iríamos conversar? 

Nas quatro edições anteriores, a RBEB se propôs a produzir uma série documental que falou sobre os desafios e cotidianos de professoras da Educação Básica. Na estética da série se apresentaram professoras que falaram, sobretudo, de memórias, desafios e vivências de uma maneira poética e intimista. 

Agora uma coisa estava certa para nós da RBEB: Precisávamos sair às ruas para ouvir o que as pessoas tinham a dizer sobre educação e escola. 

Alguns encontros entre a editoria da Revista, o Núcleo de Vídeos e amigos interessados na produção de vídeo e em educação trouxeram discussões e desejos iniciais que objetivaram pautar o assunto pelo qual o vídeo iria ser produzido. As ideias e pensamentos convergiram na questão Sociedade e Escola. Queríamos saber o que as pessoas tinham a dizer sobre a Escola, seja no viés da memória escolar, das opiniões, das falas espontâneas, enfim, o desejo era fazer um registro da nossa conversa com as pessoas na rua, sobre a relação entre sociedade e escola. 

Mas não bastava simplesmente ligar a câmera e fazer perguntas para as pessoas transeuntes, como é comum de muitos veículos jornalísticos. Nossa intenção era estabelecer encontros com as pessoas e, no lugar da entrevista, trazer a conversa como meio para falar do assunto que já havíamos definido. Nos vimos na necessidade de estabelecer uma espécie de protocolo/estrutura para facilitar esse encontro e a conversa. 

Nesse ponto foi trazida em uma das reuniões a ação intitulada Café, da artista mineira Luciana Cezário. Nesta ação a artista leva dois banquinhos, uma mesa, uma garrafa de café e se propõe a conversar com as pessoas sobre ser mulher na nossa sociedade. Em seguida, ela constrói um varal com impressões, relatos e dizeres das pessoas. Assim como a Luciana, levamos nossas cadeiras, mesa, a garrafa de café, alguns copos e acrescentamos um quadro branco com frases que convidavam as pessoas a sentar, tomar café conosco e falar sobre a escola.

Uma vez decidido o que falar e o como conversar, faltava a resposta para “onde conversar?”. Quais lugares na cidade escolher e porque esses lugares. Estávamos decididos a priorizar pessoas que passassem pelas ruas e que não necessariamente habitassem os espaços escolares com frequência, mas que percebessem algo desses espaços em seus cotidianos. Com isso em mente, decidimos procurar pontos de passagem de pessoas perto de escolas em bairros de Belo Horizonte. A nossa hipótese era de que as pessoas que moram ou passam perto da escola de alguma maneira poderiam ter algo a falar sobre essa instituição pública que, dividindo os muros com o restante da cidade, se torna cidade tal como uma padaria ou loja de roupas.

A ideia inicial era executar a ação em cinco pontos distintos da cidade, mas, devido ao tempo para fechamento da Revista, conseguimos dois. O primeiro nas redondezas da Escola Estadual Caetano Azevedo, no bairro Barro Preto, e o segundo em uma praça e ponto de ônibus perto da Escola Municipal Amílcar Martins, no bairro Santa Amélia.

Fomos primeiro para os arredores do centro de Belo Horizonte na E.E. Caetano Azevedo, que se localiza em uma região com muitas instituições de caráter jurídico e hospitalar. Nas ruas em volta da escola há um fluxo constante de pessoas indo e vindo, algumas com uniformes de empresas, outras com roupas sociais, além de vários outros transeuntes. Estabelecemos nosso “cenário” na esquina da Rua Ouro Preto com a Rua dos Timbiras no dia 03 de outubro. No segundo dia fomos para perto da E.M. Amílcar Martins, na região norte de BH. Da mesma forma, montamos o cenário na Praça Chorinho e no ponto de ônibus em frente a praça.

