7—Forcas Policiais Em Acao Contra Manifestantes Um Dia Antes Da Violencia Empreitada Durante A Sexta Feira Sangrenta

Golpe de 1964: o caráter fascista do revisionismo 

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Renata Fernandes Maia de Andrade

Bolsista CAPES. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, membra do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura. Graduada em História, Mestra em História da Educação. Colunista da Revista Senso e articulista do Projeto Pensar Educação, Pensar o Brasil (1822-2022) da UFMG. Autora do livro Cartografia e poder: proposições didáticas investigativas e na obra Caderno Pedagógico para o Ensino Religioso: crenças religiosos e filosofias de vida do capítulo Tradição escrita: registro dos ensinamentos sagrados. Atua como Professora de História do Ensino Médio na rede privada em Belo Horizonte/MG

E-mail: renatafma0212@gmail.com

Raquel Melilo

Raquel Augusta Melilo Carrieri

Raquel Melilo possui graduação em Geografia, Bacharelado e Licenciatura, pela UFMG, Mestrado em Educação Tecnológica pelo CEFET-MG e Doutorado em Geografia pela Instituto de Geociências da UFMG. Atualmente é professora do Ensino Médio e analista de área do conhecimento no colégio Santo Agostinho. Também atua com produção de material didático e projetos diversos no campo educacional.

E-mail: raquelmelilo.ead@gmail.com

Quem nunca ouviu da boca de uma geração de saudosistas que durante o período da ditadura militar a Educação era melhor? Como educadoras, os termos “Educação” e “melhor” podem ter várias camadas de leitura. De qual Educação estamos falando? Pública, privada, básica, superior? O que é uma Educação melhor? Para quem?

Análises recentes mostram que Educação, como formação de indivíduos com pensamento autônomo e letramentos para a criação de uma sociedade mais igualitária, pode ser ruim para regimes autoritários. A partir dessa primeira reflexão e, ainda em uma primeira camada bastante superficial, pode-se dizer que a Educação brasileira melhorou com o processo de redemocratização recente. Como exemplo, podemos mencionar o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão fundado em 1937, responsável atualmente pela coordenação dos sistemas de avaliação de ensino no Brasil e que teve sua estrutura reduzida durante o regime militar. Em 1973, foram fechados os centros regionais de pesquisa e, em 1976, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) também foi encerrado. Instituições governamentais que dão suporte para a educação brasileira, na ditadura militar, sequer existiam.

Utilizaremos aqui, também, os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por meio das Estatísticas do Século XX, que trazem uma edição da publicação de mesmo nome e contém arquivos em Excel com informações extraídas de volumes do Anuário Estatístico do Brasil e das Estatísticas Históricas do Brasil. Eles mostram que, no Brasil a partir da década de 1990, existem mais crianças alfabetizadas do que na ditadura militar. Somente a partir da redemocratização, um corpo legislativo foi consolidado para o sistema educacional brasileiro. Exemplo disso, foi a criação do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), responsável pela avaliação do Ensino Básico brasileiro, que iniciou sua estruturação em 1988, implementado a partir da década de 1990. O gráfico abaixo apresenta as taxas de escolarização por níveis de ensino regular no Brasil de 1960 a 1994.

Figura 1: Taxas de escolarização por níveis de ensino regular no Brasil de 1960 a 1994

Fonte: Estatísticas da Educação Básica do Brasil, Inep-1996.

Por meio do gráfico conseguimos perceber o aumento do número de estudantes na Pré-escola e no Ensino Médio, demonstrando a expansão do atendimento escolar na redemocratização. Isso é resultado, além da Constituição de 1988, que garantiu que a Educação no nível básico fosse ampliada a todos os brasileiros, dos esforços públicos que buscam universalizar a educação brasileira. A partir disso, é possível  pensar em que medida essa ampliação foi realizada e como ela garantiu acesso a uma formação qualificada (exercício da cidadania plena e inserção no mercado de trabalho), porém esse não é nosso objetivo nesse artigo. A partir apenas dos dados mencionados, como é possível aos saudosistas da ditadura, afirmar que a restrição de acesso à educação era melhor? Não é. Logo, é inocência ou limitação cognitiva dizer que os militares tinham um projeto educacional eficiente.

Além da educação, os brasileiros mais ufanistas têm uma capacidade bem peculiar de associar o militarismo ao desenvolvimentismo. Em algumas áreas e setores específicos, pode ser que essa associação faça sentido. Como projeto de país, não. Mas não vamos nos concentrar em questões econômicas já esgotadas por muitos especialistas (relação crescimento econômico X aumento da dívida externa, por exemplo), tais como os Ensaios Econômicos da Escola de Pós-Graduação em Economia do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas que afirma

Três importantes críticas podem ser feitas à condução de política econômica no período militar. Primeiro, o fato do crescimento experimentado pelo país entre 1964 e 1985 não ter se traduzido numa redução das desigualdades sociais e de uma proporcional diminuição da pobreza; segundo, a exagerada estatização ocorrida, principalmente após 1974. Terceiro, a não dotação do país com uma autoridade monetária independente que tivesse permitido maiores garantias, após 1972, à relativa estabilidade de preços então alcançada (Cysne, 1994. p. 3).

O trecho resume os três pontos mais importantes sobre a condução da política econômica na ditadura militar brasileira. Crescimento econômico com ampla concentração de renda que aumentou as desigualdades sociais, políticas monetárias ineficientes que dificultaram a estabilidade econômica, além do enorme intervencionismo estatal. Cysne (1994) nos mostra mais um mito desse período da história brasileira chamado de milagre econômico.

A ideia aqui, no entanto, é tentar desvelar o caráter fascista de uma prática discursiva que parece inocente: o resgate ideológico de um livro que apresenta uma visão revisionista da ditadura militar brasileira e que nos parece ter sido base para a gestão Bolsonaro (2018–2022).

Desenvolvimento

Iniciaremos apresentando uma obra pouco conhecida chamada O Orvil, que ao ser lido de trás para frente revela-se como “O Livro”.  Essa obra, de natureza revisionista, negacionista, ressentida e de retórica golpista em relação a 1964, surgiu como uma resposta ao livro Brasil Nunca Mais[1] que, nos anos 1980, expôs os crimes da ditadura militar brasileira com base nos processos da Justiça Militar. Embora tenha sido concluído durante o governo de José Sarney (1985-1990), a publicação da obra foi vetada, tendo em vista a delicadeza da transição para a democracia.

Para compreendermos a obra será necessário voltar no tempo. Precisamente a partir de 1º de abril de 1964, quando o presidente da República, João Goulart, foi deposto pelas Forças Armadas Brasileiras. Os militares assumiram o governo inconstitucionalmente e atribuíram para si poderes de exceção. Após esse episódio, o Brasil entrou em 21 anos de ditadura marcados por autoritarismo, violência e crescimento econômico com características conservadoras.

Governaram nosso país Castello Branco (1964-1967) que construiu todo o aparelho repressor de Estado que garantiu a longevidade à ditadura. Costa e Silva (1967-1969) que foi fiador dos grupos militares mais radiciais com o Ato Institucional nº 5 que foi o mais autoritário da ditadura. Médici (1969-1974) quase um desconhecido na época e que teve a marca em sua gestão dos anos de chumbo, período de intensificação das perseguições e da tortura. Geisel (1974-1979), por sua vez, iniciou a abertura e enfrentou a oposição dos militares radicais que não desejavam a flexibilização do regime. E, por fim, Figueiredo (1979-1985) que consolidou o processo de abertura lento, gradual, seguro e impune da ditadura militar.

Não podemos nos esquecer de mencionar os civis que participaram do golpe e da gestão dos presidentes militares, afinal, a participação deles foi essencial. Podemos começar pelo IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) que reunia a nata do empresariado brasileiro e que custeavam as propagandas contra Goulart, além de possuírem uma agenda golpista própria. Participaram também Roberto Campos, Octávio Gouvêa de Bulhões, Antônio Delfim Netto, Hélio Beltrão, Márcio Henrique Simonse, Jarbas Passarinho, Mário Andreazza, dentre outros.

Além de contextualizar historicamente o cenário que gestou a obra O Orvil, consideramos importante conceituar aqui revisionismo e negacionismo histórico. Os revisionistas e os negacionistas históricos distorcem e alteram o passado objetivando legitimar suas posições ideológicas e políticas no presente, por isso, seus trabalhos não possuem método, pois seu objetivo não é refletir e analisar determinado tema, mas confundir os leitores mais leigos. Revisionismo e negacionismo possuem uma linha tênue de separação, porém são distintos. Vamos a essas especificidades.

Revisionismo, de acordo com Rafael Andrade (2022), pode ser exemplificado por meio do caso do autor alemão Ernest Nolte que escreve o artigo O passado que não quer passar em 1986. No texto, Nolte afirmou que o Holocausto e os crimes nazistas deveriam ser avaliados no contexto histórico em que aconteceram, isto é, no mesmo cenário em que crimes eram cometidos na URSS. Nolte, por exemplo, não faz uma revisão histórica séria em seu artigo, mas pratica o revisionismo, uma vez que ao comparar Nazismo e crimes na URSS ignora os fundamentos originais da política nazista, bem como as especificidades dos processos da Revolução Russa, além de não considerar todo o arcabouço historiográfico sobre tais temas.

Negacionismo histórico, por sua vez, relaciona-se a uma postura desonesta de negação e manipulação de fatos históricos e “[…] que os seus primeiros porta-vozes surgiram na França e nos Estados Unidos ainda nos anos 40, mas que progressivamente encontraram adeptos em vários países […]” (Andrade, 2022. p. 114). O escritor de maior destaque para o negacionismo histórico é Paul Rassinier que em 1948 escreveu La Passage de La Ligne onde manipula intencionalmente as informações sobre as câmaras de gás no Holocausto com o objetivo de negar os crimes nazistas. As teorias de conspiração são características inerentes ao negacionismo histórico, pois esses escritos constroem uma narrativa falsificada dos fatos históricos.

Exemplo de uma obra atual atravessada em alguns momentos pelo revisionismo e em outros pelo negacionismo histórico é o projeto Brasil Paralelo. Segundo o site[2], esse projeto relaciona-se aos ramos do entretenimento e da educação, sendo sua missão o resgate de bons valores, ideias e os sentimentos no coração de todos os brasileiros, bem como os valores da empresa são a verdade e a meritocracia.

Nesse artigo, tendo em vista nosso recorte, destacaremos uma produção da empresa, o documentário chamado 1964 – O Brasil entre livros e armas que atualmente possui 11.316.775 visualizações[3]. Foi lançado no dia 31 de março de 2019, data apontada pelos militares para a chegada ao poder. Segundo Rafael Andrade (2022), o vídeo foi produzido por Henrique Zingano, dirigido pelos sócios-fundadores Filipe Valerim e Lucas Ferrugem, roteirizado igualmente por Zingano e Ferrugem.

O vídeo busca apresentar outra versão sobre os fatos que levaram ao golpe de 1964 e sobre a ditadura civil-militar, disputando, assim, a memória pública desses episódios. O tipo de abordagem do vídeo corrobora, por meio da distorção e manipulação de fatos históricos, com a ideia de que a ditadura brasileira foi branda e pouco violenta e, isso, não corresponde ao que ocorreu. Vale destacar que a empresa Brasil Paralelo declarou à época do lançamento do vídeo que a produção de tal material não foi produzido com o intuito de apoiar o golpe de 1964 ou a ditadura. Porém,

o fato desta produção ser a sétima do think tank, que desde 2017 vinha publicando filmes conservadores e anticientíficos a respeito da história do país, fez com que historiadores, jornalistas e o público esperasse um filme apologético ao período antes mesmo deste ser lançado — expectativa essa que, como veremos, se confirmou no longa-metragem (Andrade, 2022. p. 153).

O histórico e a reputação da empresa geraram desconfianças acerca de suas produções supostamente históricas. O documentário 1964 – O Brasil entre livros e armas traz uma interpretação tendenciosa acerca dos eventos da história do Brasil e, isso é problemático, pois contribui para a construção de uma visão distorcida da história de nosso país. Portanto, o revisionismo e o negacionismo histórico geram produções ideologicamente engajadas, mas sem que os leitores e espectadores saibam, além de não produzirem materiais sustentados cientificamente.

A obra O Orvil se localiza na fronteira do revisionismo e do negacionismo histórico, pois seu maior objetivo é o de desenvolver uma história própria em que se visa salvaguardar apenas o ponto de vista dos militares que participaram da repressão e da tortura na ditadura civil-militar, inclusive com a presença de teorias conspiracionistas. 

