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Trajetórias de vida de estudantes da EJA e sua constituição como sujeitos históricos: sentidos das escritas autobiográficas

Danielle Ribeiro Goulart

Danielle Ribeiro Goulart

Mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em educação da Universidade Federal do espírito Santo (2025). Graduada em Pedagogia pela mesma instituição (2023). Integra o grupo de estudos e pesquisa (CNPQ/UFES) Memórias, Narrativas e Histórias das/nas escolas capixabas: diálogos na formação de professores. Integra o grupo de extensão Benzedeiras e Rezadeiras: Saberes narrados e compartilhados (PROEX/FAPES).

E-mail: danir_goulart@yahoo.com.br

Miriã Luiz

Miriã Lúcia Luiz

Pós-doutora em História da Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto/Portugal. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Integra o Núcleo Capixaba de Pesquisa em Educação (NUCAPHE). Coordena o grupo de estudos e pesquisas (CNPQ/UFES) Memórias, Narrativas e Histórias das/nas escolas capixabas: diálogos na formação de professores e o Projeto de extensão Benzedeiras e Rezadeiras: saberes narrados e compartilhados (Proex/Fapes). É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de Educação, Formação Humana e Políticas Públicas. Atua nas áreas de História da Educação, Ensino de História e Formação e prática de professores.

E-mail: mirialuiz@gmail.com

Trata-se de resultados de pesquisa de Mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, que investiga, a partir da escrita de si (Josso, 2006; Passeggi, 2021; Souza, 2018), compreensões dos estudantes de uma turma na Escola Municipal de Ensino Fundamental EJA Professor Admardo Serafim de Oliveira, no abrigo emergencial localizado em Vitória-ES. Investiga as trajetórias de vida dos estudantes na busca pela compreensão da consciência do seu lugar no mundo, buscando no passado, possíveis explicações para suas atuais condições de vida. De acordo com Bloch (2001), incorporar as experiências e perspectivas das pessoas comuns como elementos importantes na história contribui para uma compreensão mais detalhada do passado e do presente. Em termos procedimentais a escrita dos memoriais dos estudantes ocorreu em três dias, durante o mês de dezembro de 2023, por meio da escrita e de narrativas orais, gravadas em áudio e transcritas posteriormente. Ao final da investigação, a pesquisadora entregou uma carta, por ela redigida, aos estudantes, como agradecimento pela participação na pesquisa (Imagem 1).

Imagem 1: Estudante durante a leitura da carta

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2023.

Por meio da leitura dos memoriais rastreamos vivências narradas pelos estudantes em sua constituição como sujeitos e evidenciamos situações de vulnerabilidades vivenciadas por eles, como violência, privação da liberdade, situação de exclusão social, o uso de drogas dentre outras situações.

O que dizem os estudantes da EJA sobre suas trajetórias de vida?

Esses sujeitos não apenas olharam para o passado de maneira crítica, mas também puderam refletir sobre como os eventos, as memórias, as culturas e as experiências influenciaram suas subjetividades, tanto de forma individual quanto coletiva.

Para o estudante R1, por exemplo, recordar sobre a infância lhe remete a ideia da dificuldade social presente em sua vida, o que pode ser ilustrado neste fragmento: “brinquei muito minha infância desde que eu nasci até os 15 anos de idade, comi muito pouco porque na época era muito difício para meus pais” (Trecho do memorial do estudante R1). Para o estudante CL, a título de exemplo, recordar sua infância lhe remete à ideia da violência doméstica, vivenciada por sua família, ao narrar sobre as memórias de seu pai, ele afirma “minha mãe teve 8 filhos. Eu não me lembro de meu pai, pois quando ele faleceu eu tinha apenas 2 anos de idade. Ouvi falar muito do meu pai, mas tudo que ouvi foram coisas ruins, me contaram que ele bebia muito e tinha mulher fora do casamento” (Trecho do memorial do estudante CL). Desta forma, as memórias relacionadas à violência vivenciada por ele e por sua família, podem ter impactos profundos e duradouros no desenvolvimento psicológico, emocional e social das pessoas expostas a esse tipo de experiência. Diante das memórias da infância, ainda que elas apresentem natureza conflituosa e irreparável, em alguma medida, esses estudantes transformaram suas realidades do presente.

Essas transformações foram identificadas em seus memoriais ao narrarem o rumo de suas trajetórias de vida, conforme constatado na narrativa do estudante CL, que afirma ter encontrado o “amor” de que necessitava apenas fora de casa: “comecei a encontrar amor nos colegas que conheci, e foi aí, com 12 anos, que comecei a usar maconha. Também passei a andar armado, assaltando ônibus para comprar drogas”. Para o estudante R1, as situações de violência também transformaram parte de sua trajetória, conforme relata em seu memorial: “meu pai mandou meu irmão mais velho embora de casa. Ele virou bandido e morreu. Também mandou minha irmã mais velha embora, mesmo a gente tendo nascido em berço cristão, por ironia”. Assim, a internalização de exemplos de violência como normalidade pode perpetuar ciclos intergeracionais de agressividade e abuso.

O passado fornece a base para compreendermos o presente, enquanto este molda o nosso olhar interpretativo do passado, conforme podemos perceber nesta narrativa:

Em Divinópolis eu estudava na escola do bairro que não me lembro o nome. Finais de semana íamos para casa de alguns dos meus irmãos e foi nesses momentos que me sentia muito triste, por ser um garoto que não tinha pai e minha mãe era de más condições financeiras, eu era muito rejeitado pelos meus sobrinhos. Nunca recebi carinho da família, aí comecei a encontrar amor dos colegas que conheci e foi aí que com 12 anos comecei a usar maconha (Trecho do memorial do estudante CL).

Os fragmentos mais ínfimos de evidências nas narrativas desses sujeitos, de acordo com Ginzburg (2007), nos ofereceram pistas valiosas sobre o amplo contexto nos quais esses sujeitos estão inseridos, conforme observamos na narrativa do estudante R:

[…] Lembro da minha primeira escola, que na época não tinhamos mochila levava o caderno na sacola de arroz, graças a deus depois de algum tempo as coisas melhoraram por que na época ganhamos um tênis chamado conguinha, onde nós moravamos os meninos brincavam de capoeira e era muito legal (Trecho do memorial).

A vulnerabilidade social e econômica vivenciada por determinados sujeitos pode levá-los, como no caso dos fragmentos do relatado de R a abandonar os estudos para trabalhar: “Lembro que gostava muito de estudar, fui até a 5ª série e comecei a trabalhar, e não conseguia dar continuidade, às vezes porque estava muito cansado”. Percebemos que a fragilidade social presente na vida da estudante já se manifestava desde a infância, o que confirma a marca da exclusão social e da violação de direitos em grande parte das trajetórias desses sujeitos.

As reflexões expressas pelos estudantes em suas escritas autobiográficas constituem elementos fundamentais na construção de sua existência e identidade. Deste modo, observamos que ao narrar o seu percurso escolar interrompido, o estudante percebeu que pelo fato de ter parado de frequentar a escola, não conseguiu seguir os mesmos passos de seu pai, que completou todas as etapas da escola, como pode ser observado com estas palavras do discente:

[…] Aí eu fui só até a quinta série, por causa de que eu já era florista, e o meu pai era sargento da Polícia Militar, ele ganhava R$150 cruzeiro por mês. Então eu acho assim, eu não preciso mais estudar, eu já tenho uma profissão muito boa, eu ganho mais que meu pai, que é sargento, e eu não preciso estudar e abandonei (Zac, trecho do memorial).

Nos espaços sociais e nos espaços da EJA, a inserção desses estudantes como sujeitos históricos por meio da narração de suas trajetórias de vida, emerge do discurso e é contestada diante do silenciamento, das omissões e das resistências que fazem parte das vivências cotidiana dessas pessoas. Desta maneira, o que “não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se destaca e assume o caráter de problema, portanto, de desafio” para esses estudantes (Freire, 1987, p. 41).

As pessoas que frequentam a EJA enfrentam barreiras, tanto estruturais quanto sociais, que dificultam a permanência desses estudantes nesta modalidade educacional, refletindo assim em desigualdades históricas e sociais vivenciadas por esses sujeitos. A falta de escolaridade formal presente na vida de muitos jovens e adultos ainda é percebida por muitos como um sinal de fracasso pessoal. Estigma que ignora as condições socioeconômicas que frequentemente enfrentadas como circunstâncias decisivas do abandono escolar.

A vulnerabilidade social, definida pela insuficiência de recursos materiais e sociais necessários para assegurar condições mínimas de sobrevivência e dignidade, está frequentemente associada a estereótipos negativos, como preguiça, incapacidade ou mesmo envolvimento em atividades ilícitas. Para alguns discentes, a título de exemplo, a pobreza que marcou suas trajetórias foi frequentemente motivo do preconceito sofrido. É o que CL destacou em seu memorial: “Eu era conhecido como o garoto que não tinha boas condições, o pobretão”. De maneira similar, R1 relatou: “Sofri muito preconceito por ser pobre”.

Alguns estudantes relataram que, durante o período em que viveram em situação de rua, enfrentaram hostilidade e discriminação por parte da sociedade devido à sua condição, como destacou o estudante FK, ao afirmar ter sido vítima de discriminação “várias vezes por estar em situação de rua”.

Outro aspecto que contribui significativamente para a permanência das pessoas em situações de vulnerabilidade social é a evasão escolar, reforçando ciclos de desigualdade e exclusão social. A evasão escolar e a consequente inserção em ambientes precarizados, sem suporte comunitário ou familiar adequado, intensificam o período de permanência. Além disso, a falta de oportunidades educacionais e profissionais limita a possibilidade de ascensão social, criando um ambiente propício ao envolvimento com drogas como uma forma de fuga emocional ou pertencimento social, conforme evidenciado nas narrativas de CL:

[…] parei de estudar uns tempos, aí minha mãe me mandou para Serra Dourada I também em Serra onde conheci a mãe da minha primeira filha. Em Serra Dourada I conheci também as drogas “crack”, nesse período tive mais 4 mulheres e tivemos filhos. Tenho 5 filhos mas nunca fui pai, tive cinco mulheres mas nunca fui um marido de verdade (Trecho do memorial).

O envolvimento com as drogas também pode acentuar a situação de exclusão social desses sujeitos, dificultando ainda mais sua permanência nos estudos e o acesso a oportunidades que poderiam romper com o ciclo de fragilidade vivenciado por esses estudantes em determinado momento de suas trajetórias de vida.

Para se inserir e permanecer no mercado de trabalho, a escolarização é um instrumento de acesso de caráter competitivo existente no mundo capitalista que requer uma formação básica dos trabalhadores. Ela não garante, todavia, igualdade de oportunidades entre os sujeitos, principalmente para os mais vulneráveis, que muitas vezes,  são obrigados a improvisar diferentes maneiras de garantir o seu sustento, em atividades marginais, assinaladas pela submissão a baixos salários.

Nessa esteira de pensamento, Arroyo (2014), adverte que, a escola não deve se preocupar apenas com a preparação dos sujeitos para o mercado de trabalho. É necessário, de mesmo modo, promover uma formação que permita aos estudantes da EJA entender a lógica de exploração do trabalho e reivindicar condições dignas.

A experiência de vulnerabilidade frequentemente confronta os indivíduos com questionamentos existenciais profundos, envolvendo dimensões emocionais, sociais, econômicas e culturais que permeiam suas vivências. Nesse contexto, a busca pela religião torna-se recorrente e está associada à necessidade de apoio emocional, espiritual e material, especialmente quando outros sistemas de suporte, como o familiar ou o estatal, são insuficientes ou ausentes.

Segundo Freire (1981), a religião e educação encontram-se intrinsecamente conectadas na medida em que ambas envolvem processos de humanização, libertação e construção de significado. Para muitos, a religião pode ser compreendida como um meio que atende a necessidades específicas— de enfrentamento das adversidades e de atribuição de sentido a contextos marcados pela exclusão e precariedade ao qual estão inseridos. Em muitos casos, a religião representa fonte de apoio e até de emancipação, mas ela pode funcionar também como um mecanismo de controle social, especialmente quando reforça a passividade dos sujeitos. Além disso, pode ser utilizada como uma alternativa para orientar condutas, conforme evidenciado em algumas narrativas relatadas por esses estudantes e no fragmento a seguir:

[…] Aí eu peguei e falei com o meu pastor, que era meu auxiliador lá do projeto. Eu falei que eu queria vir embora, que eu não queria ficar mais lá. Aí ele me pegou e falou: já que você quer ir embora, então você vai. Mas você vai voltar de novo para a droga, porque você vai se misturar com milhares de pessoas que usam a droga, você não vai conseguir e você não vai ficar no foco da Igreja. Eu falei, não, então eu vou. Aí eu peguei e vim (NM, trecho do memorial).

Conjecturamos, assim, em que medida a religião pode ser uma ferramenta poderosa para manter e justificar a dominação social, política e cultural, precisamente quando, nestas palavras do estudante RF:

Infelizmente eu estava perdido nas drogas, não queria mais saber do estudo, não queria mais tocar bateria, não queria mais saber de ir atrás de emprego. Mas aí Deus, felizmente, abriu as portas para mim. Vim para o abrigo, me tratei. (RF, trecho do memorial).

A obediência a dogmas religiosos pode ser vista como um meio de inserção e aceitação comunitária, reforçando a disciplina e a conformidade social. Conforme percebemos na narrativa de IS, a percepção positiva dos dogmas religiosos, já que “tenho lembrança que o colégio era um colégio evangélico, né Aí, eu tinha que cantar o Hino nacional, tinha que orar. A gente tinha algumas palavras bíblicas. E a lembrança é muito boa”.

Em uma sociedade que se declara democrática e laica, a educação é, muitas vezes, interpretada pelas famílias em situação de fragilidade social como uma solução para diversas dificuldades e necessidades. No que diz respeito a essas famílias, a educação representa uma possibilidade de realização pessoal, social e econômica, sendo compreendida como a ferramenta de alcance dos ideais e da superação de barreiras impostas pela desigualdade. Assim, elas depositam na educação a esperança de construir um futuro mais promissor e de transformar sua realidade.

Muitos desses estudantes, percebem na educação a sua chance de continuar a sua trajetória de vida de maneira mais digna, depositando na conquista de um trabalho as suas fichas para a transformação de suas vivências. Para eles, o trabalho não é apenas uma necessidade econômica, mas sim uma oportunidade de realização pessoal, inclusão social e transformação de suas condições de vida. Esses estudantes buscam na educação uma forma de qualificação para alcançar melhores oportunidades no mercado de trabalho, o que reflete o desejo de superar situações de vulnerabilidade socioeconômica, conforme evidenciado nestes fragmentos narrativos. “Quero terminar meus estudos, pois tenho um segundo objetivo de fazer psicologia”(CL, trecho do memorial); “eu estou aqui pois nunca é tarde para aprender” (Zac, parte do memorial); “para aprende mas a lei escreve” (RF, trecho do memorial); “Eu não sabia lê e estou querendo aprender a lê e escreve. Eu frequento a EJA pois quero aprende mais”(MR, trecho do memorial); “Estou na EJA porque eu achei que ia ficar uma pessoa melhor. As coisa que estamo aprendendo hoje são importante e diferentes” (RS, trecho do memorial).

Para esses sujeitos, a relação entre educação e trabalho está profundamente vinculada às expectativas de transformação das condições de vida, aos anseios por maior reconhecimento social e aos desafios decorrentes das dinâmicas econômicas e sociais que enfrentam. Algumas narrativas podem nos evidenciar as expectativas por melhores condições de vida, mesmo já havendo uma profissão. Ideias ilustradas nestes fragmentos “Eu sou pintor de prédio e casa” (R, trecho do memorial); “eu faço salgados, mas agora estou desempregada”(RO, trecho do memorial); “eu sou assentador de porcelanato e granito, sou pedreiro de acabamento” (CL, trecho do memorial). Nos dias de hoje, o mercado de trabalho, em contrapartida, passou a exigir que os trabalhadores possuam conhecimento das novas tecnologias, mais habilidades comunicativas, mais criatividade e saibam lidar com a resolução de problemas. Para os que conseguem se inserir no mercado, a precarização é uma constante. De acordo com Ribeiro (2018, p. 23):

Nossa incapacidade de educar a população, como a de alimentá-la, se deve ao próprio caráter da sociedade nacional. Somos uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população. Assim é, porque aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessam, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma mera força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção.

Desta maneira, muitos trabalhadores acabam em empregos informais, mal remunerados e sem direitos trabalhistas básicos, o que aumenta a instabilidade financeira e reforça a sua permanência na zona de marginalização.

Podemos observar que, grande parte desses estudantes abandonaram os estudos em função da necessidade de trabalhar — ajudar seus familiares no sustento do lar, como lemos nos registros a seguir: “eu saí do colégio para trabalhar. Tinha 9 anos, entendeu? Muito sofrimento. Não gosto nem de contar. Ai, quase que eu morri de varíola. Bem, deu catapora em mim. Quase que eu morri. Fiquei magrinho, magrinho, entendeu? Meu pai também quase morreu. Então, a gente não podia viver aquela vidinha assim, entendeu” (JC, trecho do memorial)? “Comecei a trabalhar com 8 anos de idade. Meu pai me abandonou com 14 anos e eu dei continuidade no trabalho. Eu só estudei 4 anos, comecei com 9 anos de idade e parei com 13 anos. Aí, quando foi 14 anos, eu fiquei sozinho. Aí, eu comecei a trabalhar” (IS, trecho do memorial).

Em conformidade com Arroyo (2014), a escola em muitos momentos desconsidera as diferentes trajetórias dos sujeitos, especialmente daqueles que conciliam estudo e trabalho ou que ingressam na escola em momentos não convencionais, assumindo uma função apenas niveladora das condições de vida desses estudantes, ou seja “os desiguais serão iguais” (Arroyo, 2014, p. 44). O abandono escolar com fins de ingresso no mercado de trabalho é um reflexo direto das desigualdades socioeconômicas nas quais estes sujeitos estão inseridos.

A culpabilização do estudante pelo fracasso escolar é uma prática comum que desconsidera as complexas interações entre fatores individuais, sociais e estruturais que influenciam no desempenho educacional dos estudantes. Além de reforçar as desigualdades previamente existentes, produz consequências profundas no âmbito emocional, social e educacional do estudante, dificultando sua permanência no ambiente escolar. De acordo com a narrativa do estudante JC, ele não conseguiu ser um doutor pois abandonou os estudos, já que “eu não estudava porque tinha que trabalhar, meu pai era doente. Se eu tivesse estudado eu era dotor e não teria ficado na rua” (Trecho do memorial).

A falta de reconhecimento das barreiras enfrentadas, como a baixa renda familiar, o trabalho informal, a falta de apoio institucional e as responsabilidades domésticas, reforça uma visão punitiva e moralizante sobre aqueles que abandonam os estudos. Desta maneira, “nossa escola não cresceu onde devia, nem como devia. Substitui-se uma educação razoável para poucos por uma péssima educação para muitos, porque não se realizou o esforço indispensável para adaptar a escola a seu novo alunado” (Ribeiro, 1986, p. 32). A instabilidade da renda e a informalidade tornam a escola um espaço secundário frente as necessidades imediatas de sustento. Assim, a estrutura educacional, quando não considera essas condições, reproduz desigualdades e distancia os sujeitos do direito à educação.

Conclusão

O movimento investigativo envolvendo a escrita de si, fundamentada pela opção metodológica dos memoriais dos estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental EJA Professor Admardo Serafim de Oliveira no abrigo emergencial da prefeitura de Vitória, revelou-se como uma importante ferramenta de articulação e significância das experiências passadas, das emoções e das perspectivas dos sujeitos historicamente marginalizados, permitindo o reconhecimento e a valorização das vivências no espaço escolar. Essa prática, ao agregar as experiências pessoais, promoveu significativa resposta à produção crítica do conhecimento, contribuindo assim para a construção de identidades que dialogam com o passado e o presente e com os desafios do cotidiano.

Os memoriais e as narrativas dos estudantes possibilitaram a articulação entre suas trajetórias de vida e os conteúdos históricos, reafirmando a importância de um ensino que respeite a diversidade, a memória e a cultura. A escrita de si não apenas potencializa a consolidação desses saberes: também favorece a consolidação da consciência crítica e emancipadora, imprescindível na construção da percepção de si como protagonistas de suas Histórias e agentes transformadores da realidade.

Ao narrarem seus memoriais à pesquisadora, cujo encerramento da pesquisa se deu de forma dialógica e compartilhada (Imagem 2), os estudantes revelaram um panorama complexo e multifacetado das experiências de vida marcadas pela vulnerabilidade social. As vivências da violência, exclusão, preconceito e desigualdade, narradas por esses sujeitos, evidenciam a importância de compreender a História a partir das perspectivas de quem a vivencia. Ao resgatar suas memórias, esses sujeitos não apenas constroem suas identidades, mas contribuem para a produção do conhecimento histórico mais justo e inclusivo.

Imagem 2: Pesquisadora encerrando a pesquisa de campo na sala de aula da instituição junto aos estudantes

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2023.

Referências

ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2014.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

JOSSO, Marie Cristine. Os relatos de histórias de vida como desvelamento dos desafios existenciais da formação e do conhecimento: destinos socioculturais e projetos de vida programados na invenção de si. In: SOUZA, Elizeu Clementino; ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org.). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre/Salvador: Edipucrs e Eduneb, 2006. p. 22-40.

PASSEGGI, Maria Conceição. C. Memoriais: “cantos de experiência” vivida e em devir. Regae: Rev. Gest. Aval. Educ. Santa Maria, v. 10, n. especial, p. 1-10, 2021.

RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch Editores S.A, 1986.

RIBEIRO, Darcy. Educação como prioridade. São Paulo: Global Editora. 2018.

SOUZA, Elizeu Clementino; VICENTINI, Paula Perin; LOPES, João Heitor Siva. Narrativas ressignificadas; empoderamento, afroperspectividade e pedagogização para o combate ao racismo. In: SOUZA, Elizeu Clementino; VICENTINI, Paula Perin; LOPES, Celi Espasandin. (org). Vida, narrativa e resistência Biografização e empoderamento. Curitiba: CRV, 2018. p. 159-174.

GOULART, Danielle Ribeiro. LUIZ, Miriã Lúcia. Trajetórias de vida de estudantes da EJA e sua constituição como sujeitos históricos: sentidos das escritas autobiográficas. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 8, Número 34, Agosto, 2025, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Acervo da pesquisadora, 2023

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