Duas Meninas Brancas Brincando Destaque Educação Física N 5

Educação Física e Letramento na rede de ensino de Goiânia

milaaaa

Ludmila Siqueira Mota Viana

Professora da Escola SESI Canaã da SEDUCE Goiás e da E. M. Abrão Rassi e E. M. João Vieira da Paixão da SME Goiânia. Mestranda em Educação Básica pelo Programa Mestrado Profissional em Educação Básica pelo CEPAE-UFG. Possui  Licenciatura Plena em Educação Física pela Universidade Estadual de Goiás (2002), é bacharel em Fisioterapia pela Universidade Católica de Goiás, especialista em Docência Universitária (UEG) e Educação Física Escolar (UEG). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Física, atuando principalmente nos seguintes temas: alfabetização e letramento, didática, metodologia de ensino, fisioterapia, educação física.

E-mail: fdjmila@gmail.com

INTRODUÇÃO

Este estudo é o resultado do meu trabalho de dissertação referente à hipótese de que a Educação Física escolar não está construindo o letramento das crianças, especificamente das salas de alfabetização. Para realizarmos o debate em torno das possibilidades e dos limites das práticas pedagógicas em Educação Física com os processos de leitura e escrita, iniciaremos apontando as definições sobre o que é alfabetização, letramento e Educação Física. Embasamos nossa pesquisa sobre os conceitos de alfabetização e letramento em Soares (2008, 2009) e os estudos de Freire e Macedo (2015) para tratar da leitura do mundo, além dos estudos de Vygotsky, Leontiev e Luria (2007, 2014) sobre o pensamento e a linguagem. No que se refere à Educação Física, utilizamos os conceitos da teoria crítica da área, como Castellani Filho et al. (2009).

A temática da leitura e da escrita e a discussão sobre sua importância e sua compreensão crítica permeiam os estudos sobre a alfabetização, o que reflete também sobre o analfabetismo, pois tais conceitos produzem efeitos sobre a sociedade, tanto política quanto economicamente. Fato é que as políticas públicas endereçadas às campanhas e programas de alfabetização tiveram sua gênese no inicio do século XX se intensificaram a partir da Constituição de 1988, na promessa de que haveria esforços para que o analfabetismo fosse extinto. O que não aconteceu. De lá pra cá, o debate a respeito da crise da alfabetização perpassa sobre pressupostos e valores relativos à sua significação e utilidade: a ideia de que alfabetização é simplesmente um processo mecânico que enfatiza excessivamente a aquisição de habilidades de leitura e escrita, contrapondo-se com a visão da alfabetização como um conjunto de práticas culturais que promove a mudança democrática e emancipadora.

O surgimento da palavra letramento na atualidade surge como uma ressignificação à concepção de alfabetização como política cultural, expressão já utilizada por Paulo Freire sobre ler e escrever como forma de transformar o mundo. Assim, compreendemos que a alfabetização não pode ser reduzida ao mero lidar com as letras e as palavras, em uma esfera puramente mecânica, mas deve ser encarada como a relação entre os educandos e o mundo, mediada pela prática transformadora que tem seu lugar na escola (FREIRE; MACEDO, 2015).

Para Freire e Macedo (2015), a leitura do mundo precede a leitura da palavra, da mesma maneira que o ato de ler palavras implica necessariamente uma contínua releitura do mundo, ou seja, aprender a ler, escrever, alfabetizar ‒ se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não um ato mecânico de palavras, mas uma relação dinâmica entre linguagem e realidade. Além disso, a aprendizagem da leitura e da escrita são atos de educação e a educação é um ato político.

O que isso tem a ver com a Educação Física? Partindo da concepção sobre a cultura corporal que envolve o homem como uma totalidade, a Educação Física, como área do conhecimento teorizado na escola, tem a possibilidade de levar o aluno a ampliar seu campo de experiências, a incentivá-lo na conquista da liberdade subjetiva, levando-o a desenvolver a consciência crítica e a vivenciar o sentido da responsabilidade social. A Educação Física nesse processo não é apenas auxiliar no aprendizado da leitura e da escrita, de forma direta, mas um viés a mais, uma possibilidade de promover a leitura da realidade, utilizando as habilidades corporais específicas da Educação Física.

