Nas trilhas da escola: narrativa de uma trajetória. Por Luiz Carlos Castelo Branco Rena

No segundo semestre de 2016 tive a grata surpresa de viver minha primeira experiência de ser paraninfo dos estudantes formandos em psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em Betim (MG). Se não me engano fui o primeiro não psicólogo a ocupar esse lugar, uma novidade nesses dezessete anos de história do curso. Assim, minha primeira palavra para aquela turma foi “gratidão” por esse gesto de reconhecimento e consideração, que me impõe o compromisso de tê-los  guardados do lado esquerdo do peito para sempre.

O convite para ser paraninfo obrigou-me a fazer uma viagem ao passado. Há exatamente 48 anos, em dezembro de 1968, eu escrevia meu primeiro discurso para uma formatura. Como aluno da primeira turma a concluir o curso primário da Escola Estadual Afrânio de Melo Franco com as melhores notas fui convidado a ser o orador da cerimônia. Já tão cedo, naquela escola pública situada na estrada velha da Pampulha, começava a perceber que a gente sai da escola, mas a escola não sai da gente. Se alguém acredita que é possível deixar a escola no passado, guardada no lugar do esquecimento… Esse alguém deveria revisitar sua história e perceberá que a escola e tudo que vivemos dentro dela está agregado definitivamente à nossa subjetividade.

Recorro à minha própria trajetória escolar para sustentar o que estou dizendo, compartilhando com vocês alguns momentos preciosos desse percurso ou por que não dizer currículo.

Foi nas séries iniciais, sendo alfabetizado com o livro Os três porquinhos que descobri que a união faz a força diante das ameaças de quem quer se impor pela força. Foi na escola que me tornei o rei por um dia, o rei do Amendoim, para descobrir no dia seguinte que melhor mesmo é ser plebeu.

Cursava a 4ª série quando aconteceu minha primeira participação na resistência à ditadura militar. A pedido da professora ajudei um grupo de estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que fugiam da repressão, a alcançar o portão do campus, através de uma trilha no meio do mato que só meninos conheciam. A mesma trilha levava aos pés de manga, de amora e de jabuticaba. Os estudantes alcançaram proteção, e eu voltei comendo as frutas que achava no caminho. Muitos anos depois fui compreender o alcance do meu gesto.

Estava na 6ª série do Ginásio de Taguatinga Sul, assentado sobre a carteira durante o intervalo do recreio quando vivi meu primeiro beijo. A carteira me ajudou a ficar na mesma altura da garota que era da 8ª série e mais alta por conta dessa diferença cruel entre meninos e meninas que nos impõe a adolescência. Evidentemente, foi um momento inesquecível. Ali aprendi que o jeito como cada um lida com seus desejos também é um saber a ser construído por toda a vida.

Fui à primeira matrícula masculina do Colégio Pio XII, de Belo Horizonte, na primeira turma de noturno do ensino médio. Ali realizei dois encontros fundamentais: com um colega de turma e uma religiosa educadora. O primeiro, Marco Antônio, me abriu a possibilidade de reinserção na vida eclesial através da pastoral juvenil e dos grupos de jovens da Cidade Industrial, outra grande escola, lugar de inúmeras aprendizagens fundamentais. E a Irmã Graça, hoje vivendo em Angola como missionária salesiana, me apresentou a Paulo Freire, meu mestre, meu guia, minha inspiração para a escolha crucial que fiz de ser pedagogo, educador e professor. Irmã Graça me ajudou a entender que a fé sem obras é vazia e que a política iluminada pela fé pode ser a forma mais nobre de se viver a caridade. A caridade que nos liberta e nos compromete com a superação das estruturas de exclusão e produção da pobreza endêmica.

Na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da UFMG, e na Faculdade de Educação, do início dos anos 1980 aprendi que o ato de educar é profundamente político, para o bem ou para o mal, para construir sujeitos conscientes de seu papel no mundo em transformação ou destruir utopias e projetos de quem sonha com outro mundo possível. Ao viver a dupla condição de estudante e de professor na escola pública desde o primeiro semestre da graduação fui compreendendo o que Paulo Freire reafirma em muitos de seus escritos: “a educação reproduz, assim, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o movimento dialético do processo histórico de produção do homem. Para o homem, produzir-se é conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia é antropologia.” (1970, p. 7).

Deixarei para outro momento a narrativa dos muitos fatos que poderia colher nesses dezessete  anos de inserção no curso de psicologia da PUC Minas em Betim, nos quais muitos de vocês também foram protagonistas. Assim, não há dúvida de que ao se lançarem na prática da psicologia, cada um a seu modo e em diferentes espaços, com vocês estaremos nós, professores, colegas e funcionários das escolas por onde passaram construindo sua história. A gente sai da escola, mas a escola não sai da gente. E vale lembrar o velho e sábio Sartre: “Uma coisa é o que fizeram de nós. Outra coisa é o que nós fazemos do que fizeram de nós”.

E aqui estou fazendo discurso seguindo o ritual, depois de muitos recadinhos enviados pelas redes sociais, lembrando que todo paraninfo faz discurso. Aquela história de que a norma social introjetada e tacitamente aceita pela maioria se torna lei. Depois de ouvir pelo menos uma dezena de vezes a seguinte pergunta: “O discurso está pronto?” Eu espertamente respondia que já estava tudo arrumadinho na minha cabeça. Pura mentira. Aliás, neste país essa prática recebeu um novo significante: pós-verdade, que é o jeito elegante de dizer que a autoridade mentiu. Aí me lembrei que estamos mergulhados num golpe parlamentar-judicial, e que eu pobre mortal, sem mandato e sem toga, corria o risco de sofrer um “impeachment”, sendo destituído desse lugar de paraninfo se não escrevesse meu discurso. Esquece essa história de fazer roda; de responder uma pergunta com outra pergunta ou sortear na chamada um aluno para dar sequência à discussão. Agora é você falando, eles e elas te escutando atentamente… sem celular na mão. Agilizei a produção desse meu texto do por quê não abro mão desse lugar… de afeto, de carinho, de aconchego, de cumplicidade, de sonho coletivo e muito mais. Pedindo inspiração ao meu mestre Paulo Freire, fiz meu para casa com imenso prazer.

Mas aprendi também na escola com a ajuda do livro Português através de textos (1967) da minha querida ex-professora Magda Soares, que não há texto sem contexto. E o contexto em que lhes vejo concluindo a graduação é de mar revolto em forte neblina a desafiar quem vai ao leme, conduzindo a embarcação da própria história. A República está de joelhos diante do deus mercado, ceifando direitos fundamentais dos mais frágeis e excluídos para preservar as estruturas pecaminosas de produção e concentração da riqueza. O Estado, que em tese deveria atuar para proteger e defender a vida de todos, está se engalfinhando na luta pela manutenção do poder e se ocupando em defender os interesses próprios, atropelando a Constituição Cidadã de 1988 sem nenhum pudor. Uma turba de homens brancos e bem-vestidos depuseram uma mulher prometendo colocar ordem na casa e o que se vê é uma baderna institucional grave e preocupante. A conjuntura político-institucional vai se complicando, exigindo de todos nós que estamos assentados nessa mesa, de vocês que estão recebendo hoje o diploma de psicólogos e psicólogas e demais presentes nesse auditório uma posição, uma atitude. É hora de ser protagonista e não mero expectador da história. A garotada das mais de mil escolas e universidades públicas, estaduais e federais, assim como os alunos dessa universidade estão nos enviando esse recado.

Mas não quero com essa menção ao momento histórico desanimá-los e empurrá-los para o imobilismo. Ao contrário, é um convite a encarar esse momento de crise como um tempo de oportunidades, de desafios à sua capacidade criativa. É o momento de mobilizar todas as suas potencialidades e competências construídas ao longo da vida e durante esses cinco anos de formação em psicologia, quando você foi chamado a mergulhar nos percursos inerentes aos processos de subjetivação tão diversos, tão múltiplos e, por isso mesmo, tão fascinantes que nos faz política e eticamente comprometidos com o outro; com a vida que pulsa em todos. Quero celebrar com vocês essa escolha corajosa de se colocar no mundo como profissionais do cuidado. Reconhecer a singularidade do outro num tempo em que se multiplicam os mecanismos de pasteurização das inteligências, de intolerância com as diferenças, de adesão ao discurso fácil de um individualismo estéril é para quem tem coragem. Há indicativos fortes de que estamos entrando num período obscuro da nossa história em que o verbo “resistir” deverá se fazer gesto pessoal e coletivo. Caberá a cada um descobrir “onde” e “como” a sua ação de resistência será possível. Haverá momentos que estaremos juntos ocupando as ruas, as praças, as plenárias, e em outros momentos caberá a cada um resistir, às vezes solitariamente, no lugar que lhe cabe o exercício cotidiano da profissão no consultório, na empresa, na escola, no SUS, no CRAS, no sistema prisional, entre outros. Este é o lugar mais difícil da resistência. Como Espinosa (2004) afirmo:

um povo livre se guia pela esperança mais do que pelo medo; o que está submetido se guia mais pelo medo do que pela esperança. Um almeja cultivar a sua vida. O outro, suportar o opressor. Ao primeiro eu chamo livre. Ao segundo, chamo servo.

Sejamos livres e não servos. Afinal foi para sermos livres que Deus nos criou. Esse exercício da liberdade como vocação do humano nos permite afirmar que quando há desejo, vontade e trabalho nenhum de nós permanecerá refém do passado, nem do presente, o que torna o futuro a possibilidade maior de nos reinventar e reinventar a história. Não se trata de negar a própria história, nem de se alienar de um presente tumultuado que tanto nos aflige. A hora é de lutar, pessoal e coletivamente, contra toda desesperança, não se deixar sucumbir diante das dificuldades e fazer a nossa parte, dar conta da tarefa que nos cabe na construção de uma sociedade mais igualitária, mais justa e mais fraterna.

Rubem Alves em “As tarefas da educação” nos diz que viemos ao mundo com duas malas. Na mão direita trazemos a mala das ferramentas, coisas como objetos, conceitos, teorias, habilidades e competências, com as quais encaramos o mundo e suas demandas de transformação. De vez em quando precisamos abrir essa mala olhar com coragem para dentro dela, fazendo uma faxina; mantendo as ferramentas que apesar de antigas são indispensáveis, incluindo ferramentas novas que acabamos de inventar e transferindo para o museu aquilo que deverá permanecer como memória. Na mão esquerda levamos a mala do coração, vamos levando todos os sorrisos, nossas bolinhas de gude, nossas livros de poesia e literatura, nossas canções prediletas, nossas fantasias. Esperamos ter contribuído durante esses cinco anos para renovar a mala da mão direita e tornar mais pesada a mala que cada um vai levando na mão esquerda.

E vocês estão aqui diante de nossos olhos. Somos, eu e meus colegas docentes aqui presentes, testemunhas de que são pessoas mais maduras, mais fortalecidas, mais capazes de enfrentar os desafios que virão. Quero encerrar, então, acrescentando algo na mala do coração que fui buscar em Erótica é a alma, de Adélia Prado, para todos nós, que amadurecemos lindamente sem rugas na alma!

Todos vamos envelhecer… Querendo ou não, iremos todos envelhecer. As pernas irão pesar, a coluna doer, o colesterol aumentar. A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos. A boa notícia é que a alma pode permanecer com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos. O segredo não é reformar por fora. É, acima de tudo, renovar a mobília interior: tirar o pó, dar brilho, trocar o estofado, abrir as janelas, arejar o ambiente. Porque o tempo, invariavelmente, irá corroer o exterior. E quando ocorrer, o alicerce precisa estar forte para suportar.
Erótica é a alma que se diverte, que se perdoa, que ri de si mesma e faz as pazes com sua história. Que usa a espontaneidade pra ser sensual, que se despe de preconceitos, intolerâncias, desafetos.
Erótica é a alma que aceita a passagem do tempo com leveza e conserva o bom humor apesar dos vincos em torno dos olhos e o código de barras acima dos lábios.
Erótica é a alma que não esconde seus defeitos, que não se culpa pela passagem do tempo.
Erótica é a alma que aceita suas dores, atravessa seu deserto e ama sem pudores.
Aprenda: bisturi algum vai dar conta do buraco de uma alma negligenciada anos a fio.

Não se esqueçam de cuidar da própria alma, para dar conta de ajudar as pessoas a cuidar de si.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, R. As tarefas da educação. Folha de S.Paulo, São Paulo, 29 jun. 2004.

ESPINOSA, B. Tratado teológico político. Trad. introdução e notas Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

PRADO, A. Erótica é a alma. Disponível em: <http://eueapsicologia.com.br/marte/erotica-e-a-alma-por-adelia-prado/>. Acesso em: 9 out. 2016.

[1] Mensagem para a turma do 10º período do curso de psicologia da PUC Minas Betim durante a colação de grau em 13 de dezembro de 2016.

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Luiz Carlos Castelo Branco Rena

Formado em pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), tendo realizado mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999). Atualmente é Professor Assistente IV no Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Unidades de Betim e Coração Eucarístico), onde exerce a docência desde 2000 e é membro do Colegiado de Coordenação Didática do Curso de Psicologia na Unidade Betim da PUC Minas. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Processos Sociais- NEPPSO. Representante da comunidade acadêmica da PUC Betim no Conselho Universitário da PUC Minas. Tem experiência na área de educação, psicologia social e educação em saúde. Atuando nas práticas de pesquisa e extensão aborda principalmente os seguintes temas: adolescência e juventude, sexualidade e relações de gênero, educação afetivo-sexual, educação em saúde e metodologias de intervenção com grupos.

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