Formação docente na UFMG: história e memória, por Priscilla Verona

 

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Priscilla Verona

Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bolsista de Doutorado pelo CNPq e integrante do Centro de Pesquisa em História da Educação (GEPHE).

E-mail: pri.verona@yahoo.com.br

O livro organizado por Faria Filho et al. (Mazza Ediçoes, 2016) se apresenta como uma coletânea constituída de artigos que perpassam a temática da formação docente na Faculdade de Educação da UFMG. Trata-se de uma obra que expressa certa pluralidade, na qual seus textos se desenvolvem no sentido de buscar compreender historicamente como tem se desdobrado, ao longo dos últimos 90 anos, o processo de formação de professores.

Na apresentação da obra a autora Eliane Marta nos lança de início e sem rodeios uma afirmativa nada fácil de ser digerida: “a educação é a Geni da sociedade”. Aflige de certo modo a assertiva. No entanto, à medida que caminhamos na leitura, é possível perceber as distintas complexidades que permeiam os artigos, e nesse movimento vale considerar que a natureza dessa citação vai se delineando com mais clareza para nós leitores.

A educação que recebemos nos possibilitou construir ferramentas para o entendimento do mundo e para a mudança dele, nos tornou aquilo que somos. Apesar disso, é certo que em grande parte do tempo a educação é apedrejada por argumentos de indignação que a desacreditam ou, ao contrário e concomitantemente, aclamada como um espaço possibilitador de mudanças promissoras. Geralmente atribui-se à escola os fracassos da sociedade, bem como credita-se a ela todo o seu processo de salvação.

O objetivo central da obra concentra-se em investigar como a UFMG veio se constituindo, nos últimos 90 anos, como uma instituição formadora de professores e especialmente como se desenvolveram seus modelos de formação e como foram operacionalizados ao longo de sua história. Algumas das motivações que deram origem à iniciativa da investigação foram as graves questões que persistem no campo da educação brasileira há anos e que contribuem para o consenso geral de que a formação dos nossos professores está sempre aquém do desejado e aquém do merecido por nossos alunos. Desse modo, a estratégia de recorrer à história do processo de formação dos professores torna-se com esta obra uma chave de leitura, que possibilita não somente compreender as transformações de um passado recente, mas também encontrar através dele os elementos essenciais para reorganização das licenciaturas na atualidade. Portanto é preciso atentar para a lição que a história é capaz de nos deixar:

as novas construções não podem ou não devem ser erguidas nem somente com as ruínas do passado nem somente com materiais inteiramente novos, de qualidade e resistência não bem experimentadas ainda. O progresso estável é o que se vai fazendo de sínteses racionais, combinando o que deve ficar com o que deve surgir. (SANTOS, 1940 apud MELO; ARAUJO, p. 59)

O primeiro artigo, intitulado Cedoc/ FaE – preservar, organizar e divulgar, nos oferece um panorama acerca de como se desenvolveu o processo de organização do acervo que estava sob guarda do Centro de Pesquisa, Memória e Documentação da Faculdade de Educação da UFMG (Cedoc/FaE). Em primeiro momento houve, por parte dos autores, uma tomada de consciência acerca do rico e significativo conjunto documental fundamental para a história da educação no Brasil e em Minas Gerais que se concentrava naquele acervo. Em seguida, deu-se início aos processos de higienização, identificação de tipologia documental e organização das fontes históricas. De acordo com Moreno et al., o processo de organicidade do acervo foi baseado no inventário organizado sob coordenação da Biblioteca Alaíde Lisboa, que segue a lógica arquivística, subdividindo o arquivo em funções e séries. A organização do acervo foi tomada como forma de extroversão, em que utilizavam-se diversos modos de divulgação do trabalho que tinha sido feito, no sentido de permitir e possibilitar pesquisas e reflexões necessárias à história da educação.

O segundo artigo, intitulado A formação de professores na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais- Belo Horizonte, MG, 1939- 1948, busca refletir os primeiros anos de funcionamento da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais. O texto traz considerações acerca do diagnóstico que os professores dessa instituição faziam do ensino médio e seus dilemas. O estudo se situa em duas perspectivas: a primeira é a de que, para fazer avançar a compreensão sobre a escola, é fundamental entender melhor o processo de formar professores, especialmente no sentido de propor alternativas que contribuam na superação dos problemas e desafios; a segunda perspectiva é a da história, na qual, ao buscar compreender em que se pautavam as primeiras iniciativas para a formação de professores durante o contexto de fundação da faculdade, os autores adentraram o debate sobre quais eram as concepções de formação docente que circulavam entre os professores da Faculdade de Filosofia durante o contexto da década de 1940. Organizando e analisando diversos grupos de fontes, como legislações, atas, correspondências, jornais e revistas, os pesquisadores buscaram traçar um panorama acerca dos trâmites que deram origem à Faculdade de Filosofia e, em seguida, compreender o processo de formação dos professores. A análise da formação de professores se desdobrou em duas perspectivas. A primeira foi entender a finalidade dessa faculdade que, de acordo com o Decreto-lei nº 1.190, consistia em preparar trabalhadores intelectuais para o exercício de atividades de ordem desinteressada, bem como preparar candidatos ao magistério do ensino secundário ou normal e realizar pesquisas. No entanto, de acordo com o regimento da FFMG, sua finalidade baseava-se na formação de professores do ensino secundário, uma vez que o professor precisaria de uma formação mais especifica, que poderia ser oferecida ali.  Entretanto, nos primeiros 10 anos da Faculdade de Filosofia, o aluno e a mocidade eram preocupação de fundo, e, de acordo com Melo e Araújo, a finalidade centralizada no magistério secundário, sem dúvida, se deslocou para o campo da cultura desinteressada. A segunda perspectiva se concentra em compreender aspectos mais específicos, como a organização tanto dos cursos de caráter ordinários como dos extraordinários.  Enquanto os primeiros seriam um conjunto harmônico de disciplinas necessárias à obtenção de um diploma, o segundo se dividiria em cursos de aperfeiçoamento ou cursos avulsos.

O terceiro artigo, A Faculdade de Filosofia de Minas Gerais e seu curso de Pedagogia, é um estudo que reflete o programa do curso de Pedagogia entre os anos de 1943 e 1963. As reflexões atentam-se em pensar, através da legislação e do Anuário da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, de que maneira a universidade se constituiu como formadora de professores da educação básica. Do ponto de vista político e econômico, a organização das universidades, bem como a regulamentação do ensino superior no Brasil entre 1930- 1960 estiveram motivadas pelas transformações sociais vividas pelo país.  Diante da inflação, da deterioração de salários, do aumento do custo de vida e das acirradas disputas por postos de trabalho, as classes médias começaram a pressionar os governos, pleiteando vagas no ensino em todos os níveis. No que se refere aos conhecimentos sobre o curso de Pedagogia na FFMG, o modelo de formação de professores concentrava-se em três anos de estudo dos conteúdos disciplinares e em um ano de estudo dos conhecimentos pedagógicos. De acordo com Viana et al., o modelo de formação proposto pelo Decreto-lei nº 1.190, para os cursos de Pedagogia, esteve em vigor na instituição entre 1943- 1963. A partir de então, a proposta curricular que entrou em vigor foi a expressa na Resolução do Conselho Federal de Educação n. 251/1962. Tal proposta foi construída na intenção de “superar o caráter generalista presente na formação do pedagogo e as distorções impostas pelos bacharéis e licenciandos pelo ‘esquema 3+1’” (VIANA, et al., p. 90). Ao trazer informações importantes sobre as escolhas realizadas pelos próprios professores durante o processo de formação, o artigo nos leva a perceber que estes buscaram adequar-se às políticas educacionais da época, não deixando de lado suas aspirações, e acabaram se remodelando à sua própria maneira, criando assim um formato singular para o processo de formação de professores e pedagogos. O estudo nos mostra o interessante processo de reinventar (sempre que for preciso) a relação que se estabelece com a fonte, pois no momento em que não encontramos as respostas que inicialmente buscávamos, é preciso alterar parte da rota e fazer novas perguntas.

O quarto artigo presente no livro, intitulado Formação de professores na UFMG: da Faculdade de Filosofia à Faculdade de Educação – 1960-1971, reflete a criação da Faculdade de Educação a partir da reforma universitária em 1968, a qual extinguiu o Departamento de Pedagogia e Didática da Faculdade de Filosofia. Fonseca, em seu artigo, buscou mesclar a pesquisa documental proveniente do acervo do Cedoc com a utilização de fontes orais coletadas em diferentes momentos da história da FaE. A autora afirma que “A possibilidade oferecida pela memória oral de reinterpretação da história à luz do tempo presente foi bastante explorada num interessante exercício feito entre pesquisadores e entrevistados na sala de trabalho do Cedoc” (FONSECA, p. 100). Os relatos foram unânimes em dizer que a passagem da Faculdade de Filosofia para Faculdade de Educação ocorreu em meio a inúmeros conflitos e tensões, mesclando sentimentos de perda para uns e expectativas para outros. Somado a isto vale mencionar o cenário de transição política vivido no Brasil durante a década de 1960 e a chegada de uma ditadura, marcando um contexto de repressão, mudanças e diversas dificuldades. Após a criação da Faculdade de Educação, afirma Miguel Arroyo (apud FONSECA, p. 110), que se desvinculou a formação de professores da área da Filosofia. Assim, a Faculdade de Educação deveria formar administradores, supervisores, orientadores. O foco era a gestão, pois acreditava-se que se formássemos bons gestores teríamos boas escolas.  Os professores se distribuíam em novos espaços de trabalho, e a FaE tinha que se reestruturar dentro da reforma de 1968, ou seja, não pensava a educação, mas sim a gestão da educação. A nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) neste contexto invadia as faculdades e dizia como deveriam ser formados os profissionais da educação, com qual tipo de cultura e ethos eles deveriam estar sintonizados.

O quinto artigo, intitulado As reformas universitárias e a formação de professores na UFMG: a criação da Faculdade de Educação, aborda a formação docente na Faculdade de Educação ao longo do seu processo de consolidação e adentra o debate sobre como se dava a formação de professores no contexto da ditadura militar. Na década de 1960 o ensino superior é colocado em discussão pela sociedade de uma maneira geral, em especial por professores, intelectuais, pesquisadores, movimentos estudantis e lideranças políticas. Desse modo, vale considerar que compreender o modo como a UFMG organizou e institucionalizou um modelo de formação para professores representa um grande desafio que se relaciona muito com o processo de construção e consolidação da própria Faculdade de Educação. Um ponto importante desse processo foi o Plano de Reestruturação da UFMG, que, proposto pelo Aluísio Pimenta e concluído em 1967, foi apresentado a todos o professores e setores da universidade. A amplitude da reforma englobou a atualização do conjunto de institutos previstos pelo estatuto de 1963, a reforma administrativa e as políticas de integração, visando entendimento mútuo entre os órgãos, implantação do colégio universitário e construção do campus Pampulha. A reforma buscava uma sistematização formal, que mais tarde seria estendida às demais universidades do país, no entanto a UFMG foi a pioneira na reforma do sistema universitário. A ditadura militar, afirma Oliveira, interviu de maneira autoritária no processo de reforma que estava em curso na UFMG, conseguindo transferi-la para 1968, o que expressa o controle verticalizado que o regime possuía sob as instituições no Brasil. Ao final, o artigo nos leva a entender a criação da Faculdade de Educação como um processo plural, uma vez que se originou de um movimento marcado por inúmeras tensões e por reforma estrutural, que partia principalmente de uma nova concepção no que tange à ideia de universidade impulsionados ora pelo viés tecnicista ora pelo viés humanista.

O sexto artigo que compõe a obra intitula-se As propostas de reformulação do currículo do curso de formação de professores da FaE/ UFMG no decurso histórico da disciplina Filosofia da Educação (1983- 1985) e desenvolve reflexões acerca de como se configurou a disciplina Filosofia da Educação para o curso de Pedagogia na FaE. A análise parte de um breve histórico de como se desenvolveram os debates sobre a reforma curricular do curso de Pedagogia da FaE na década de 1980 e busca esclarecer como se desenvolveu a disciplina Filosofia da Educação para a formação dos professores. A reformulação do currículo se inscreve segundo Mesquita num dilema mais amplo que se estendia pelo campo da educação no Brasil e no âmbito da UFMG. Um ponto importante da estruturação desse novo currículo baseava-se em garantir uma abordagem globalizante, privilegiando a compressão crítica da educação e buscava estruturar uma ação educativa, partindo de uma sólida fundamentação teórica e de uma prática concreta. A disciplina Filosofia da Educação, de acordo com o novo currículo, deveria estar sintonizada com a instrumentalização do conhecimento, no sentido de vincular teoria e prática, de tal forma que o centro das atenções fosse a formação do professor e as experiências da educação básica pudessem se apresentar como núcleos de reflexão teórica das disciplinas conceituais.

O sétimo artigo presente no livro, As licenciaturas no Boletim da UFMG (1974- 1996): em busca de um tema perdido, tem como foco a análise do boletim no sentido de reconstruir a história da formação docente tal como foi divulgada pelo órgão oficial da universidade no período que vai do seu início em 1974 até a publicação da atual LDB em 1996. O artigo nos leva a perceber como o boletim foi um importante mecanismo de produção da memória universitária, expressando valores, juízos e justificativas que permitem ao pesquisador compreender o movimento e o jogo de convicções que se desenrolou na produção desse discurso, tido até então como oficial dentro do meio universitário. Em seu conteúdo o boletim divulgava as resoluções e tomadas de decisão tratadas nas reuniões e nos seminários. A atuação de professores, as greves, os orçamentos, os eventos e as notícias de novas descobertas ocupavam também as páginas do boletim. Polêmicas como ocaso das chamadas “licenciaturas curtas” e a importância dos cursos de extensão como mecanismo de interação entre comunidade e universidade também integraram as páginas do informativo. O Cecimig foi a instituição de formação de professores que mais apareceu nas páginas do boletim, tendo sido o resultado de um convênio entre MEC e UFMG que buscava dar suporte ao trabalho de professores do estado, além de estimular a extensão, colaborando com o ensino de Matemática e Ciências. Vale mencionar que a Faculdade de Educação passa a ser bastante citada no boletim, especialmente a partir da década de 1980, o que contribui para sua notabilidade e influência. Na década de 1990 o número de estudos investigando a prática docente e pedagógica passa a crescer no meio de discussões acadêmicas e a valorização da prática cotidiana como espaço de construção dos saberes assume maior destaque. Entretanto, Faria Filho et al. identificou que, embora a pesquisa científica realizada na UFMG tenha sido divulgada no boletim com assiduidade, as licenciaturas acabaram ficando, de certa forma, esquecidas ou então eram citadas em caráter esporádico, em geral abordando a necessidade de uma melhor formação dos professores.

O oitavo artigo, intitulado Licenciaturas da UFMG no período 1968- 1996, nos oferece um panorama geral acerca da origem dos cursos de licenciaturas que se estabeleceram em meados do século XX na universidade. De acordo com Souza, os cursos possuíam duas características básicas: estavam todos na Faculdade de Filosofia e representavam uma formação complementar ao bacharelado. O mínimo a ser exigido para a preparação pedagógica de um licenciado deveria abranger disciplinas como Psicologia da Educação, Didática, Estrutura e Funcionamento do Ensino, Prática de Ensino e Introdução à Educação. A responsabilidade pela formação pedagógica nos cursos de licenciatura foi atribuída pela Coordenação de Ensino e Pesquisa da UFMG à Faculdade de Educação através da Resolução 12/69. Vale mencionar que: a distância física entre essas unidades acadêmicas acaba por reforçar a separação entre os que ensinam e aprendem os conteúdos específicos e os que ensinam e aprendem os procedimentos didáticos-pedagógicos. (SOUZA, p. 212)

Deste modo, podemos afirmar que os anos 1970 expressaram um intenso debate acerca da constituição de um Colegiado Especial de Licenciatura na UFMG e do modo como ele deveria se relacionar com os demais colegiados dos cursos de licenciatura, visando uma integração necessária entre as licenciaturas e a FaE. Vale mencionar que a assertiva que deparamos logo na introdução da obra, de que “a educação é a Geni da sociedade”, torna-se mais ilustrada no decorrer da obra. Assim como a personagem Geni de A Ópera do Malandro, peça escrita por Chico Buarque, a educação também é aquela que lida com os errantes, cegos e retirantes e com aqueles que nada tem a oferecer e flexiona-se para todas as situações embora seja o tempo todo abusada e tratada com hostilidade por nossa sociedade…   no entanto, ao mesmo tempo em que a educação é apedrejada, assim como Geni, é tida como heroína, pois é nela que a sociedade sempre deposita suas expectativas de um mundo melhor.

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