Braille

Algumas reflexões sobre a aprendizagem de leitura e escrita no sistema Braille sob a ótica da linguística em Saussure

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Carla Roberta Sasset Zanette

Formada em Letras pela Universidade de Caxias do Sul. Atua como professora de Língua Portuguesa na Escola Municipal de Ensino Fundamental Governador Roberto Silveira, Caxias do Sul, RS. Mestra em Educação e Doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul.

E-mail: crsasset@ig.com.br

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Fernanda Ribeiro Toniazzo

Graduada em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul. Sócia Fundadora do INAV – Instituto da Audiovisão- desde 2009. É coordenadora do Programa de Estimulação Precoce, do Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência e suas Famílias, e do Programa Integração no Mundo do Trabalho. Mestra em Educação e Doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul.

E-mail: fernandatoniazzo@gmail.com

INTRODUÇÃO

A Política Nacional de Educação tem como finalidade atender aos interesses da sociedade em busca de uma educação de qualidade para todos os estudantes. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, visa assegurar e promover, em condições de igualdade, a inclusão social e cidadania dessas pessoas.

As pessoas com deficiência visual e as com deficiências de um modo geral vivenciam ainda hoje muitas situações de desigualdade de oportunidades, e alterar isso é um importante desafio social e político. Dessa forma, são necessários mais estudos na área, bem como formação qualificada de profissionais para atender às especificidades dessa população.

No processo de leitura e escrita das pessoas com deficiência visual, demandam-se procedimentos pedagógicos compatíveis com suas especificidades. Nesse sentido, o sistema Braille é um dos meios utilizados por essas pessoas.

O sistema de leitura e escrita, a partir da óptica da teoria do valor de Saussure (SAUSSURE, 2012), postula os signos linguísticos numa relação diferencial e negativa entre si dentro do sistema da língua, em que um signo só adquire valor na medida em que não é outro signo.

Pensar na aprendizagem de leitura e escrita é no mínimo desafiador e instigante, na medida em que possibilita refletir sobre a construção de sentido.

Alliende e Condemarín (2005) esclarecem que falar em leitura é falar em compreensão de sentido. Esses autores reconhecem que a decodificação, ou seja, o reconhecimento do signo é uma etapa anterior e necessária à compreensão. Conforme propõem:

Toda leitura, propriamente dita, é, pois, compreensiva. Aprender a ler é aprender a compreender textos escritos (a decodificação é somente uma base inicial necessária). Desse modo, uma pessoa aprende a ler só quando é capaz de compreender uma grande variedade de textos escritos, e em particular aqueles que são necessários ao seu desenvolvimento pessoal e social. (ALLIENDE; CONDEMARÍN, 2005, p. 26).

Alliende e Condemarín (2005) e Kleiman (2001) afirmam que leitura é uma atividade cognitiva que envolve percepção, processamento, memória, dedução e inferência. No ensino da leitura, é preciso que haja coerência entre os pressupostos teóricos e a ação pedagógica, os quais, em um processo de interação, possibilitam o “reconhecimento do aluno enquanto sujeito leitor, e não como mero decodificador, o reconhecimento do professor enquanto adulto modelo desse leitor”. (KLEIMAN, 2001, p. 9).

No que diz respeito à escrita, esta representa uma das formas complexas de produzir um discurso, uma vez que envolve planejamento e organização do pensamento, além do domínio do sistema linguístico a ser utilizado. Para Colomer e Camps (2002), a possibilidade de usar a língua escrita implica uma organização entre pensamento e linguagem que, mediados pela escrita, permitem a conversão das interpretações da realidade em algo material e articulado, favorecendo dessa forma a apropriação do conhecimento. Por certo, ensinar a transpor a organização do pensamento para o registro escrito das ideias organizadas significa ensinar a pensar. Nessa mesma direção, Toldo (2009) acrescenta que o ato de produzir textos via escrita representa um instrumento do pensamento reflexivo e, portanto, condição necessária para as operações intelectuais.

SISTEMA BRAILLE DE LEITURA E ESCRITA

Louis Braille iniciou seus estudos no Instituto de Paris em 1819, e em 1825, aos 16 anos, criou o código de escrita e leitura que acabou recebendo o nome de Sistema Braille de Leitura e Escrita.

O sistema Braille é um código baseado em 64 símbolos em relevo, resultantes da combinação de até seis pontos organizados em duas colunas de três pontos cada. Por esse sistema, é possível representar todas as letras do alfabeto, os algarismos, os sinais de pontuação, as notas musicais, entre outros. Para melhor compreensão do sistema Braille, segue a Figura 1.

Figura 1 – Alfabeto

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Fonte: Venturini (2015)

Caso o leitor sinta-se motivado a conhecer um pouco mais sobre o sistema Braille, citamos outras referências, cuja consulta pode ser realizada pela internet: Fundación ONCE para la atención a las personas ciegas de América Latina (FOAL) (Espanha);  Instituto Benjamin Constant (RJ) e Fundação Dorina Nowill (SP).

No Braille, cada letra é representada por uma combinação de pontos, assim as pessoas com deficiência visual conseguem ler devido à quantidade de receptores táteis existentes nas pontas dos dedos, os quais são transmitidos ao cérebro em sua totalidade.

A aprendizagem do sistema Braille acontece por meio de instrumentos chamados reglete[1] e punção[2], ou por meio da máquina Braille, a qual torna a escrita mais veloz, tendo em vista que com a reglete cada um dos pontos que constitui uma letra é feito individualmente, enquanto a máquina Braille faz todos os pontos que constituem a letra de uma só vez.

Em 1844, aos 10 anos de idade, José Alvares de Azevedo, nascido no Rio de Janeiro, foi estudar em Paris no Instituto dos Meninos Cegos de Paris, onde aprendeu o sistema Braille. Mais tarde trouxe ao Brasil esse conhecimento, ensinando o sistema a outras pessoas com deficiência visual. Em 17 de setembro de 1854, seis meses após sua morte, foi fundado no Rio de Janeiro o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atualmente Instituto Benjamin Constant (IBC).

Segundo Bruno Sena Martins (2014), o sistema Braille constituiu um marco no acesso à cultura e ao conhecimento pelas pessoas cegas, ou seja, via Braille, as pessoas cegas puderam adquirir acesso à informação.

REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DO VALOR DE SAUSSURE E O SISTEMA BRAILLE DE LEITURA E ESCRITA

Foi pela obra Curso de linguística geral, editada após a morte de Saussure por Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaboração de Albert Riedlinger, que se tornou conhecida sua teoria acerca da linguagem. O livro foi baseado em notas de alunos feitas ao longo de cursos oferecidos pelo linguista entre 1907 e 1911. Alguns anos mais tarde, mais propriamente em 1996, foram encontrados manuscritos de Saussure, os quais foram revelados no livro Escritos de linguística geral, publicado em 2002, organizado por Simon Bouquet e Rudolf Engler.

Nesses manuscritos, o mestre genebrino refere que “língua e linguagem são apenas uma mesma coisa: uma é a generalização da outra”. (SAUSSURE, 2002, p. 128).

Na perspectiva de Saussure (2002), a língua é um fato social, seguindo as normas de determinada sociedade em determinado período de tempo. “É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”. (SAUSSURE, 2012, p. 41).

Seguindo essa linha de pensamento, é fazendo parte de uma sociedade e ouvindo sua língua que a apreendemos, constituindo-nos como sujeitos de linguagem.

Para Saussure (2012), língua e fala estão conectadas: uma depende da outra, já que fala é o instrumento e o produto da língua, fazendo-a evoluir.

Sendo a língua um sistema de signos, é na relação e na diferença com os outros do sistema que se dá a significação. Isto é, a significação se dá pela negatividade. Sendo assim, podemos refletir sobre o sistema Braille, estreitando-o com o conceito de valor, na medida em que os valores dependem um dos outros na sincronia do sistema, ou seja, são de oposição, definindo-se pela sua diferença.

A letra A, ponto 1 no sistema Braille, não é a letra B, pontos 1 e 2, e não é a letra C, pontos 1, 2 e 4, e assim sucessivamente. Ou seja, as letras definem-se pela diferença entre elas, mas o ponto 1 pode ser a letra A e também pode ser o número 1, da mesma forma que a letra B pode ser também o número 2, o que depende do sentido do texto em que ele está inserido, isto é, do valor que recebe no texto.

Uma palavra só existe verdadeiramente, de qualquer ponto de vista que se adote, pela sanção que recebe, a cada momento, daqueles que a empregam. É isso que faz com que ela difira de uma sucessão de sons, e que difira de outra palavra, mesmo composta da mesma sucessão de sons. (SAUSSURE, 2012, p. 76).

Para explicar como se dá a relação dos signos no sistema (língua), Saussure (2012) apresenta a teoria do valor. Para o mestre genebrino, a língua é um sistema de valores e para explicar melhor essa ideia ele utiliza uma comparação com o jogo de xadrez: “uma posição de jogo corresponde de perto a um estado da língua. O valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos” (SAUSSURE, 2012, p. 130). Segundo essa analogia, o que define cada peça é seu valor no jogo, isto é, sua oposição em relação às outras peças do jogo. Pode-se pensar que isso ocorre também com o código Braille.

Nos Escritos de linguística geral (2002, p. 30), Saussure considera que o valor exprime o que é a essência da língua, “uma forma não significa, mas vale: esse é o ponto cardeal. Ela vale, por conseguinte ela implica a existência de outros valores”.

Benveniste (2006, p. 31), referindo-se à teoria do valor em Saussure, relata que a linguagem é forma e não substância:

Os dados da linguagem não existem senão por suas diferenças, eles não valem senão por suas oposições. Pode-se contemplar uma pedra em si, localizando-a na série dos minerais. Enquanto que uma palavra, por si mesma, não significa absolutamente nada. Ela não é senão por oposição, por vizinhança ou por diferenciação em relação a um outro, um som em relação a um outro som, e assim por diante.

Barbisan (2012) em seu texto “O sentido no discurso: o olhar da teoria da argumentação na língua” assevera que, para Saussure, a língua só é criada em vista do discurso. Enquanto a língua realiza conceitos isolados, no discurso os conceitos são postos em relação por um indivíduo, propiciando significação de pensamento, produzindo sentido no discurso para outro indivíduo. Esses fundamentos nos fazem refletir sobre a natureza da linguagem e sobre a língua desde o ponto de vista de sistema de signos com ordem própria, proporcionado pela noção de valor, dando sentido à linguagem.

Pode-se pensar que a relação dos conceitos se dá na realização do discurso também via leitura e escrita, entendidas como um processo de análise, compreensão e produção, em que o sentido do discurso se dá nas e pelas relações entre os signos nos enunciados. O sistema Braille de leitura e escrita não foge a esses conceitos, uma vez que os pontos em relevo, organizados de forma específica, caracterizam as letras, formando palavras, frases e discursos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões teórico-metodológicas propostas neste estudo permitiram pensar na possibilidade de uma investigação que concilia estudos linguísticos de base saussurianas, mais especificamente no que diz respeito às noções de sistema e teoria do valor, sob a ótica da relação de diferença e negação dos signos no sistema linguístico, relacionando-os à aprendizagem de leitura e escrita no sistema Braille.

A opção por este estudo representa, a nosso ver, uma escrita embrionária acerca dessa temática, cuja origem parece iniciar-se neste texto. Dizendo de outro modo, ao realizarmos uma breve pesquisa em torno da investigação referente aos processos de leitura e escrita do Braille a partir da linguística de Saussure, não foram localizadas, até o presente momento, outras escritas que se aproximam do que está sendo proposto neste texto.

Nessa perspectiva, entendemos que refletir sobre esses conhecimentos contribuem para a elevação da qualidade da escola básica no Brasil, especialmente na perspectiva da educação inclusiva, uma vez que as práticas educativas de leitura e escrita do sistema Braille voltadas para a educação de pessoas com deficiência visual dialogam com pressupostos linguísticos saussurianos fundamentados na relação de diferença entre os signos. Em outras palavras, as reflexões propostas incentivam a pensar a aprendizagem do sistema Braille a partir do enfoque linguístico de Saussure, colaborando para o entendimento dessa teoria aliada à prática educacional. Nossas vivências na área educacional, mais propriamente no ensino de língua e no ensino a pessoas com deficiência visual, são desafiadoras e, ao mesmo tempo, motivadoras de reflexões e teorizações sobre nossa prática. Com esse propósito, pensamos contribuir, mesmo que de forma tímida, para a minimização dos desafios educacionais.

 

 

 

REFERÊNCIAS

ALLIENDE, F.; CONDEMARÍN, M. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Trad. Ermani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2005.

BARBISAN, L. B. O sentido no discurso: o olhar da teoria da argumentação na língua. In: DI FANTI, M. da G. (Org.). Enunciação e discurso: tramas e sentidos. São Paulo: Contexto, 2012.

BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília, DF: MEC; SEESP, 1994.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 10 nov. 2016.

COLOMER, T.; CAMPS, A. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Porto Alegre: Artmed, 2002.

ESPANHA. Instituto Nacional de Tecnologías Educativas y de Formación del Profesorado. Guía de la Comisión Braille Española. 2005. Disponível em: <http://www.ite.educacion.es/formacion/materiales/129/cd/unidad_5/m5_
estructura_sistema.htm>. Acesso em: 15 nov. 2016.

KLEIMAN, A. A leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas-SP: Pontes, 2001.

MARTINS, B. S. A modernidade segundo Louis Braille. Revista Benjamin Constant, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 11-22, 2014.

SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

______. Escritos de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2002.

TOLDO, C. O trabalho com a leitura e a escrita na escola. Desenredo, Passo Fundo, v. 5, p. 48-59, 2009.

VENTURINI, J. Louis Braille: sua vida e seu sistema. Deficienciavisual, 4 jan. 2015. Disponível em: <http://www.deficienciavisual.pt/txt-Louis%20Braille-sua%20vida%20seu%20sistema-Venturini.htm>. Acesso em: 8 fev. 2015.

[1] Placa de metal com orifícios, sob a qual se coloca o papel (um pouco mais grosso que o comum) a ser pressionado com a punção.

[2] Instrumento pontiagudo, com a extremidade arredondada, usado para pressionar o papel a partir dos orifícios da reglete, de modo que este não seja perfurado, mas apenas marcado.

This Post Has 4 Comments
  1. Sou pedagoga, gostaria de estar aprendendo mais sobre o sistema braille. Tenho um projeto alfabetizando os alunos cegos com materiais de baixo custo que tem por nome APRENDENDO COM AS MÃOS. Estou executando nas escolas e preciso de um apoio.

    1. Francieli,
      obrigada por comentar nossa publicação! Escreva um artigo para a RBEB nos contando da sua experiência.
      Att.,
      Cláudia C. Fonseca
      Editora RBEB

  2. Olá Francieli, li seu comentário e gostaria de mais informações sobre teu trabalho. Sou psicóloga, trabalho no INAV – Instituto da Audivosião com pessoas com Deficiência Visual e Surdocegueira e gostaria de saber como podemos contribuir com você.
    Att.
    Fernanda Toniazzo

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