Havia entre a equipe um misto de empolgação, receio e insegurança. Não sabíamos se as pessoas iriam querer falar, se os equipamentos assustariam ou o que poderia acontecer fora do previsto. Estar na rua em meio ao fluxo da cidade é uma tarefa desafiadora, instigante e desgastante. Mas tivemos excelentes surpresas, a placa com a frase chamava muita atenção e muitas pessoas passavam curiosas olhando para nós. Entre esses curiosos, alguns pararam em meio aos seus afazeres cotidianos para conversar conosco. Nossa ideia inicial era de conversar com as pessoas sentados e tomando café na mesa, desta maneira teríamos tempo para preparar as câmeras, colocar microfones no lugar e gravar a partir daquilo planejado previamente, mas a condição da urgência do dia a dia das pessoas fez com que elas tivessem contato conosco de um modo efêmero e súbito. Em nenhuma das conversas conseguimos registrar o contato inicial, pois sentimos que a negociação e mediação entre a câmera e as pessoas passava por uma linha tênue entre o invadir e ser aceito por quem estava sendo filmado. Só assumíamos que estávamos filmando quando sentíamos a aceitação da pessoa filmada. Por esses fatores a captação de áudio foi prejudicada, uma vez que colocar microfone de lapela era inviável e o microfone direcional assumia um símbolo e espacialidades que ultrapassavam a cinesfera das pessoas filmadas. Do mesmo modo as câmeras obedeciam um certo limite espacial para o melhor fluxo da conversa. Inclusive, o vídeo é influenciado pelo cinema de Eduardo Coutinho que traz a conversa como método na construção de seus filmes. Para nós, o encontro e a conversa eram a maior prioridade.

O nosso primeiro encontro registrado foi com um homem que mora em Itabira e estava em BH para resolver questões particulares no Fórum. Ao passar por nós ele recuou, leu a placa e se mostrou interessado em falar algo, seguiu em direção ao seu caminho e novamente se aproximou da mesa. Era aproximadamente 12h30 e ele disse que teria que chegar ao Fórum às 13h. Falamos pra ele que queríamos conversar sobre a escola e que ele poderia voltar depois se quisesse, pois estaríamos ali até às 15h. Ele concordou e, ao mesmo tempo, começou a falar sobre a escola, suas experiências como professor e questões da sociedade. Havia algo de muito urgente na fala deste homem, ele parecia querer desabafar todos os seus pensamentos, revoltas e sugestões sobre a escola. A fala dele abre o filme e demonstra o tom de urgência que seguirá nas falas seguintes.

Na montagem do vídeo fiz escolhas quase sempre objetivando aproximar do espectador um pouco do que foi sentido pela equipe. Os cortes entre uma conversa e outra, por exemplo, são todos abruptos, pois assim foram os encontros, quando menos esperávamos, uma pessoa surgia e começava a conversar conosco. Na trilha sonora, optei por não incluir músicas ou sons artificiais, uma vez que a rua tem sua própria trilha. Ademais, em muitos momentos esse ruído da rua invade as falas dos personagens, e, por isso foi necessária a inclusão de legendas para facilitar o entendimento das conversas, o que me faz ter uma autocrítica em por que não colocar legendas em produções audiovisuais, mesmo que em línguas portuguesa, já que este recurso torna o vídeo acessível à população surda.

Algo que o cineasta Eduardo Coutinho traz em seu cinema é o que ele chama de verdade da filmagem em oposição a filmar a verdade. Isso porque é muito comum achar que a linguagem documental tem por objetivo trazer a verdade absoluta da vida “real” e não seria mentira dizer que muitos diretores têm isso em mente, mas o que Coutinho traz em seu cinema é uma verdade e recorte da realidade que estão sendo influenciados e mediados pela verdade da filmagem, ou seja, pelas câmeras, microfone, a figura do mediador, todo aparato usado a fim de registrar. Conosco não foi diferente. Em diversos momentos eu orientei a todos que não havia problema algum em uma câmera filmar a outra ou mesmo que um microfone aparecesse na imagem, ou outros bastidores da filmagem, uma vez que isso traz elementos para que o espectador entenda o contexto em que se deram os encontros. Aliás, fui além e incluí uma narração no início do filme que contextualiza detalhadamente os nossos objetivos e as condições que encontramos ao longo do caminho, entendi que essa explicação era necessária, não porque subestimo o espectador, mas para que eu dê elementos mínimos para que ele entenda de onde partimos e como transcorreram as filmagens.

Em processos de montagem de um filme, é sempre difícil e às vezes doloroso fazer as escolhas, pois isso acarreta em deixar coisas para trás. Ao fim das filmagens havia aproximadamente 180 minutos de gravação e era necessário montar um filme com no máximo 10 minutos. Essa condição de tempo já é um elemento da montagem que traz ao vídeo um tempo menos dilatado. Em princípio tentei ir para um caminho que conectasse as falas uns dos outros de maneira a amarrar as narrativas costurando alguns temas em comum, mas percebi que a rua em toda sua diversidade pedia algo além, que as oposições e contradições eram potentes e que deveriam surgir mais fortemente na montagem. 

Isso trouxe para a narrativa algumas situações interessantes, como um momento do filme em que alguém diz “os professores, eles não tão nem ai […] num tá preocupada, assim, se o aluno tá aprendendo ou não” e em outra fala uma profissional da educação básica diz “então, a gente tem amor no que faz e faz por amor”. Essa oposição direta traz possibilidades diversas de interpretarmos cada fala, bem como as nuances do que se coloca como oposto. Um aspecto importante, pelo menos para mim que dirigi e participei do processo de montagem do filme, é que não há hierarquia entre as falas e as personagens, muito menos importa colocar no vídeo quem está certa e quem está errada. A potência ao meu ver se dá pela forma como cada uma fala, no contexto, nas entonações, na medida que são verdades mediadas também pela câmera dentro de um espaço-tempo. Se eu for hoje à casa dessas personagens conversar sobre o mesmo assunto elas tenham opiniões diferentes, talvez iguais e ainda sim faladas de uma maneira outra.

O filme se revela junto com os personagens e o ritmo das conversas traz um pouco da efemeridade que foi estar nas ruas com as pessoas. A experiência de gravar algo na rua lidando direto com uma parte da sociedade, que não necessariamente está presente dentro da escola, trouxe movimentos de reflexão dentro de mim e espero que traga para as pessoas que assistirem. Até breve.

Lyndon Matos – Estágio Pedagogia FaE/UFMG (montagem) 

Do ponto de vista de minha participação como estagiário da Revista Brasileira de Educação Básica, considero importante o processo reflexivo desenvolvido durante as experiências que vivenciei e com as quais aprendi muito ao estar presente nos momentos de gravação do vídeo. Talvez esse processo tenha se iniciado antes mesmo das abordagens realizadas com as pessoas nas ruas, quando estávamos, em reunião, elaborando e definindo um roteiro de questões que pudessem ser levantadas no momento das entrevistas.  

Pensar em uma maneira de conversar sobre educação e escola com pessoas que estivessem fora de espaços escolares é algo desafiador, no sentido de que essas pessoas que seriam abordadas pela equipe poderiam trazer visões, concepções e práticas vivenciadas que poderiam estar relacionadas a ideias que não necessariamente seriam vislumbradas, de antemão, a partir da nossa sistematização prévia de um roteiro – apesar das boas intenções e da necessidade que o tivéssemos em mãos para estarmos minimamente preparados para ir às ruas, já que queríamos falar de dois assuntos que com certeza apareceriam nas falas dos entrevistados.

Ainda sobre esse processo, penso que o momento de refletir e articular as questões que seriam levadas (dentro da estrutura de um roteiro) constituiu um processo de aprendizado, que nos fez mobilizar conhecimentos acerca do que seria mais palatável nas conversas que tínhamos em perspectiva. Por exemplo, discutimos e definimos que seria interessante instigar nossos entrevistados a rememorar momentos, situações e aprendizados que ocorreram em suas vidas escolares, de modo a propiciar um momento de diálogo que, para nós da equipe, tocaria num porto importante da área educacional: a memória e a trajetória escolar pessoal.  