OBJETIVOS E MÉTODOS

Como objetivo geral, propomo-nos a investigar as possibilidades e os limites das práticas pedagógicas do professor de Educação Física e do pedagogo no processo de letramento. Como objetivos específicos: desvelar o discurso sobre a alfabetização que perpassa a fala dos sujeitos professores de Educação Física; investigar como o professor de Educação Física e o professor pedagogo podem trabalhar de forma interdisciplinar nos processos de leitura e escrita. Para responder e compreender essas questões, optamos por desenvolver a pesquisa tendo como subsídio o método materialista dialético que se baseia numa interpretação dialética do mundo, pois por meio desse método poderemos nos aproximar da realidade a fim de conhecer os atores sociais envolvidos e situar o leitor no contexto em que o fenômeno investigativo ocorre.

Ambientamos este estudo em dois campos: um ampliado, que investigou os discursos das professoras-sujeitos de Educação Física e pedagogas, quanto à alfabetização e letramento da Rede Municipal de Ensino (RME) de Goiânia; e outro específico, que buscou conhecer a realidade de uma escola da RME e onde construímos uma proposta de intervenção de prática pedagógica da Educação Física com vistas ao letramento, subsidiada pela pedagogia histórico-crítica de Gasparin (2007).

No campo ampliado, entrevistamos uma professora de Educação Física que atua com nos primeiros anos do Ensino Fundamental (Ciclo I, turma A) e uma professora pedagoga/alfabetizadora do mesmo ciclo de escolarização, das escolas municipais de Goiânia, exceto as de tempo integral, com a intenção de estabelecer a relação entre os saberes docentes dos profissionais de Educação Física com os professores pedagogos da RME de Goiânia de forma representativa em cada região da cidade. Os critérios para a seleção dos sujeitos foram dois: trabalhar com os primeiros anos de escolarização e ser efetivo no quadro funcional. Outro critério elencado foi o tempo de magistério no Ciclo I, a princípio, professores(as) que estivessem por dois anos ou mais lecionando em turmas A (1º ano do Ensino Fundamental).

Selecionou-se apenas uma escola de cada Coordenadoria Regional de Educação (CRE) de Goiânia, totalizando cinco escolas. Como critério de inclusão, tivemos as escolas que se dispuseram a ceder nossa entrada no campo e que não houvesse pesquisas em andamento na instituição. Foi aplicado um questionário com cada um dos professores, composto de questões abertas com o objetivo de levantar o perfil profissional dos sujeitos participantes e concepções relacionadas ao trabalho docente, verificando se há um trabalho em conjunto desses sujeitos no processo de letramento, conforme os objetivos traçados neste estudo.

No campo específico da pesquisa, o locus definido foi uma escola que concordou com o termo de anuência e que possuía os critérios de inclusão (professores efetivos de Educação Física e pedagogos do Ciclo I). Além disso, a escola apresentou disponibilidade e consentimento a respeito da nossa entrada no campo para realizar observações, entrevistas, aplicação de questionários ao professor de Educação Física da primeira fase do Ensino Fundamental e desenvolver nossa proposta de intervenção de prática pedagógica da Educação Física com vistas ao letramento.

Todas as escolas campo e todos os professores sujeitos foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa, nossa atuação no campo e a delimitação dos sujeitos pesquisados, como colaboradores voluntários para a realização do nosso estudo. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (UFG) e todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O modo como concebemos a linguagem oral e escrita depende da forma como conduzimos a alfabetização uma vez que a alfabetização trabalha com a aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, ao investigarmos junto às professoras pedagogas[1] qual concepção de alfabetização/letramento ou leitura e escrita elas utilizam para nortear sua prática pedagógica, encontramos algumas professoras que fundamentam sua prática pedagógica no construtivismo e na mecanicidade da tecnologia do ler e escrever, enquanto percebemos um avanço dessa visão nos discursos das professoras que concebem a leitura e a escrita como práticas sociais que permitem às pessoas a leitura do mundo e a emancipação do indivíduo. Esta última concepção se aproxima daquilo que acreditamos que deva ser o letramento: a possibilidade de levar os indivíduos a fazer o uso da leitura e da escrita e se envolver em práticas sociais de leitura e de escrita que se relacionam com as condições sociais, culturais e econômicas de um grupo social específico.

