Editorial

Às vésperas do segundo turno de uma eleição presidencial que irá definir os rumos do Brasil no próximo quadriênio, é que nós educadoras(es) progressistas nos propusemos a publicar a Edição Especial sobre Educação para a Democracia da Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB). Desde 2014, nos chamou muita atenção um cenário de polarização política com crescente apatia do povo brasileiro pela política representativa. Isso, de certa forma, foi intensificado de forma mais acentuada e tornando-se mais explícito nas eleições municipais de 2016.

Na conjuntura da atual eleição presidencial, é perceptível o fortalecimento nos meios político e social, do conservadorismo embutido de um fascismo camuflado. Isso porque, ao mesmo tempo que determinado projeto ideológico ganha força defendendo os direitos tradicionais da família, defende-se, também, que devemos ensinar as crianças de cedo a matar, reforçando o discurso da intolerância e criminalizando a diversidade em apelo a necessidade de uma processo de homogeneidade social, que será benéfico a uma certa parcela da sociedade brasileira intitulada de “os cidadãos de bens”.

Esse cenário somado a forte deseducação política que os grandes meios de comunicação nacional propagaram nos últimos anos, tende a reforçar que se urgentemente não investirmos esforços na educação política de nosso povo, estaremos caminhando para a barbárie. E por isso, compreendemos que o Estado é uma instituição imprescindível na humanização de nossa sociedade, e sem ele como diz a filósofa Hannah Arendt, a sociedade seria um caos.  Por esses e vários outros motivos, devemos lutar contra a proliferação de projetos políticos totalitários e liberais, visto que, a centralização de poder nas mãos de poucos poderosos e/ou redução dos papéis do Estado e dos serviços prestados diretamente por suas instituições a favor de seu povo, nos leva a uma condição de vida submissamente banal, com pouca voz no plano político e pouca vez no usufruto dos direitos sociais. Garantir-nos voz e vez nos ajudará a alcançar a superação das marginalidades e injustiças historicamente mundanas.

Como nem tudo está perdido e para demonstrar que ainda é possível ter esperança, gostaríamos de compartilhar brevemente nossa experiência com a implementação de projetos educacionais voltados para a formação política de crianças e jovens aqui no Brasil. No ano de 2017, um grupo de professores(as) composto de representações de todos os estados brasileiros, teve oportunidade de participar do curso Missão Pedagógica no Parlamento. O curso, organizado pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (CEFOR) da Câmara dos Deputados, é voltado para professores(as) da rede pública e oferece formação em educação para democracia. Professores(as) de todas as áreas do conhecimento podem participar – inicialmente, o critério para seleção é sorteio para o curso online e, em seguida, os melhores classificados vão para a fase presencial em Brasília; o terceiro momento é a elaboração de um projeto de intervenção em seus locais de trabalho. Foi durante a fase presencial, pela intensa troca de experiências entre os professores, que nasceu a ideia de elaborarmos um livro com os diferentes projetos que cada um vinha executando em sua localidade.

A iniciativa visa o fortalecimento das ações de educação para democracia em todo país, possibilitando um aumento do alcance dos projetos em curso, em diálogo com professores(as)em todo Brasil. Nós, professores(as), sofremos constrangimentos estruturais na execução de determinados projetos, em especial quando seu cerne é a ressignificação do espaço escolar e das relações entre os sujeitos. As iniciativas desses professores(as)missionários da democracia é dar uma palavra em contrário a uma postura de conformismo com as práticas hegemônicas: o docente não está sozinho no questionamento e conscientização dos educandos sobre as estruturas autoritárias.

A publicação dessa Edição Especial da RBEB, conta com experiências vividas por educadores(as) ao longo do Missão Pedagógica no Parlamento e, também, textos de outros educadores(as) convidados. Em geral os artigos se aproximam de um eixo central, pois a essência  que compõe as análises, tem como objetivo : refletir sobre a escola e qual educação queremos. O dossiê apresenta diferentes artigos que buscam discutir questões fundamentais na narrativa de uma concepção progressista da educação e da promoção do cotidiano escolar em resistência a um discurso autoritário, propondo o diálogo na busca da construção de um ambiente escolar e de relações pedagógicas pautadas nos princípios éticos, estéticos, políticos e democráticos.

Na primeira parte da publicação, fazemos uma reflexão sobre as concepções educacionais que permeiam a educação para democracia. O texto Queremos educação para democracia?, escrito por Marina Muphy Diniz, propõe uma reflexão a respeito da relação entre violência e escola para pensar as relações autoritárias a que estamos habituados no ambiente escolar. O questionamento central é: queremos educação para democracia quando nos comportamos de forma autoritária? Pensando que a educação para democracia pressupõe um modelo de relações pautadas pela igualdade e pelo diálogo, essa reflexão é colocada para questionar nossas práticas cotidianas no meio escolar.

Para contribuir com essa reflexão, o Otavio Henrique Ferreira da Silva debate a temática Educar para a cidadania: o que diz a legislação brasileira?, onde realiza uma discussão a respeito da legislação educacional e os documentos norteadores do papel da escola. O texto traz à luz a discussão o caráter cidadão atribuído à escola, e não meramente tecnicista, que propõe a formação de novas gerações capazes de elaborar sua própria reflexão crítica a respeito do mundo que o cerca e de atuar politicamente nele/sobre ele. É demonstrado que, de acordo com os documentos legais que pautam a concepção de educação nacional, educar para cidadania não é ensinar apenas que tem que votar, mas sim o reconhecimento da necessidade de participar politicamente, formando um cidadão consciente. Esse caráter essencialmente público entra em choque com propostas conservadoras, como o Programa Escola sem Partido, que descaracteriza o papel de formadora de cidadãos críticos e conscientes da escola, segundo o que estabelece a legislação.

Nesse sentido, o artigo Teoria e praxis na educação para direitos humanos, de autoria de João Paulo Lisbão Nanô, demonstra a importância da valorização dos direitos humanos no cotidiano escolar e sua aproximação do cotidiano dos alunos, desmistificando ideias do senso comum que direitos humanos são apenas para uma parcela da população. O autor nos traz os marcos legais que construíram os ideais por de trás dos direitos humanos, a fim de subsidiar uma discussão para além das noções pré-concebidas e possibilitar que os sujeitos reconheçam a importância de proteger os direitos que defendem todas as pessoas, bem como, deles próprios.

Para encerrar a discussão sobre o modelo de escola que queremos, apresentamos o artigo O privatismo como obstáculo à educação para a democracia, de Marcelo Oliveira Souza que reflete sobre a interferência de corporações em escolas públicas, onde, com a proposição de acabar com “todos os males da educação”, acaba com o caráter público da instituição, instalando uma estrutura burocrática e autoritária em um espaço que deveria primar pela equidade e pelo diálogo. A discussão é feita a partir do modelo escolar proposto pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educação – ICE, que atua como ‘consultor’ nas escolas de São Paulo e outros estados brasileiros. Com uma ideologia empresarial, o modelo do privatismo se coloca como um entrave à concretização da educação para a democracia no chão da escola.

Na segunda parte da publicação, encontram-se alguns relatos de experiências de educação para democracia. E o primeiro deles, trata-se do texto Ensinar e Viver o que é Democracia numa Escola do Ensino Médio, em que o professor de sociologia Alessandro Cavassin Alves relata sua experiência com a implementação de um projeto em sua escola. Nesse texto, o autor faz uma importante reflexão sobre a necessidade de que a educação para democracia não seja apenas um conteúdo formal, mas que se estabeleça enquanto uma prática interrelacional entre os sujeitos que ocupam o ambiente escolar.

No texto de nome O desafio de promover a integração do conhecimento com o protagonismo dos educandos, a professora Alessandra Soto, de São Paulo, analisa um pouco sobre uma experiência pedagógica. A autora traz evidencia os processos de execução de projetos que visam o fortalecimento da educação para democracia, refletindo o sentido da abordagem do assunto em nosso contexto social, passando pela importância na luta por um ideal de equidade e que só pode ser atingido através do fortalecimento do espaço público. Para isso, Soto (2018) coloca a importância de desenvolver e fortalecer os 3 C’s: compromissos, capacidades e conexões democráticas.

Em seguida, no texto  Sujeito Integral para uma escola em tempo integral: uma visão freireana para a educação integrada em Ibirité-MG, os(as) professores(as) Franciele Bessa, Juarez Valadares e Thaís Andrade nos apresentam a experiência da Escola de Helena, em que alunos atendidos pela Rede Municipal e Estatual realizam atividades no contraturno em consonância ao Programa Novo Mais Educação. A escola oferece diversas atividades para os alunos, assim como um atendimento multisetorial, em que os estudantes sejam acolhidos e possam ressignificar sua relação com o espaço escolar e com o saber. Essa ressignificação fica expressa nos depoimentos de estudantes que frequentam a Escola Helena, mostrando que, quando repensamos a prática escolar, o discente também tem a oportunidade de repensar seu ser e estar no mundo, atribuindo sentido ao seu pertencimento àquele lugar que o acolhe enquanto sujeito.

Para fechar a sessão de relatos, é apresentada a experiência internacionalmente reconhecida e premiada, sob coordenação da professora Gina Vieira Ponte de Albuquerque, no Projeto Mulheres Inspiradoras.  Com o texto, A formação de sujeitos de direitos: o Projeto Mulheres Inspiradoras e o poder transformador da educação, Gina relata o percurso de um trabalho de empoderamento feminino aliado ao desenvolvimento das capacidades leitora e escritora em alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, valorizando seus saberes e sua capacidade criativa, buscando refletir também sobre os estereótipos pejorativos sobre as mulheres em nossa sociedade ocidental. Este projeto é realmente inspirador! E merece ser lido a apreciado por  todas e todos educadores(as) comprometidos com o fomento da criticidade em seus alunos e na ressignificação das relações entre alunos, corpo docente e comunidade escolar que propicie um ambiente de integração, participação e desenvolvimento intelectual.

Na seção 3 desta Edição Especial da RBEB, apresentamos duas resenhas de livros inspiradores para o fortalecimento das ações democráticas nas escolas. A primeira resenha foi escrita pelo professor Dr. Ademilson de Sousa Soares da UFMG sobre o livro Educação para democracia: relatos inspiradores das professoras e professores do Brasil, escrito por diversas mãos educadoras de nossos(as) professores(as) do Brasil. A segunda resenha, escrita pela professora Ms. Marize Marques de Freitas, analisa o livro A garotada ocupando a representação política, que procurou apresentar relatos de experiências sobre ações de sensibilização políticas de crianças e jovens do Ensino Fundamental na cidade de Ibirité, em Minas Gerais.

O eixo que conecta os autores desses trabalhos entre si e seus leitores é o fortalecimento do mundo político em tempos de esvaziamento da esfera pública. Isso se dá nas reflexões, nos trabalhos e projetos que fortificam as ações de educação para a democracia, que ressignificam as relações entre os atores sociais do campo educacional, sejam eles alunos, comunidade escolar ou corpo escolar. Essa ressignificação tem como norte a revisão das práticas sociais, em consonância com valores democráticos como a participação, a equidade, a horizontalidade do poder na tomada de decisões e, particularmente, a valorização da pluralidade. Em um país com fortes práticas autoritárias e conservadoras, constitui-se como um desafio repensar a forma como atuamos na educação.

Enquanto dimensão essencial da socialização humana, a educação reflete os conflitos sociais e estruturas herdadas da história de uma determinada cultura. As conquistas progressistas obtidas ao longo dos anos, a partir do trabalho e engajamento da sociedade civil, deram voz a grupos antes silenciados do mundo público: mulheres, negros, LGBTTQI, pessoas de baixa renda entre outros grupos que desenvolveram mecanismos e ações coletivas para se fazer representar politicamente. Enquanto uma comunidade cultural, ainda temos um longo caminho para que o acesso aos mecanismos de poder seja realmente igualitário para os indivíduos e grupos antes marginalizados da sociedade.

A educação para democracia é, nesse sentido, mais uma forma de garantir e expandir a igualdade de fato entre os membros da sociedade, pautando-se na importância de atribuir sentido à nossa existência comum, em uma esfera pública em que todas e todos estejamos presentes e atuantes.

Marina Murphy Diniz
Otavio Henrique Ferreira da Silva

Belo Horizonte, 25 de outubro de 2018

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *