
A escravização de indígenas em Manaus: apontamentos sobre os descimentos, os resgastes e as guerras justas, entre os séculos XVII e XIX
Fábio Souza Correa Lima
Doutor em Educação. Bacharel e licenciado em História (UFF). Bacharel e licenciado em Filosofia (UFRJ). Mestre em Educação. Docente da Universidade Federal do Amazonas e do Programa de Pós-graduação em Educação PPGE/ FACED. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5716524044404475. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1855-1738.
E-mail: fabiosouzaclima@ufam.edu.br
Ana Caroline Pantoja Santos
Formada em Pedagogia (Universidade Federal do Amazonas – UFAM). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3200100573536629. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-8435-247X.
E-mail: carolinepantojasantos@gmail.com.
A Amazônia, no início da colonização portuguesa do Novo Mundo, era uma terra que abrigava numerosas populações indígenas, segundo escrevem os primeiros cronistas europeus. A expansão dos domínios da Coroa portuguesa tinha como finalidade econômica a extração de recursos naturais e a acumulação de riquezas, seguindo princípios marcantes da época, como o Mercantilismo e a teoria da Balança Comercial favorável. Culturalmente, os portugueses disseminavam as ideias e os valores do Velho Mundo, com o intuito de aumentar a quantidade de súditos à Coroa e garantir o domínio do território, além de atender aos interesses de expansão da Igreja Católica, que a essa altura se preocupava com o crescimento dos protestantes na Europa. Em meio a esse processo, os indígenas da região que hoje chamamos de Brasil foram aculturados, convertidos à fé católica e escravizados de diferentes formas. Seguindo por esse caminho, no estudo em tela, buscamos abordar brevemente as maneiras utilizadas pelos portugueses para submissão e escravidão dos povos indígenas na região amazônica, entre os séculos XVI e XIX.
Inicialmente os portugueses tentaram uma maneira de subjugar os indígenas que consumia poucos recursos e apresentava uma forma de ação que não era reconhecida como violenta na época: a aculturação. Os chamados Descimentos consistiam em “convencer os índios a ‘descerem’ para as aldeias de repartição, de onde seriam distribuídos entre os colonos, os missionários e o serviço real da Coroa portuguesa” (Pontes Filho, 2011, p. 91). Os colonos tentavam persuadir os indígenas a se submeterem e realizarem de forma pacífica a descida do interior da floresta para as margens dos rios, onde ficavam as ocupações portuguesas. Porém, no momento em que os grupos indígenas se negavam a atender os colonos, era empregada a força bruta e o medo como procedimento. É possível perceber que no caso do Descimento, a aculturação e a aceitação de submissão à Coroa portuguesa se impunham por um processo educacional informal em que a força das leis e das punições estava sempre presente. Essa relação entre indígena e colonizadores ajudou a moldar o ser social na região amazônica.
Quando os indígenas não desciam de suas regiões por espontânea vontade, convencidos pelos colonos, outros procedimentos eram tomados pelos portugueses. Investidos de poder pela Coroa portuguesa e da missão de evangelização cristã, os europeus iniciavam o que chamavam de Resgates. Eram realizadas invasões aos territórios indígenas e apresamento de suas populações, que eram amarradas por cordas e pedaços de madeira, sendo enviadas aos povoados dos colonos. Segundo Francisco Jorge dos Santos (2007, p. 84), os Resgates “[…] eram realizados por tropas militares, introduzidas na colônia, para esse fim, pela Lei de 1611. Por essa legislação, os índios a serem resgatados seriam chamados “índio de corda””. Além das tropas portuguesas utilizadas, os indígenas que anteriormente já haviam sido submetidos aos Descimentos ou aos Resgates ajudavam os lusitanos com o conhecimento que mantinham sobre a região. Os Resgates aconteciam com apoio da Coroa, que, por meio das autoridades locais, também dava aos colonos a autorização para intervirem nas comunidades indígenas. Essa submissão era vista como um benefício realizado aos povos da terra, que teriam a sua vida e sua alma salvas ao serem incorporados à Coroa portuguesa e à Igreja. Por conta disso, os indígenas estariam em dívida com os colonos, o que incidia na escravização deles pelo prazo de dez anos para que a restituição por tantas “vantagens recebidas” pudesse ser realizada.
No caso dos Descimentos e dos Resgates, a autorização para ação das tropas portuguesas se dava pela decretação das chamadas Guerras Justas. Embora as leis portuguesas de 20 de março de 1570 e de 10 de setembro de 1611 afirmassem a condição de liberdade dos indígenas, elas também permitiam que os colonos os colocassem em cativeiro quando a justificativa para tal ação era o combate de infiéis ou a conversão deles (PUNTONI, 1998). Como também pontua o historiador Francisco Santos (2007, p. 85):
[…] as causas legítimas das guerras justas seriam a recusa dos índios gentios à conversão ao Cristianismo; o impedimento da propagação da Fé; a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses (especialmente a violência contra pregadores do Santo Evangelho). Porém, na esteira dessas justificativas “legítimas”, que na realidade eram apenas subterfúgios, faziam-se prisioneiros para serem vendidos como escravos nos centros urbanos, como Belém e outras povoações coloniais (SANTOS, 2007, p. 85).
Os Descimentos foram proibidos em 1755, embora continuassem acontecendo de maneira ilegal por ações de grupos particulares. Segundo escreveu Francisco Santos (2007, p. 104):
Na prática, a proibição dos descimentos foi letra morta, na medida em que foi liberada a ação dos particulares. Para tanto, os índios assim “descidos” deveriam ser apresentados à Câmara, onde seria elaborado um Termo de Instrução e Educação, pelo qual o morador responsável se comprometia em batizar e educar esses índios por um tempo determinado.
Embora a maior parte dos povos e de suas culturas tenha sido exterminada nesse processo, alguns povos resistiram, como os Omáguas ou Cambebas, os Tupinambás, os Muras, os Barés, os Nheengaíbas, os Tapajós e os Manáos. Essas resistências ensejaram a construção de fortificações usando mão de obra escrava para reclamar terras, mas também para a proteção das próprias tropas portuguesas (PONTES FILHO, 2011, p. 108).
Uma dessas construções foi o Forte de São José da Barra do Rio Negro, erguido na segunda metade do século XVII e onde atualmente fica a cidade de Manaus. O forte protegia o comércio português dos ataques de diferentes povos indígenas, principalmente, dos Manáos, que tinham origem no baixo e no médio Rio Negro. A resistência dos Manáos diante do domínio português na região culminou em 1720 na Guerra de Manaus. José Ribamar Bessa Freire descreve em seu texto os dados coletados pelo missionário jesuíta Samuel Fritz durante a sua viagem para o Amazonas no citado período:
Os Manáo constituíam o grupo étnico mais importante da área, habitando as duas margens do baixo rio Negro, desde a foz do rio Branco até a ilha Timoni. No momento da invasão colonial pareciam estar em pleno processo de expansão territorial em direção ao Oeste, espalhando-se pela região do rio Japurá. Sua população foi estimada, já decrescida após os violentos choques armados com os portugueses no século XVIII, em mais de 10 mil almas (FREIRE, 1993/1994, p. 164).
A guerra findou com um acordo realizado pelo líder dos Manáos, o tuxaua[1] Caboquena. No acordo ficou decidido que os Manáos não realizariam mais investidas contra os portugueses, que por sua vez aceitariam os indígenas vivendo próximo ao seu povoamento. Embora seja possível identificar também Baníuas, Barés e Passés, os Manáos se destacavam como maiores ocupantes da região. Essa aproximação entre indígenas e portugueses proporcionou o crescimento da região. Segundo Francisco Jorge dos Santos (2007, p. 60), “[…] esse povoamento primordial […], na segunda metade do século XVIII passou à categoria de l ugar (Lugar da Barra do Rio Negro), o qual no final desse século tornou-se sede da Capitania do Rio Negro”.
Após o Tratado de Madri (1750), que definiu as fronteiras da colônia portuguesa frente às posses espanholas, o governador geral Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759), utilizando-se da Carta Régia de 3 de março de 1755, criou a Capitania de São José do Rio Negro, acompanhada do Diretório dos Índios (1757-1798) e da fundação da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778).
Citamos o Diretório dos Índios porque ele pode ser compreendido como uma das experiências de formação/transformação do ser social amazônida. O Diretório do Índios era uma instituição portuguesa estabelecida em 1755 pelo rei Sebastião I e colocada em prática a partir de 1757 pelo ministro Marquês de Pombal. Na prática, sua atividade ia além do “amansar” e “civilizar” os indígenas. O Diretório forçava-os a incorporar aspectos da vida política, econômica, social e cultural europeia, por meio de uma educação que rejeitava as suas religiões e suas línguas, obrigando-os a aceitar a língua portuguesa e a fé cristã. Considerava-se que a educação escolar advinda de suas práticas resultaria na transformação do ser social amazônida, atendendo aos interesses europeus, seus valores, suas formas de ser, estar e pensar o mundo. Para os lusitanos, a passagem do indígena pelo Diretório representava que ele atingiu os níveis de civilidade que queriam, sendo assim aceitos na sociedade dos brancos.
A instrução anteriormente ministrada pelos jesuítas era baseada na catequização dos índios por meio da aquisição da língua indígena para então transmitir o ensino da doutrina cristã. “Nesse contexto, a língua era tida como o veículo para a consecução do empreendimento mais importante – a catequização” (Coelho, 2008, p. 104). Em contrapartida, conforme apontamos, o Diretório reprimiu o idioma do nativo e instituiu, por lei, o uso da língua portuguesa, realizando o aculturamento dos povos indígenas na região.
O uso da língua materna de cada nação indígena aldeada era proibido, bem como da língua geral, o que obrigou o uso da língua portuguesa; os índios passaram, obrigatoriamente, a usar sobrenomes semelhantes aos das famílias de Portugal, a construir moradias no estilo dos brancos; tornou obrigatórios aos índios se vestirem como os brancos, principalmente as mulheres; e instituiu escolas separadas para meninos e meninas (SANTOS, 2007, p. 100).
Em 1798, o Diretório dos Índios foi extinto. Porém, o processo em que os indígenas se viram forçados a deixar para trás as suas culturas formou um novo grupo, destribalizado, com filhos de diferentes etnias e afeito aos trabalhos agrícolas, chamado de caboclo. Uma nova instituição surgiu no lugar do Diretório: o Ajuste Particular. Embora este não realizasse um escravizamento do indígena, o seu nome já apontava que para ser aceito em sociedade o indígena precisaria se ajustar ao seu funcionamento. Na prática, os colonos portugueses podiam recrutar para o trabalho quantos indígenas quisessem participar do Ajuste, sendo que os que mais aderiram a essa instituição foram justamente aqueles que já haviam ficado sem sua tribo, sua língua e sua cultura. Também no final do século XVIII, o Lugar da Barra do Rio Negro foi elevado à condição de Capitania do Rio Negro. Apesar da mudança administrativa e política, não houve mudanças na estrutura de ensino da região, e a economia local manteve-se à base do cultivo da terra e da produção das drogas do sertão como a castanha-do-pará, o cacau e o guaraná.
No mesmo ano, por meio da Carta Régia de 12 de maio, foi criado o Corpo de Trabalhadores que “instituiu um novo sistema de organização e controle das populações indígenas aldeadas e estabeleceu diretrizes de procedimentos em relação ao trato com os índios tribais” (Santos, 2007, p. 103). Os índios agora seriam incorporados às forças militares, tornando-se servidores da rainha de Portugal, D. Maria I.
A despeito do imaginário português de que se tornar um militar da Coroa poderia atrair os indígenas, o resultado foi ainda pior do que o do Diretório, tendo como efeito o surgimento de uma força indígena de resistência. Desta vez, a resistência era justamente contra o serviço militar obrigatório, o que incorreu em um novo extermínio dos povos originários da região. Nem a chegada da família real portuguesa (1808) mudou a situação dos indígenas. E mesmo depois de declarada a independência na capitania de São José do Rio Negro, continuaram os conflitos culturais e políticos entre diferentes etnias e interesses.
No período Regencial (1831 – 1840), a instabilidade política por conta da ausência de um imperador no país (posto que D. Pedro II ainda não poderia assumir o trono), aliada à crise econômica e política na região amazônica, deu origem à Revolta da Cabanagem (1835 – 1840), que teve como um dos efeitos a divisão da província do Grão-Pará e a elevação da capitania de São José do Rio Negro à condição de Província do Amazonas (1850).
Diante disso, entende-se que os indígenas sempre foram vistos como instrumento nas mãos de colonizadores. As mudanças ao longo dos anos camuflaram as atitudes de escravidão com esses indivíduos, e a sociedade moldada pelos costumes franceses necessitava de sujeitos que fossem subjugados para manter tal estilo de vida. Sendo assim, fazendo o uso dos vários meios para se escravizar, os colonizadores utilizaram os indígenas para se estabelecer e, nesse sentido, instituir sua cultura.
REFERÊNCIAS
COELHO, Mauro Cezar. Educação dos índios na Amazônia do século XVIII uma opção laica. Revista Brasileira de História de Educação. v.8. n° 3. pp 95-118, 2008.Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=576161065007. Acesso em: 12 de jul. de 2023.
FREIRE, José Ribamar Bessa. Manáos, Barés e Tarumãs. In: PINHEIRO, Geraldo Sá Peixoto. História em Novos Cenários. Amazônia em Cadernos. Universidade do Amazonas. Museu Amazônico. Manaus. v.2, 1993/1994.
PONTES FILHO, Raimundo Pereira. História do Amazonas. Manaus: Editora Cultural do Amazonas, 2011.
PUNTONI, Pedro Luís. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. 1998. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
SANTOS, Francisco Jorge dos. História geral da Amazônia. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2007.
[1] Tuchaua significa líder ou pessoa mais influente da tribo.

SANTOS, Ana Caroline Pantoja. LIMA, Fábio Souza Correa. A escravização de indígenas em Manaus: apontamentos sobre os descimentos, os resgates e as guerras justas, entre os séculos XVII e XIX. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 8, Número 33, Janeiro – Abril, 2025, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).