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As orientações curriculares no ensino fundamental

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Isabela Bilecki da Cunha

Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (2007 e 2015) e pedagoga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Atua como diretora de escola na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

E-mail: isabelabc@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A pesquisa concluída no ano de 2015 partiu da revisão histórica sobre as reformas curriculares voltadas aos anos iniciais do ensino fundamental na rede pública municipal de São Paulo, tendo como foco as medidas adotadas na gestão 2005-2012, que levaram à criação do documento de orientação curricular da rede, Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem, no ano de 2007[1]. Entre 2013 e 2014 também foi realizada uma pesquisa de campo em duas escolas de ensino fundamental, envolvendo análise documental e entrevistas com professores e coordenadoras pedagógicas, além de técnicos que atuaram na gestão referida no intuito de analisar o impacto da implantação do documento na elaboração dos currículos das escolas.

O currículo é uma construção coletiva realizada no âmbito escolar. Porém, essa elaboração envolve também fatores externos às instituições de ensino que devem ser considerados para entender sob quais influências e condições as equipes das escolas elaboram seus currículos (SACRISTÁN; GÓMEZ, 1998). A criação do documento Orientações Curriculares/2007 foi muito importante para a rede municipal de São Paulo por se tratar de um referencial que articulou o conjunto dos conteúdos que devem ser trabalhados no ensino fundamental com as práticas docentes e as avaliações externas. A necessidade de uma formulação explícita de orientações curriculares para a rede municipal nesse período pode provavelmente ser explicada pela crescente influência das avaliações externas nas formas de gestão do currículo. As formações docentes e a consideração dos desempenhos das escolas nas avaliações de sistema não teriam sido suficientes para alavancar significativamente os resultados de aprendizagem, conforme indicavam as aferições feitas junto aos alunos (BROOKE; CUNHA, 2011).

O documento tenta conciliar uma concepção aberta de currículo com as pressões provenientes do sistema escolar pela homogeneização e periodização mais acentuada das práticas curriculares. Em última instância, as Orientações Curriculares/2007 se deixam conduzir pela lógica do ensino por competências, expressa em sua estrutura, seus textos e seus referenciais. São procedimentos técnicos que buscam amarrar em uma lógica linear a formulação de expectativas aos conteúdos que pretensamente as desenvolverão, às abordagens necessárias e às formas pelas quais elas serão avaliadas. (CUNHA, 2015, p. 91)

OS PROPÓSITOS DAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES NA PRIMEIRA ETAPA DO ENSINO FUNDAMENTAL

As Orientações Curriculares/2007 buscam, pois, explicitar o que se espera que deve ser ensinado pelos docentes e aprendido pelos alunos nos diferentes anos de escolaridade, marcando mais claramente a periodização do currículo dentro dos dois ciclos. A despeito da crítica à tendência de tecnicização do currículo, o material da prefeitura parece, de modo geral, ter boa aceitação entre os docentes. Os professores pesquisados, em sua maioria, consideram a introdução das Orientações Curriculares/2007 como um aspecto positivo dentre as mudanças realizadas pela gestão. Segundo alguns entrevistados, faltava um “norte” para o planejamento dos caminhos da educação no município, e, individualmente, os docentes se sentiam inseguros quanto às decisões tomadas em relação ao currículo de cada turma. A própria concepção dos ciclos na rede, aliada à perspectiva construtivista, deixava o planejamento do currículo a critério da escola e de seus professores, levando à suposição de que o processo de aprendizagem seria conduzido basicamente pelo ritmo dos alunos, sem delineamentos mais claros para avançar com as turmas e tampouco sem oferecer indicações sobre o seu compassamento, ou seja, sobre o tempo que deve assumir a abordagem dos conhecimentos dentro de cada ciclo.

Outro aspecto relevante ao tratar da influência das Orientações Curriculares/2007 no currículo elaborado pelas equipes das escolas é o grau de autonomia oferecido no que diz respeito à possibilidade de adequações do documento prescrito à realidade das salas de aula. A heterogeneidade dos alunos leva à necessidade de propor um currículo que atenda, ou que se proponha a atender, suas especificidades.

Tardif e Lessard (2007) argumentam que a efetivação dos programas escolares passa necessariamente pelas interpretações e adequações dos professores diante das condições apresentadas pelo contexto de ensino. Segundo os autores, poderão ser feitas alterações nos programas no âmbito escolar. O que pode, no entanto, representar real mudança na garantia do direito à educação dos alunos incluídos hoje nas escolas, é a proposição de um currículo que oportunize boas situações de aprendizagem para todos.

Dessa forma, tanto a demanda de unificação do currículo, quanto a necessidade de diferenciá-lo parecem estar no cerne da discussão sobre as reformas curriculares e a justiça escolar. A vantagem observada nas Orientações Curriculares/2007, por meio da fala dos entrevistados, é que muitas adequações às demandas diferenciadas de aprendizagem dos alunos já são previstas pelo documento e sugestões de como trabalhar com elas são incorporadas ao material oferecido.

PROBLEMATIZANDO O DOCUMENTO

Apesar das opiniões positivas acerca da importância das Orientações Curriculares/2007, os professores e as coordenadoras pedagógicas foram também questionados sobre alguns aspectos do documento que geraram diferentes interpretações entre eles. Quanto ao número de expectativas para cada área do conhecimento, por exemplo, há opiniões diversas. Para se ter uma ideia, em Língua Portuguesa há, ao todo, noventa e sete expectativas gerais a serem alcançadas até o 5º ano do ensino fundamental. Em Matemática, sob outra estrutura, há uma média de trinta e cinco expectativas a serem alcançadas em cada um dos cinco anos iniciais do ensino fundamental. Durante o trabalho de campo observou-se que o grande número de expectativas e sua disposição no documento acabou por dificultar a apropriação do conteúdo das Orientações Curriculares/2007, tornando esse processo, em alguns momentos, confuso.

As Orientações Curriculares/2007 de Língua Portuguesa voltadas aos anos inicias do ensino fundamental estão divididas em modalidades de escrita e leitura. Delas constam expectativas gerais (em leitura, produção escrita, análise e reflexão sobre a língua e linguagem, escuta/produção oral, sistema de escrita alfabética e padrões de escrita) e expectativas para cada ano do ciclo, referentes às esferas cotidiana, escolar, jornalística, literária (em prosa e verso). Ainda que haja a justificativa de que as expectativas estão integradas, e certamente isso facilita o seu tratamento, os professores dos anos iniciais necessitariam consultar o documento frequentemente para retomar as próximas expectativas a serem atingidas. Nesse processo, muitas expectativas e seus conteúdos acabam ficando de fora pela escolha arbitrária a que o seu enunciado fragmentado pode induzir. Tampouco a sequência do que deve ser ensinado fica clara no formato adotado.

Como a área de Língua Portuguesa foi amplamente explorada, ela termina por ser privilegiada pelo relativo domínio de seus conteúdos entre os professores. Como já sinalizado, houve grande ênfase da gestão no trabalho pedagógico relacionado ao domínio progressivo da leitura e escrita, justificada pela baixa proficiência dos alunos do ensino fundamental.

No período foram produzidos também materiais na área de conhecimento da Matemática para professores e alunos das turmas atendidas, no entanto eles não tiveram a mesma ênfase nos cursos de formação e nas metas propostas. Também houve investimento em cursos referentes ao ensino da Matemática, além da verificação da aprendizagem por meio de sondagens destinadas aos alunos dos anos iniciais do ensino fundamental sobre a construção do número e a resolução de problemas. Esse novo enfoque pode ser explicado, em parte, pelos resultados insatisfatórios que a rede vinha apresentando nas avaliações externas.

“Na opinião de alguns docentes, as medidas da gestão pareceram insuficientes para uma mudança significativa na abordagem dos saberes matemáticos”. Embora as Orientações Curriculares/2007 nessa área contemplassem os temas a serem trabalhados, alguns professores tinham dificuldade de lidar com eles nas aulas.

As Orientações Curriculares/2007 propuseram a articulação das áreas de Ciências, História e Geografia nos anos iniciais do ensino fundamental em um campo de conhecimento chamado Natureza e Sociedade. Essa disposição foi mantida na formulação dos Cadernos de Apoio e Aprendizagem, introduzidos no segundo semestre de 2012. A percepção que os docentes têm em relação ao campo de Natureza e Sociedade pode ser entendida a partir do seu contexto de implantação. A grande ênfase dada ao ensino da leitura e escrita nos primeiros anos da gestão acabou por obscurecer as outras áreas. A discordância de alguns professores diante da abordagem proposta pelo campo de Natureza e Sociedade foi feita em um contexto pouco favorável à sua adesão quando comparado aos esforços empregados no processo de revisão do ensino na área de Língua Portuguesa. Observou-se alguma atenção à Matemática, que também figura nas avaliações de sistema, mas o próprio esforço da administração no sentido de fornecer um programa de estudos com orientações mais precisas para o trabalho disciplinar em História, Geografia e Ciências não recebeu o devido impulso no âmbito das próprias equipes gestoras e não tem sido sinalizado como um passo importante a ser dado na efetivação das práticas docentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa com os docentes e as coordenadoras pedagógicas das escolas indicou que a implantação do documento Orientações Curriculares/2007 foi, no geral, bem avaliada por eles. A proposição de um programa curricular que dialogue com o conceito de competências, pressupondo que a escola deverá propor intervenções que assegurem a mobilização de saberes dos alunos, se mostrou mais coerente com a construção de um currículo que considere as características e necessidades da clientela atendida. As Orientações Curriculares/2007 parecem não impor um caminho único a ser seguido pelas equipes pedagógicas, mas, seguindo sua estrutura, podem referenciar a formulação de currículos no âmbito escolar que proponham oportunidades educativas de qualidade, visando o domínio de conhecimentos fundamentais para a formação de todos os alunos.

Assim, o documento Orientações Curriculares/2007 pode ser tido como uma das medidas mais significativas da gestão estudada. Ele sintetiza um movimento de reforma curricular na rede, iniciada por programas que visavam, além da revisão de práticas na área da aquisição da leitura e da escrita, o alinhamento dos currículos das escolas com ações da rede como a formulação das avaliações externas. Ainda que o documento não se constitua em um instrumento cotidiano da prática de coordenadoras pedagógicas e professores participantes da pesquisa, há evidências de que ele subsidiou a formulação do planejamento das turmas. Assim sendo, ele pareceu cumprir uma função importante como referencial mais abrangente para a construção dos currículos no âmbito escolar. Nesse sentido, o formato mais diretivo e compartimentado das expectativas de aprendizagem foi retraduzido, norteando a formulação dos currículos organizados pelas equipes e assumindo um caráter mais flexível diante das especificidades das escolas e da necessidade de garantia de parâmetros mínimos de aprendizagem aos alunos que apresentam maiores dificuldades.

 

 

 

REFERÊNCIAS  

BROOKE, N.; CUNHA, M. A. A. A avaliação externa como instrumento da gestão educacional nos estados. Estudos e pesquisas educacionais. São Paulo: Fundação Victor Civita, 2011.

CUNHA, I. B. O currículo escolar e as reformas na rede pública municipal de São Paulo. 2015. 389 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

SACRISTÁN, J. G.; GÓMEZ, A. I. P. Compreender e transformar o ensino. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica. Orientações curriculares e proposição de expectativas de aprendizagem para o Ensino Fundamental: ciclo I. São Paulo: Secretaria Municipal da Educação, 2007.

TARDIF, M; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2007.

[1]Neste artigo usaremos a expressão “Orientações Curriculares/2007” para nos referir a esse documento.

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