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Colonialismo e sexualidade: a Educação Sexual em perspectiva histórica

João Pedro Silva Santos Souza

João Pedro Silva Santos Souza

Sou graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

E-mail: jp7842878@gmail.com

Sexualidade na Colônia: breve síntese historiográfica

Não existe pecado do lado de baixo do Equador. Esse trecho de uma canção de Chico Buarque parece sintetizar bem as vertentes historiográficas clássicas do século XX. Gilberto Freyre, com seu clássico Casa Grande e Senzala, ao se propor analisar a formação do Brasil desde a época da colonização portuguesa, tratou o período colonial como um lapso temporal em que imperou o desregramento moral nos trópicos lusitanos, quando às margens da família legítima, o português, mais dado a se envolver com mulheres “exóticas”, se alinhou com interesses metropolitanos, com a falta de mulheres brancas, e com a ausência de maior rigor por parte da Igreja, resultando na miscigenação entre as raças que formaram a sociedade brasileira (VAINFAS, 2010, p. 80).

Contudo, ainda no século XX, essa aparente ausência de leis morais no período colonial de nossa história tem sido revisitada. Nesse sentido, o Trópico dos Pecados, de Ronaldo Vainfas (2010) pode ser considerado um trabalho fundamental aos mais recentes debates historiográficos sobre essa época.

Inserida em um contexto mais amplo, espelhou-se no Brasil uma ampla variedade de acontecimentos que ocorriam na Europa da ainda jovem Idade Moderna. Aliado a uma soma de fatores anteriores, como o imaginário europeu sobre o além-mar, com a chamada Era das Navegações, e as Reformas Protestante e Católica, o desenrolar das “conquistas” ou “descobrimentos” ibéricos se modelaram como processos até então excepcionais na história humana. Com grande estranhamento mútuo por parte de europeus e nativos do Novo Mundo, não seriam poucas as visões de um sobrenatural cristão projetadas sobre a América. Ao mesmo tempo em que essa nova terra era, com suas paisagens paradisíacas em oposição à Europa degenerada pela guerra, pestes etc. o paraíso, a humanidade aqui encontrada, com costumes tão diferentes em relação ao uso da terra, a visão sobre o corpo humano, as relações sexuais, seria inferiorizada, e, não menos raro, negada e demonizada por parte daqueles invasores que aqui chegaram (VAINFAS, p. 42 – 49).

Se tomarmos como base os relatos de cronistas sobre os tempos iniciais da colonização portuguesa no Brasil, a visão clássica de historiadores como Freyre se confirma (ibidem, p. 79); pois como declarou o jesuíta Nóbrega em uma oportunidade, os nativos eram “cães em se comerem e se matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem” (SOUZA, 1986, p. 64, apud NÓBREGA, 1954, p. 54). Entre os vícios a que se refere o religioso, estão alguns ”pecados da carne”: o concubinato, a poligamia, o incesto etc. (SOUZA, p. 61).

Diante dessa alteridade de projetar sobre a cultura do outro seus próprios valores, a conquista da América não envolveu um simples processo de tomada territorial ou material, mas empreendeu também uma verdadeira conquista das almas por parte dos colonos ibéricos em favor da Santa Fé Católica, na época da Contrarreforma (SOUZA, 1986, p. 34). E este objetivo se fez presente tão logo o europeu pôs os pés nessas terras desconhecidas. Pero Vaz de Caminha afirmou que destas terras o melhor fruto que o monarca lusitano poderia ter era “salvar esta gente”. Assim sendo, os nativos, pessoas que precisavam de “salvação”, mas de culturas tão diversas e hostis aos olhos jesuíticos, impregnados por noções em voga da Europa moderna, como a descrição sobre eles não seria depreciativa e entendida como pecaminosa?

Afora esse choque cultural e o discurso demonizador do outro, é imprescindível analisar a visão sobre a sexualidade na colônia em um panorama mais amplo. Contudo, diante de um objeto de estudos que se encontra em sociedades e tempos remotos, é imprescindível que consideremos a historicidade dos conceitos antes de prosseguir. Ao se referir à sexualidade na América portuguesa, deve-se levar em conta que se trata de um conceito complexo. Isso se deve ao fato de que aqui se desenvolveu uma sociedade miscigenada, e assim, com povos e culturas diversos, é dificultoso postular uma definição de sexualidade capaz de abranger o que todos os povos que participaram da formação sociocultural do Brasil compreendiam por tal fenômeno, afinal, a sexualidade se constitui por meio das relações, dinâmicas e transformações internas no interior de determinado grupo (SCALIA, 2014, p. 104). O conceito de sexualidade também é, nesse sentido, diverso da concepção pelo qual o concebemos hoje, e que será explanado em momento oportuno. Desse modo, adotaremos o mesmo cuidado para lidar com outro conceito presente nesse trabalho: a noção de pecado.

Em face desses desafios, trabalharemos com uma definição de sexualidade próxima à utilizada pelas instituições e mecanismos do poder na sociedade colonial. Ao tomar a perspectiva do poder para fins de análise, não é o fito deste trabalho concordar com as ideias recorrentes durante a Idade Moderna, mas clarificar que este pensamento influenciou o comportamento de brasileiros dos primeiros séculos, além de ter regido o caráter disciplinador pelas quais as autoridades, por meio de instituições como o Santo Ofício, agiam, no sentido de perseguir o que eram considerados comportamentos desviantes.

Nesse sentido, Estado e Igreja desempenhavam papel fundamental nas sociedades do Antigo Regime, e como argumenta Mary Del Priori (2009, p. 35), a valorização das uniões matrimoniais e a repulsa por uniões extraconjugais faziam parte do mesmo esforço de normatizar o corpo social. Vainfas (1997, p. 246) elaborou ideia análoga em relação ao sexo, a qual reiterava que o extraconjugal era por excelência demoníaco, a antítese da sacralidade que o leito conjugal adquiria naquele momento, em que sexo e sexualidade deviam atender somente aos fins de procriação.[1]

Assim, é necessário salientar que, alguns dos argumentos apontados por nomes como Freyre de fato existiram: a ausência de mulheres brancas, a relativa tolerância das autoridades para com a lascívia, entre outros (VAINFAS, p. 81). Contudo, realizar generalizações é equivocado, pois a mentalidade dos colonos, entre os séculos XVI ao XVIII, estava impregnada com concepções moralistas sobre o sexo e o casamento que vieram à tona a partir dos discursos perpetrados pelo catolicismo oficial após o Concílio de Trento. Assim, a documentação inquisitorial do período deixa claro que, embora “pecassem”, o faziam muitas vezes por desconhecimento sobre os dogmas oficiais, ou então agiam em oposição às regras morais impostas conscientemente, mesmo os mais irreverentes, sempre tendo os conceitos de sexo e pecado indissociados (ibidem, p. 85).

“Para cada homem que negava haver pecado na fornicação, vários diziam o contrário, advertindo o suposto herege e não raro denunciando-o à Inquisição, como de fato ocorreu na visita do primeiro século. Em atitudes desse gênero, indicativas de como as mentalidade populares já se achavam impregnadas pela moral tridentina, temos mais do que escrúpulos ou simples aflição do medo de pecar; trata-se de sincera adoção dos valores oficiais por homens que, no trópico, pareciam não ter grilhões em matéria sexual”. (ibidem)

Como argumenta o historiador, os homens que defendiam o ato sexual o faziam presos a antigas tradições ibéricas, de vangloriação da virilidade masculina. Ainda assim, as normas oficiais foram aquelas que imperaram na mentalidade e no cotidiano da vida colonial, com o zelo pela família e pelo casamento, tendo elementos que “atenuavam” os atos pecaminosos, como negras da terra, mulatas e degradadas, assimiladas a prostitutas, mas sempre com atitudes que, de algum modo, se dobravam aos discursos oficiais moralistas da Idade Moderna.

Diante desse cenário, é possível tentar reconstruir um quadro sobre a educação na Colônia. Segundo Fraga (2008, p. 248), o ambiente escolar pode ser entendido como um microcosmo da sociedade. Nesse sentido, é importante compreender que as concepções sociais sobre determinados temas sempre se farão presentes em graus variados nos espaços educacionais, que não necessariamente são limitados aos muros de uma escola. Embora um sistema educacional na América portuguesa mais estruturado só tenha se desenvolvido tardiamente em comparação com outras regiões das Américas, matérias educacionais nunca se fizeram ausentes em nossa formação, embora tenham se dado de modo heterodoxo se comparadas a nossas concepções contemporâneas. Aqui, o objeto de estudo é a educação sexual. Novamente recorremos ao trabalho de Anne Scalia (2014) para fundamentar conceitualmente esse preceito. Segundo a autora, a educação sexual dos quinhentos se construiu a partir de um discurso que assimilava o corpo da mulher indígena à ideia de pecado, e com isso, se criou um caminho para a normatização a partir do controle dos corpos e das mentalidades que se impôs na posterioridade, pautando-se no medo, na disciplinarização e na culpabilização (SCALIA, 2014, p. 104). Esse dilema se espraiou para o todo da população à medida em que se adensava o processo colonizador. Aqui, entende-se por educação sexual o conjunto de meios, tais como processos da Inquisição e tratados morais, que visavam purificar o corpo social de eventuais desvios em matéria de sexualidade que não estivessem em conformidade com os objetivos tridentinos da Igreja e com os anseios colonialistas de Portugal, tornando necessária a domesticação dos corpos e o controle das mentes através de práticas de submissão e condenação do comportamento sexual (RIBEIRO; BUENO, 2018, p. 51) a fim de difundir o que as instituições determinavam como o correto sobre esse assunto. Assim, tomaremos dois exemplos significativos de coerção e disciplinarização durante o período colonial: os indígenas e as mulheres.

Os indígenas entre a cruz e a espada

Como já mencionado, o choque cultural e a mentalidade da época das Reformas resultaram num processo de demonização do outro por parte dos jesuítas. Entretanto, sendo múltiplas as conquistas, por vezes os discursos entre os inacianos e os colonos laicos não se alinharam, e chegaram mesmo a gerar conflitos, uma vez que ambições escravistas dos colonos apresentavam, aos olhos da Companhia de Jesus, um empecilho à missão catequizadora (VAINFAS, 2010, p. 60).

Como forma de resistência, os povos originários mantiveram seus cultos através da aculturação do sobrenatural cristão. Embora tanto franciscanos e dominicanos na América Espanhola quanto os jesuítas na América Portuguesa tenham repudiado certa complacência das autoridades eclesiásticas diante deste fenômeno, esses processos de assimilação foram movimentos de mão-dupla. Se os nativos mantiveram algumas de suas tradições, ainda que disfarçadas de celebrações ou ritos “cristãos”, os clérigos também se valeram destas ocorrências para empreitar uma evangelização mais eficaz e em massa, ainda que fosse muitas vezes um processo mecanizado. A título de exemplo, assimilavam divindades aborígenes a figuras do sobrenatural cristão. Na América Espanhola do século XVI, a Virgem Maria era associada a figuras das diferentes faces da deusa-mãe (GRUZINSKI, 2003).

Mas também acontecia o oposto. Se para evangelizar se associavam as diversas crenças dos nativos ao sobrenatural católico, não foram poucas as personificações do colonizado como o próprio demônio nos vários espaços coloniais no que foi uma verdadeira “pedagogia do medo”, expressão recorrentemente usada por Vainfas em sua produção. Através desse método, um dos alvos dos inacianos foi justamente os costumes sexuais dos nativos, que eram agora ressignificados e inseridos na categoria europeia de pecado. Hábitos pecaminosos deveriam, portanto, ser extirpados.

O Auto de São Lourenço, do padre José de Anchieta, é de significativo exemplo para isso. Aqui, dois antagonistas são os diabos Guaixará e Aimberê. É interessante notar que na escolha destes nomes há uma marca importante do teatro jesuítico: o uso de elementos culturais aborígenes, como a língua, para o ensino da moral cristã (HERNANDES, 2016, p. 1). Nesse caso de aculturação, os personagens eram a exemplificação, aos olhos inacianos, da vida ameríndia, com o completo desregramento que lhes era imputado, incluindo os amancebamentos, os adultérios e demais prazeres carnais, sempre demonstrando completo desprezo por Deus e suas leis.

Há aqui um embate entre o Bem e o Mal, sendo este último representado pelos dois diabos mencionados e qualquer um que não estivesse em alinhamento ideológico com a nova cultura que desembarcava nos Trópicos (ibidem, p. 3). Quando mortos, Guaixará e Aimberê foram condenados ao fogo eterno, afinal, se prenderam aos seus costumes e pouco caso fizeram da obra missionária dos padres em favor de levá-los ao caminho da salvação. E aquele seria o destino de qualquer gentio que insistisse em seguir naquele modo de vida herético (Cf. VAINFAS, p. 50; p. 59-60). 

Mulheres, modernidade e pecado

Associar o sexo feminino ao pecado não se trata de nenhuma novidade. Segundo a tradição judaico-cristã, primeiramente, foi Eva quem comeu o fruto proibido, e, ao fazê-lo, condenou a humanidade à sua queda. Desse modo, observa-se na narrativa do principal livro – a Bíblia – de um dos pilares das sociedades ocidentais – o cristianismo – a culpabilização da mulher no campo dos vícios do gênero humano. No começo da modernidade, esse estereótipo da mulher como figura pecaminosa ganharia novos sentidos, e que variaria em graus diferentes conforme a região e doutrina de maior dominância (catolicismo ou alguma das vertentes protestantes).

Anne Scalia (2014) fez uma importante análise de como as mudanças que ocorreram na Europa na transição da Idade Média para a Idade Moderna contribuíram para formalizar novamente a degradação do gênero feminino, como mais fraco moralmente e propenso a pecar. Mencionando o Malleus Maleficarium, dos inquisidores Sprenger e Kramer, publicado originalmente em 1486, é possível analisar a demonização do gênero feminino a partir dos discursos oficiais, afinal, os autores argumentam que a responsável pelos pecados dos homens são as mulheres, mais fracas, e dotadas de extraordinária luxúria e lascívia (SCALIA, 2014, p. 35-36).

É notório mencionar que o Malleus foi um dos mais importantes tratados demonológicos da Época Moderna, e que pode ser considerado como um “guia” para a identificação e de como lidar com as chamadas “bruxas” e “feiticeiras”. Depois, se consolidaria a ideia de que as forças sobrenaturais dessas figuras advinham do próprio demônio (ibidem, p. 37), com o qual eram mantidas relações sexuais nos chamados sabás, reuniões noturnas em que bruxas e feiticeiros se reuniam em locais remotos para renegarem o cristianismo e realizarem orgias sexuais com seres infernais (GINZBURG, 2012, p. 1).

Observa-se nesse contexto amplo algumas questões interessantes e interligadas: a mulher é, desde os primórdios, a responsável pelo fracasso dos descendentes de Adão, afinal, é frágil, pecaminosa, luxuriosa e dada a se entregar desde Eva às artimanhas de Satanás. Por isso, as mulheres foram a maioria das feiticeiras que emergiram no contexto de crise em que a Europa se inseria quando se deu a “caça às bruxas”, afinal, eram associadas também ao sexo e aos desejos carnais, vistos agora como pecados e, paulatinamente, satanizados à luz do momento. Logo, por sua essência naturalmente problemática, era indispensável que, em meio a esses processos históricos concomitantes, fosse mais vigiada, submissa ao homem, pequeno rei e pastor do lar, além de mais equilibrado, segundo a moral oficial difundida a partir do Concílio de Trento (VAINFAS, 2010).

Novamente, o Brasil não estava excluído dessa conjuntura global, e por aqui seriam refletidos os frutos dessa empreitada de subjugação das mulheres perante seus homólogos masculinos, embora exceções tenham existido em alguns graus.

Assim, se a mulher fora dos padrões considerados moralmente corretos era entendida como mulher “má”, desprezada, ridicularizada, e em alguns casos associada à figura do próprio mal (vide aspectos do imaginário sobre as feiticeiras), também se formou o estereótipo da boa mulher, em que tanto os discursos oficiais quanto populares pareciam concordar com os princípios doutrinários da época em matéria de gênero: a mulher deveria ser recatada, zelosa, paciente etc., além de serem muitas as regras que os homens deveriam seguir em relação a quem escolher como cônjuge, a fim de melhor mitigar as imperfeições femininas que muito poderiam afetar a governança dos lares (VAINFAS, 2010, p. 157). A título de exemplo, para um bom casamento, além de duradouro, era recomendado aos maridos que evitassem que suas esposas tivessem contato com qualquer influência externa, quer fosse através da literatura, quer fosse por meio de pessoas de fora, como frades e adivinhas. Às mulheres, por sua vez, os conselhos eram para que obedecessem a seus maridos (VAINFAS, p. 162).

Mas em relação a tais preocupações, não foram apenas conselhos de caráter doméstico que predominaram no período em análise. Além do pecado, outra noção que se conluiava às visões sobre o sexo era a ideia de desonra, mais especificamente quando ligada à perca da virgindade das moças de família antes do casamento. Assim, a vigilância se fazia necessária. Para tal, instituições como conventos e recolhimentos eram fundados na colônia com o intuito de preservar a honra das moças, de modo que se gerassem ambientes que não criassem celibatárias – o que seria desastroso para as pretensões da Coroa lusitana – e se educassem as mulheres de acordo com os princípios moralizantes daquele tempo (ibidem, p. 172-173).

Observa-se por meio desses exemplos que a educação sexual nunca esteve ausente na história brasileira ou, se não de modo estruturado para receber essa denominação, seria mais correto dizer que questões sexuais e tipos de educação sempre andaram lado a lado. Assim, enquanto preponderou a dominação portuguesa, vigorou no Brasil uma visão repulsiva sobre o sexo, e que implicou em tentativas diversas de se impor um controle sobre as mentalidades e corpos dos que aqui já estavam ou então desembarcaram, fruto duma ideologia conservadora que tinha objetivos políticos próprios na era analisada. Objetivamos demonstrar a seguir a continuidade ou, ao menos, a influência dos tempos coloniais na formação dos sistemas educacionais do Brasil em tempos mais recentes.

Paralelos e controvérsias

Segundo Freitas (2011, p. 68), é possível notar continuidades do passado colonial, marcado pela subordinação e dominação de um corpo sobre o outro, na cultura e no cotidiano do Brasil contemporâneo, como a desvalorização do trabalho da mulher negra em comparação com o das mulheres brancas. Nesse viés, é notório que as chagas de um passado escravista e colonialista ainda não tenham cicatrizado no presente, mesmo que alguns negacionistas da história insistam em afirmar o contrário.

Assim, Riberio e Bueno (2018, p. 49-50, apud RIBEIRO, 2004) apontam a existência de seis fases da educação sexual no Brasil. Entre elas há a primeira no período colonial, a segunda no século XIX, a terceira nas primeiras décadas do século XX. A primeira já foi amplamente analisada ao longo deste texto; a segunda foi pautada em uma normatização da moral médica; e a terceira, através de livros de médicos e religiosos, foi influenciada por noções morais, biologizantes e higienistas, que recebiam grande enfoque na Europa da época. Através da educação sexual, se evitaria “perversão moral”. Contudo, os autores se debruçam especialmente sobre a quarta fase, que compreende a década de 1960 (BUENO; RIBEIRO, p. 50-51).

Nas décadas seguintes, em que pese certa tensão que pairava sobre o país, houve uma boa produção sobre a temática da Educação Sexual no Brasil, mas, com o golpe de 1964 e o cerceamento das liberdades individuais, houve muitos retrocessos nesse âmbito, quando o posicionamento oficial dos militares foi de ataque, pois o ensino da sexualidade nas escolas representaria uma ameaça à “pureza” e à “inocência” dos jovens da nação. Em 1970, o almirante Benjamin Sodré declarou à Folha de São Paulo:

“Não ensinar materialmente como a procriação procede para o homem e para a mulher, mas antes exaltar o que caracteriza o sexo masculino, caráter, coragem, responsabilidade, força, proteção, respeito e amor, que, sem egoísmo, mais dá do que recebe; e o sexo feminino: a delicadeza, a bondade, a pureza, a confiança, indo até a adoção, ao casamento, à maternidade”. (BUENO; RIBEIRO, 2018, p. 52, apud. ROSEMBERG, 1985, p. 14)

Como os autores argumentam, a censura representou retrocessos nos aspectos científicos e educacionais durante o período da ditadura, quando a sexualidade era entendida como uma questão interna a ser resolvida dentro de cada contexto familiar. Somente a partir da abertura política e posterior fim do regime militar que a Educação Sexual voltou a ser uma pauta com maior liberdade nos debates, visto que antes estes ocorriam, ainda que às escuras devido ao receio punitivista que imperava na política e na sociedade brasileira (ibidem, p. 52-53). Mas, passado o regime militar, e agora sem restrições de cunho legal para o ensino da sexualidade nas escolas brasileiras, inseridas agora em tempos teoricamente mais “progressistas”, esses novos valores liberais se refletem na realidade?

Paradigma contemporâneo: progressismo ou conservadorismo?

Segundo Bueno e Ribeiro (2018, p. 55), no período pós-ditadura, a repressão ainda se fez presente, pois, apesar dos maiores debates sobre sexualidade e educação no Brasil, ainda que se ouvisse sobre o tema, o diálogo não acompanhava as discussões.

Percebe-se, a partir dessa afirmativa, a permanência de problemáticas inerentes à sociedade brasileira no que tange à sexualidade humana, mesmo que em espaços privados ou educacionais. Até certo ponto, podemos apontar duas consequências para esses entraves, já mencionados ao longo do texto, e bem demonstrados por Ferreira (2019): o conservadorismo exacerbado e a falta de conhecimento sobre o tema, que gera conclusões equivocadas sobre o que é a educação sexual.

Como vimos, durante nosso passado colonial, em que pese a existência de mecanismos de punição comuns à Época Moderna, a população se apegava aos valores morais oficiais difundidos tanto pelo Estado quanto pela Igreja, o que culminou, tanto na Colônia quanto em graus variados no futuro, em uma culpabilização do sexo e associação deste ao pecado.

Essa influência de valores ainda se faz presente, uma vez que questões religiosas interferem no modo como os pais se sentem em relação ao ensino da Educação Sexual nas escolas do Brasil (FERREIRA, 2019, p. 121).

O desconhecimento é outro aspecto chave. Como já mencionado, durante a ditadura, um almirante defendia que não fosse ensinada sobre a procriação, mas antes sobre os valores ideais dos homens e das mulheres. É notável esse exemplo, pois difundiu-se em uma considerável parcela da população brasileira a ideia de que o ensino voltado à sexualidade para crianças e adolescentes representaria um ataque aos bons costumes, já que, em tese, seria algo voltado para ensinar como se dão as práticas sexuais. Embora as restritas diretrizes legais do país tenham um caráter enviesadamente biológico (ibidem, p. 112), trata-se de um paradigma muito mais amplo, que envolve questões psicológicas, mentais, sociais etc. e que pode ser um debate positivo em diversos aspectos se respeitadas as fases de desenvolvimento do indivíduo (FONSECA, VANDERLINE, LINS, 2022, p. 17), uma vez que eventuais frutos poderiam ser desfrutados, como a maior capacidade dos jovens em identificarem e denunciarem abusos, conhecimentos e prevenção dos riscos ao iniciarem suas vidas sexuais etc.

Ademais, a perspectiva freudiana aponta para a existência de uma sexualidade infantil, mas não com os mesmos fins da sexualidade adulta, pois seus objetivos não se restringem meramente ao campo da reprodução. Mesmo na fase adulta uma das finalidades da sexualidade diz respeito aos meios de se chegar ao prazer (não necessariamente sexual); nas crianças, o prazer teria uma caracterização diferente, em que seu corpo é notavelmente marcado de zonas erógenas (FERREIRA, p. 107- 108). Desse modo, a sexualidade se constitui no campo da subjetividade, e sofre influências do meio em que o indivíduo está inserido, sendo por excelência uma dimensão fundamental da constituição e desenvolvimento do ser humano, ultrapassando um mero funcionalismo biológico (FONSECA, VANDERLINDE, LINS, 2022, p. 11-13).

Assim, são inúmeras as contradições: ao mesmo tempo em que as discussões possam existir, são limitadas por fatores como a família e a própria escola, que, sendo microcosmo da sociedade, serve como reprodutora de valores sociais dominantes no contexto educacional. Não obstante, a constituição dos espaços de ensino também são entraves às discussões, afinal, se padroniza uma única sexualidade como universal, o que desconsidera outros aspectos indissociáveis da realidade social do indivíduo, como raça, gênero, orientação sexual etc. (FERREIRA, p. 111-113), embora sejam, em teoria, locais privilegiados para a promoção das diversidades. Ademais, a educação sexual pode se tornar aliada na busca pela garantia de outro direito fundamental: o direito à saúde, uma vez que a “saúde plena depende também de um desenvolvimento saudável da sexualidade. Se a saúde é um direito humano fundamental, o desenvolvimento da sexualidade também é um direito” (FONSECA, VANDERLINDE, LINS, 2022, p. 22).

Na prática, esse suposto privilégio do ambiente escolar não é refletido no cotidiano das salas de aula do Brasil, e os próprios docentes são vítimas do plano social em que estão inseridos. Em Santa Catarina, por exemplo, uma professora de um colégio particular foi demitida após ser filmada ensinando linguagem neutra (O GLOBO, 2023). O mesmo aconteceu com Elaine Cosmo, de 36 anos, demitida após ensinar para alunos do quinto ano “de onde vem os bebês”, pois ela teria desrespeitado o planejamento pedagógico da escola e gerado desconforto em alguns responsáveis, segundo a instituição particular do interior de Rondônia (MACHADO, 2022).

Essa influência da esfera familiar não é por acaso, nem pode ser negligenciada. A Constituição Federal de 1988 versa que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família” (BRASIL, 2016, p. 123). Essa educação, no que se refere à sexual, se dá, ainda que de modo subjetivo: no estudo de Ferreira constatou-se que houve por parte das crianças das escolas pesquisadas a divisão dos brinquedos entre aqueles que eram de “meninos”, de “meninas”, ou ainda de ambos. Brinquedos como carrinhos e bolas foram predominantemente selecionados por crianças do gênero masculino, enquanto aqueles como bonecas pelas homólogas do gênero feminino (FERREIRA, p. 115-116), o que pode demonstrar a atribuição de valores de atividades entre homens e mulheres em processos anteriores à escolarização, por meio da reprodução de padrões e estigmas sociais no seio familiar, centro primeiro de socialização do indivíduo (FONSECA, VANDERLINDE, LINS, 2022, p. 17).

Considerações finais

A História das Mentalidades, em que alguns autores como Ronaldo Vainfas, Laura de Mello e Souza e Mary Del Priori foram valorosos na elaboração desse trabalho, pode fornecer elementos metodológicos interessantes para o entendimento de fenômenos de longa duração e mais observáveis nas entrelinhas do cotidiano, como, por exemplo, os valores morais de cada indivíduo em dado tempo histórico. Foi feito nessas páginas um esboço de um quadro geral sobre a educação sexual no Brasil em perspectiva histórica, demonstrando as influências de um passado colonial na formação educacional do país. Não seria algo simples, afinal, trata-se de cinco séculos de história; então generalizações seriam inevitáveis, bem como a negligência de alguns aspectos em detrimento de outros. Como pôde ser observado, não houve sequer uma menção ao período imperial. Contudo, a escolha pela época da colonização não foi algo aleatório: é a partir da dominação portuguesa que se observa o lançamento das bases da sociedade brasileira nos diferentes âmbitos da sua formação. Também, dada a limitada bibliografia, o trabalho teria se valido de melhor qualidade e diversidade caso confrontado com outras produções e perspectivas.

É indispensável que não desconsideremos as mudanças que aconteceram ao longo do tempo. Contudo, observamos, diante dos exemplos mencionados acima, paralelos interessantes, bem como continuidades. A estigmatização das relações sexuais e questões correlatas no período colonial se valeram em grande medida de concepções religiosas preponderantes para o período, onde mecanismos punitivistas eram apenas um dos vários elementos que poderiam contribuir ou não para a adesão desses princípios nos seios das comunidades. Esse conservadorismo de raízes coloniais se fez presente a posteriori, seja na defesa da “pureza” e “inocência” dos governos militares, seja no desconforto que pais sentem com as discussões sobre sexualidade nos espaços escolares.

Também, a interiorização de valores modelares e considerados aceitáveis pelas sociedades apresentam marcante semelhanças nos diferentes tempos de nossa formação. O homem da Época Moderna, pequeno rei e sacerdote do lar, deveria ser um bom pai e marido, além de corajoso, como também bem queria nosso já mencionado almirante. Almirante este que ressaltou a pureza e delicadeza da mulher no século XX, assim como ela deveria ser paciente e recatada entre os XVI e XVIII. Ainda hoje, a escola atua de modo similar, introjetando através de padrões estabelecidos aquilo que é correto para o corpo social brasileiro, ainda que nem todos tenham a capacidade e desejo de se inserir nesses estereótipos.

Se hoje conquistamos nossa emancipação política da Metrópole, se não há denúncias ao Santo Ofício e não vivemos sob o julgo de um regime autoritário, não creiamos também que atingimos a suposta liberdade que por vezes acreditamos viver. O punitivismo ainda existe na contemporaneidade, porém adquiriu uma nova roupagem, muito mais “subjetiva” e tolerada socialmente: hoje é a própria moral, que não é menos atroz do que foram os elementos passados, pois pode causar a demissão de pessoas, e em casos mais extremos, também objetiva violentamente o anseio por controlar as mentalidades e os corpos, atingindo qualquer um que não se insira (nem deseja se inserir) no arquétipo considerado ideal. No passado se queimavam as bruxas, hoje a intolerância executa a comunidade LGBTQIA+ e tantos outros grupos.

As mentalidades se transformam e, paradoxalmente, se mantêm as mesmas, malgrado as diferenças de cada época. Diferente da concepção de Gilberto Freyre sobre um Brasil libertino, os pecados sempre existiram ao sul do Equador, e tanto no passado quanto no presente são passíveis de punições, exercidas e refletidas em qualquer esfera de menor grau em que a sociedade é espelhada.

 

Referências Bibliográficas

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[1] Optei por fazer este paralelo entre matrimônio e relação sexual devido ao fato de serem questões fortemente associadas para a moral cristã da época, visto que, como argumenta Del Priori (2009) as relações tinham função meramente reprodutivas segundo o discurso normativo oficial, e, por sua vez, as proles garantiriam mesmo às mulheres já casadas um estatuto socialmente reconhecido de boa mulher. Portanto, casamento e relações sexuais foram alvos de controle e normatização.

SOUZA, João Pedro Silva Santos. COLONIALISMO E SEXUALIDADE: A EDUCAÇÃO SEXUAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 8, Número 32, novembro, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Primeira Missa no Brasil (Victor Meirelles, 1860)

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