Algumas das professoras de Educação Física deram respostas evasivas ou deixaram de tecer esclarecimentos sobre determinadas respostas. Acreditamos que o silêncio das professoras e/ou suas respostas descontextualizadas sejam reflexos dos currículos dos cursos de licenciatura em Educação Física, nos quais passamos por quatro anos de curso, em que o assunto alfabetização é praticamente invisível. As questões da Educação Básica que são geradas pelo currículo escolar, pela organização da escola e pelas relações do cotidiano escolar estão distantes da formação inicial e dos currículos das licenciaturas, pois prevalecem os conhecimentos técnico-científicos e específicos de área, chegando o professor à escola sem fundamentação e sem elementos para compreender e enxergar a questão da alfabetização, do letramento e suas possibilidades dentro da escola. Portanto, os saberes das professoras da disciplina a respeito da alfabetização são provenientes de ecos ou de diálogos com outros professores nos momentos de planejamento coletivo, nas salas dos professores de suas escolas ou talvez em cursos de formação continuada.

A ausência de conceitos e reflexões sobre a Educação Física e o letramento também foi diagnosticada quando realizamos o levantamento bibliográfico na área e encontramos poucos trabalhos sobre o tema. Soma-se a isso a ausência da alfabetização e do letramento na nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para a Educação Física discutida atualmente, em que não há aproximações da Educação Física com a alfabetização e seus significados nas séries iniciais.

Para articular as concepções e os conceitos dos sujeitos-professores, questionamos como ocorre a organização do trabalho pedagógico na escola no que se refere ao processo de letramento e se essas professoras trabalham em conjunto com outras áreas de ensino, numa proposta interdisciplinar, pois as orientações das Diretrizes Curriculares – DC da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia – SME (2008) ressaltam a importância das diversas áreas do conhecimento na análise e compreensão da realidade dos educandos. Nossa intenção foi levantar uma reflexão sobre os enunciados acerca da interdisciplinaridade e encontramos aproximações entre os discursos das professoras de Educação Física e das pedagogas, uma parceria que vem sendo possibilitada em alguns momentos dentro da escola, como nos planejamentos mensais. Porém, atinamos sobre as dificuldades que impendem esse trabalho interdisciplinar de se desenvolver plenamente, pois ainda há situações dentro das escolas que desvalorizam a prática pedagógica da Educação Física, como a retirada dos alunos das aulas de Educação Física para realizar atendimento e “reforço” de alfabetização, o que desprivilegia o trato pedagógico da disciplina e promove a segregação dos alunos, piorando os resultados acadêmicos.

Diante das informações apresentadas pela realidade, impressiona-nos ainda a visão reducionista da Educação Física, em grande parte, pelas professoras pedagogas. Acreditamos que essa visão seja decorrente de três possibilidades: (1) a ausência ou dificuldade de um trabalho em conjunto e articulado entre as professoras dessas duas áreas do conhecimento, decorrentes da falta de tempo e espaços para planejamentos coletivos e, até mesmo, a falta de empatia entre as colegas de profissão dentro das escolas; (2) porque as pedagogas ainda transitam seus conhecimentos sobre a Educação Física na perspectiva dicotômica corpo e mente, fato este percebido quando uma das professoras pedagogas retira os alunos das aulas de Educação Física (corpo) para realizar o reforço (mente); (3) decorrência da indefinição e ausência de posicionamento das próprias professoras de Educação Física acerca de sua atuação nas salas de alfabetização, com práticas pedagógicas que não possibilitam a compreensão dos fenômenos do campo da cultura corporal.

No campo específico, foi escolhida uma escola entre as investigadas para desenvolvermos nossa proposta de intervenção de prática pedagógica em Educação Física com vistas ao letramento, como uma tentativa de promover um trabalho interdisciplinar do professor de Educação Física e o pedagogo no processo de letramento. Foi desenvolvida uma sequência didática em seis aulas, duas aulas seguidas de uma hora cada (totalizando três dias, sendo um dia por semana), na turma A1 cujo objetivo era que os alunos conhecessem e praticassem o jogo queimada sob a perspectiva do letramento. A atividade foi desenvolvida com crianças da turma A1, com faixa etária de 6 a 7 anos, do primeiro ciclo, que vai da pré-escola até o 3ª ano do Ensino Fundamental. Nosso ponto de partida, a prática social baseada no nível de desenvolvimento atual dos educandos, foi o jogo. Durante a proposta pedagógica, os alunos foram estimulados a ouvir, ler e recontar histórias, vivenciar movimentos de arremesso, recriar regras do jogo e construir um texto coletivo sobre o jogo realizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A concepção de alfabetização e letramento que advogamos neste estudo se fundamenta em Freire e Macedo (2015, p. 50), no qual a alfabetização, ao mesmo tempo em que possibilita a apropriação do código alfabético, também oferece uma precondição para a organização e a compreensão da natureza socialmente elaborada da subjetividade e da experiência, além de para a avaliação de como o conhecimento, o poder e a prática social podem ser moldados coletivamente a serviço da tomada de decisões que sejam instrumentos para uma sociedade democrática e não meramente concessões à classe dominante. Nessa compreensão de alfabetização como emancipação humana é que estabelecemos sua relação não somente com a Educação Física, mas com qualquer outra disciplina e área do conhecimento presente na escola. Portanto, conhecer como e de que modo se produz o significado das ações, dos movimentos corporais e dos elementos que compõem a cultura corporal no interior das relações de poder também é letrar e alfabetizar.

A função do professor nesse processo é de ser mediador do conhecimento, fundado no diálogo professor-aluno, aluno-mundo como uma construção coletiva do conhecimento. Para Freire e Macedo (2015), o professor deve propiciar aos alunos a oportunidade de examinar diversas linguagens ou discursos ideológicos, criar condições de sala de aula necessárias para a identificação e a problematização das maneiras contraditórias de ver o mundo que os alunos usam para a construção de sua própria visão do mundo. Assim, compreendendo que a escola não é apenas um eixo de conhecimento, mas um campo de linguagens, a Educação Física e o trato do conhecimento corporal não podem ser coadjuvantes nesse processo. Isso significa entender a Educação Física como possibilidade de leitura do mundo por meio dos elementos da cultura corporal e, ao mesmo tempo, o corpo ser o mediador do processo de leitura e escrita, pois está presente em todo o desenvolvimento simbólico como esfera da comunicação, representação e expressão da subjetividade e totalidade humana.

Entendemos que a Educação Física, sendo uma prática social, pode ser mais um agente de letramento na escola. Assim, quando perguntamos aos sujeitos que concepções de alfabetização norteiam sua prática pedagógica em Educação Física, nosso objetivo era observar se esses professores orientam suas atividades docentes numa visão de letramento que propomos com este estudo: uma prática social que extrapola o mundo da escrita, mas que é consequência da reflexão que o homem faz sobre sua própria posição no mundo e com o mundo. O trabalho da alfabetização seja ela realizada pelos professores pedagogos ou por qualquer outro professor, só é válido e tem sentido, nos dizeres de Freire e Macedo (2015), quando a palavra é compreendida pelo homem como força de transformação do mundo.

 

REFERÊNCIAS

CASTELLANI FILHO, L. et. al. Metodologia do ensino de educação física. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

FAZENDA, I. C. A. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2011.

FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

GASPARIN, J. L. Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2007.

GOIÂNIA (Cidade). Secretaria Municipal de Educação. Proposta político-pedagógica para a educação fundamental da infância e da adolescência: ciclos de formação e desenvolvimento humano. Goiânia: Secretaria Municipal de Educação, 2008.

KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. 2. ed. Campinas: Mercado das Letras, 2012.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SOARES, M. Alfabetização e letramento. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

______. Letramento: um tema em três gêneros. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

______. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

VYGOTSKY, L. S.; LEONTIEV, A.; LURIA, A. R. Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. São Paulo: Centauro, 2007.

______. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 13. ed. São Paulo: Ícone, 2014.

[1]Utilizaremos pronomes e artigos definidos no feminino, uma vez que todos os sujeitos-professores encontrados na pesquisa são mulheres.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *