Ditadura militar: um debate sobre democracia e autoritarismo
Em 2024 estamos vivenciando os 60 anos do golpe que instituiu uma ditadura civil-militar no Brasil 1964 e 1985. Neste cenário a Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB) lança uma edição especial: O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira com o intuito de socializar experiências e suscitar reflexões, na Educação Básica, sobre a repressão e sobre as lutas pela democracia no país durante aquele período. O nosso objetivo é o de reforçar, na escola básica, a luta pela democracia, pela memória e pela justiça de reparação, elementos fundamentais para que nunca mais tenhamos regimes políticos de exceção como aquele.
Para esta edição, Carmen Gil, uma das organizadoras desta edição, conversou com Caroline Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e uma importante referência no debate sobre os usos da história sobre o tema da Ditadura Militar brasileira. Caroline também é uma das coordenadoras do LUPPA – Laboratório de Estudos sobre os Usos do Passado.
Nessa entrevista, vamos conversar sobre ensino e arquivos, o papel das professoras e professores, o debate sobre democracia e autoritarismo dentro do contexto de rememoração dos 60 anos do golpe de 1964.
[RBEB] Você tem pesquisado o ensino sobre a Ditadura, tanto no que se refere ao mundo da escola como na sociedade brasileira como um todo. Conte-nos rapidamente como e porque esta temática se lhe afigura como importante.
Tenho pesquisado a temática da ditadura civil-militar brasileira de 1964 há muitos anos. Pude acompanhar transformações no campo da pesquisa e do ensino nesse tempo.
Em relação à pesquisa, a disponibilidade e o acesso aos arquivos, e as abordagens preocupadas com recortes interseccionais, revolucionaram a historiografia do período. Temos hoje um vasto campo que, além dos processos mais amplos e comuns, característicos de um Estado ditatorial, demonstra as particularidades da ditadura em certas regiões. Em outras palavras,
saímos das generalizações das experiências do eixo Sudeste-Sul como explicações para o regime no restante do Brasil; e das vivências de pessoas brancas e de classe médica como realidades compartilhadas pelos demais setores sociais
Quanto ao ensino,
cada vez mais professoras e professores preocupam-se em abordar o tema, e, quando o fazem, sugerem uma aprendizagem que extrapole a sucessão dos governos dos ditadores.
Nos últimos anos, ainda que resguardados por diretrizes e normativas nacionais e internacionais, as professoras e os professores têm relatado práticas de autocensura e medo na abordagem do tema.
Essas mudanças nos campos da pesquisa e do ensino são multifatoriais, e as menciono porque acredito que também influenciam na importância conferida e nas justificativas atribuídas para se pesquisar e ensinar o tema. As conjunturas impõem certas necessidades, e essas práticas estão em diálogo com as demandas de cada presente. Por exemplo,
a pesquisa e o ensino da ditadura em 2024 estão atravessados por uma conjuntura de rememoração dos 60 anos do golpe de 1964, mas também marcados pela experiência de autoritarismo e militarização vivenciada no último mandato presidencial.
Em função disso, eu afirmaria que
a importância dessa temática hoje reside no necessário e urgente debate sobre democracia e autoritarismo.
Não meramente sobre suas definições, mas sobre a experiência cotidiana vivenciada nas escolas, nas comunidades escolares e na sociedade.
[RBEB] No período da ditadura a escola foi afetada por normativas que excluíram disciplinas, modificaram conteúdos ou criaram outras disciplinas. Tudo isto para reforçar uma educação cívica, controladora dos corpos e celebrativa dos grandes nomes e eventos. Como em suas pesquisas você foi encontrando pistas sobre como a ditadura afetou as escolas? (episódios….documentos…..)
Embora não seja uma pesquisadora do ensino durante o período da ditadura em 1964, posso relatar alguns elementos encontrados em minhas investigações.
Durante o mestrado, em que estudei a atuação do aparato repressivo da ditadura no Rio Grande do Sul, deparei-me com uma quantidade expressiva de casos de repressão a estudantes e professoras e professores, de diversos níveis de ensino. Não se tratava exclusivamente da coibição de atividades de protesto, mas de uma vigilância prévia, como se fossem “inimigos” ou “subversivos” a priori.
Ao estudar a chamada doutrina de segurança nacional, que orientou a reformulação do Estado após o golpe de 1964, foi possível entender a importância conferida por civis e militares à área e aos sujeitos da educação.
Isso justifica as reformas empreendidas pela ditadura, dotando a educação de um viés em conformidade com os interesses econômicos e geopolíticos daqueles que estavam no poder.
Posteriormente, no doutorado, ao empreender um estudo comparativo entre a repressão da ditadura argentina e brasileira, observei que esse fenômeno não ocorrera apenas no Brasil, mas também nos demais países do Cone Sul. Ou seja,
a educação era vista como estratégica por esses regimes ditatoriais, tanto pela possibilidade de doutrinação que almejavam quanto pelas formas de controlar aqueles que eram identificados com a “subversão”.
Hoje em dia, como orientadora de trabalhos sobre a temática, observo que as novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores têm encontrado cada vez mais indícios das ações normativas e repressivas da ditadura no campo educacional. Ainda, existe uma vasta massa documental dos órgãos do aparato de inteligência e repressão da ditadura a ser explorada, hoje disponíveis digitalizados no portal Memórias Reveladas.
[RBEB] No ensino da ditadura na escola brasileira tivemos a produção do silêncio, pois as práticas de tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres – que para muitos historiadores caracterizam o “terrorismo de Estado” – foram ignoradas. Nos anos pós ditadura uma parte dos livros didáticos ainda abordava o período como um rol de presidentes militares exaltando seus feitos econômicos e políticos. O que mudou no ensino da ditadura civil militar nos materiais didáticos, nos últimos anos?
Nós observamos uma mudança não somente no conteúdo dos livros didáticos, mas também na disponibilidade de outros materiais para o trabalho com a ditadura de 1964 em sala de aula. Falo de documentários, filmes, obras literárias, séries, e a vasta produção presente em redes sociais virtuais.
Nesse sentido, a quantidade nem sempre está acompanhada de qualidade e, portanto, colegas têm sugerido que uma das habilidades a serem desenvolvidas pelas professoras e pelo professores na contemporaneidade é a curadoria de conteúdos digitais – selecionar e recomendar onde encontrar materiais de qualidade para suas turmas.
Especificamente em relação aos livros didáticos, talvez o que possa ser indicado como uma das principais mudanças foi o caráter celebratório, laudatório e ufanista que representava uma narrativa centrada nos governos dos generais e em suas obras de infraestrutura.
Incorporaram-se os resultados de pesquisas acadêmicas e adotaram-se metodologias mais ativas de aprendizagem.
Isso se deveu às mudanças nas políticas públicas relacionadas ao currículo e ao livro didático, mas também dialoga com essa memória social que vai sendo construída com as produções culturais citadas anteriormente.
[RBEB] O que é imprescindível ao professor e a professora conhecer para planejar uma aula sobre a ditadura civil militar brasileira?
Do meu ponto de vista, o imprescindível é saber o que essa pessoa deseja com essa aula, ou seja, qual o sentido que ela está atribuindo ao ensino da ditadura de 1964.
Acredito que a resposta a essas questões é mais importante, ou melhor, anterior, ao domínio de qualquer assunto sobre a ditadura de 1964. Isto porque o conhecimento de certos aspectos do regime ditatorial pode ocorrer a qualquer momento, a partir do contato com documentos, bibliografias e recursos audiovisuais. Nesse sentido, recomendo excelentes projetos como o História da Ditadura, um portal com muito conteúdo para a formação continuada de docentes e para ser utilizado em sala.
Agora,
uma reflexão da professora ou do professor sobre sua prática e sobre o significado dessa aula no seu planejamento, isso me parece imprescindível.
[RBEB] É lugar comum na historiografia, e mesmo na sociologia e ciências políticas, que a Ditadura não passou completamente. Você concorda com esta opinião? Que elementos/exemplos da realidade da atual sociedade brasileira reforçam a sua posição a este respeito?
Concordo em parte. É inegável que certos elementos da contemporaneidade remetem à práticas da ditadura, como a violência institucional. Mas, por exemplo, quando falamos dessa violência, o fato dela permanecer durante a democracia é um problema da ditadura ou da democracia?
Nesse sentido, deveríamos nos perguntar
a quem interessa que determinados passados não passem.
De certa forma, não desresponsabilizamos aqueles que podem intervir no presente ao afirmar que a violência de hoje é uma herança da ditadura. Não acabamos “colocando” o problema no passado?
Novamente,
reitero que existem muitos indícios de continuidades entre o regime ditatorial e o democrático, e ter estudado o processo constituinte e a elaboração da Constituição de 1988 deixou isso ainda mais evidente.
Certos temas foram debatidos, mas prevaleceu versões conciliatórias e conservadoras e, por isso, certos capítulos da Constituição de 1988 ainda não muito semelhantes às constituições ditatoriais, como os que tratam dos meios de comunicação, da propriedade da terra e da segurança pública.
Carmem Zeli de Vargas Gil
Licenciatura em História, mestrado e doutorado em Educação e hoje professora na área de Ensino de História da Faculdade de Educação da UFRGS. Atuou na Educação Básica em ensino fundamental, médio, EJA. As atividades de ensino, pesquisa e extensão são no campo do Ensino de História em diálogo com o patrimônio cultural, cultura digital e materiais didáticos amparados teoricamente.
E-mail: carmemz.gil@gmail.com
Caroline Bauer
Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em História pela UFRGS e pela Universitat de Barcelona. Integra o Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa).
E-mail: caroline.bauer@ufrgs.br
CAROLINA BAUER. Ditadura militar: um debate sobre democracia e autoritarismo. Entrevistador: Carmem Gil. Revista Brasileira de Educação Básica. Disponível em: <URL>. Acesso em: dia mês ano.
Imagem de destaque: Carolina Bauer