Nisso, trago como uma imprevisibilidade ocorrida o fato de que muitas pessoas, ao decidirem conversar conosco, nos trouxeram outros olhares e pontos de discussão sobre a escola e a educação que eram muito distantes daquilo que imaginávamos ou esperávamos sobre a “pauta” de suas falas. Isso por que as nossas afeitadas visões de escola e educação estavam fortemente imbricadas às experiências acadêmicas superletradas que adquirimos no nosso processo de escolarização.  

Um exemplo disso, para melhor pensar nesse aspecto do processo de gravação do vídeo, aconteceu na entrevista com duas senhoras que se propuseram a conversar juntas com a equipe, relatando suas percepções sobre a questão do salário docente e apontando que a maioria dos professores só fazem o que fazem por dinheiro. Essa afirmação se constitui um tema específico mais ligado às condições do trabalho docente, levantando uma opinião que, para nós da área educacional, seria um tanto quanto arriscada pelo caráter não-científico da afirmação, já que pesquisas e dados educacionais variados mostram que muitos professores só se firmam em seus ofícios muito mais pelo vínculo emocional que estabelecem com seus locais de trabalho, e não somente pelo baixo piso salário já criticado por eles mesmos. 

No entanto, assim como esse exemplo, talvez poderíamos observar e discorrer sobre outros que, como mencionado anteriormente, de certa forma bateram de frente com nossas visões e pré-conceitos que geralmente partem de uma análise mais acadêmica acerca de determinados assuntos, que esperamos que sejam tratados da maneira que estamos habituados a discutir dentro da universidade. Isso constitui um problema? Talvez não, se pensarmos que é justamente esse tipo de imprevisibilidade, em relação ao que não conhecemos da opinião pública (no caso do exemplo mencionado) que elabora e refina a riqueza do nosso processo educativo, ao participar e ter contato com essas situações nas quais se faz face frente ao que o outro pensa e verbaliza e que, de maneira inusitada, está distante de nossas ideias e opiniões.  

Assim, como estagiário, todas essas experiências de campo me fizeram contemplar, sobretudo a partir da perspectiva profissional da área da educação, a amplitude e a riqueza dos processos e práticas educativas que constituem a formação do pedagogo em espaços não escolares, pensando na diversidade de atuação desse profissional dentro de momentos e situações que inclusive suscitam inquietações quanto às formas de ver a educação no cotidiano, enfim, no “mundo real”, mais desvinculado da academia e suas limitações.  

Portanto, posso afirmar que as relações que se estabeleceram entre os integrantes da equipe e entre a equipe e os entrevistados conformaram uma vivência educativa, e também autoeducativa, no sentido de que estávamos o tempo todo educando nossos olhares na troca de experiências e opiniões, ao mesmo tempo em que éramos modificados pelas visões trazidas por aqueles que decidiram compartilhar um pouco de seus incômodos e realidades conosco.

Thiago Rosado

Thiago Rosado Silva

Sou graduando em Licenciatura em Teatro pela escola de Belas Artes da UFMG. Fiz intercâmbio acadêmico na Universidade do Algarve – Portugal onde desenvolvi pesquisas em fotografia, vídeo e audiovisual. Ministro oficinas de Teatro e pesquiso cinema documentário e de ficção. Atualmente sou bolsista de extensão do projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil (1822-2022), na qual fui diretor da série documental O pão nosso de cada dia. Meus filmes favoritos são Cabra Marcado Para Morrer e a trilogia O Poderoso Chefão.

Contato: rosado.thiago@yahoo.com.br

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Lyndon Matos

Graduando em Pedagogia pela UFMG. Atua como pesquisador bolsista de Iniciação Científica no grupo de pesquisa OSFE – Observatório Sociológico Família-Escola, da FaE/UFMG.

Contato: lyndonmatosjr@gmail.com

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