Ao longo das últimas décadas, o livro voltou a circular entre setores da extrema-direita, revelando um retrato do pensamento contemporâneo desse grupo com relação a projetos educacionais. Segundo o livro,

na esfera educacional, entretanto, as dificuldades foram consideráveis. Após anos de intensa propaganda marxista, os estudantes radicais, apoiados pelo emergente ‘clero progressista’, tornaram-se o único foco consistente de oposição após a Revolução. Doutrinados por partidos como o PCB, PC do B, PORT, AP e POLOP, já possuíam uma perspectiva de esquerda, e os mais politizados defendiam a luta armada. […] Com essa mentalidade radical, compreende-se a dificuldade que a Revolução de Março enfrentou para pacificar o meio educacional (O Orvil, 1988, p. 126).

Isso evidencia a busca por controle sobre os movimentos estudantis que ocorreu na ditadura militar. Os professores e os reitores das universidades, especialmente as públicas, eram o principal alvo.  Segundo Maria Albuquerque Fávero (2009), na obra A UNE em tempos de autoritarismo, foi no período conhecido como Experiência Democrática (1946 a 1964) que o movimento estudantil brasileiro, capitaneado pela UNE (União Nacional dos Estudantes), começou sistematicamente a luta pela reforma universitária, iniciado, em 1957, no I Seminário de Reforma do Ensino.

Não resta dúvida, todavia, de que se, a partir desse seminário, começa a esboçar-se a preocupação com a transformação estrutural das instituições de ensino, é o debate em torno da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que introduz a pergunta “Universidade para quem?”, que se sobrepõe à questão “Universidade como ou para quê?”. No bojo dos debates em torno da LDB, principalmente na discussão escola pública versus escola privada, se impôs, no meio estudante, a luta pela democratização do ensino (Fávero, 2009. p. 37).

Esse debate se intensificou e na década de 1960 tivemos a campanha pelo Projeto de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional com a incorporação na mobilização de intelectuais e educadores. Porém, com o golpe de abril de 1964, a UNE e o movimento estudantil viveram uma história de perseguição. Além disso, o Estado brasileiro promoveu diversas intervenções no sistema educacional, de forma autoritária, objetivando o combate ao suposto comunismo infiltrado.

Observando O Orvil, ao abordar a educação, e as análises de Fávero, percebemos que o embasamento teórico e ideológico da gestão Bolsonaro (2018–2022) resgata os princípios do livro. Percebe-se isso quando identificamos um discurso contrário à suposta doutrinação ideológica de esquerda nas instituições de ensino, bem como críticas aos movimentos sociais compostos por estudantes.

Na contemporaneidade, ao contrário do período da ditadura militar, não é viável eliminar fisicamente o inimigo; assim, o termo guerra cultural assume um papel central no projeto educacional. Seu objetivo é destruir as instituições de ensino e controlar o currículo e os professores, numa tentativa de supostamente afastar a esquerda do poder. Segundo O Orvil “[…] a desordem se instalou na máquina administrativa, no campo, na área educacional e na área trabalhista através da infiltração, do proselitismo e da agitação esquerdista” (O Orvil, 1988, p. 100).  Na obra, termos como “trabalho de massas” são empregados para denunciar as infiltrações no sistema educacional brasileiro.

Para compreendermos essa relação entre educação e esquerda brasileira, presente tanto no Orvil quanto na gestão Bolsonaro (2018–2022), precisamos discutir a teoria da guerra revolucionária criada nos anos precedentes ao golpe de 1964 e presentes na gestão da educação entre 2018 e 2022. Segundo Maud Chirio (2012), no Brasil, por meio da DSN (Doutrina de Segurança Nacional) e das publicações da ESG (Escola Superior de Guerra), que irrigam as Forças Armadas, a teoria da guerra revolucionária foi importada do exército francês que, após perder as guerras da Indochina e Argélia, iniciou a construção de supostos comportamentos subversivos, criando um inimigo ideal-típico. Essas teses despertaram o interesse dos militares brasileiros que criaram

a hipótese da guerra total subsiste, mas de convencional e nuclear passa a ganhar os contornos quase exclusivos da luta contra o agente comunista infiltrado, veneno ideológico, agitador social e político, artífice da dissolução da unidade nacional, antes de metamorfosear, armas em punho, em guerrilheiro em busca da conquista de poder (Chirio, 2021, p. 20).

Após a tradução de diversos documentos franceses sobre a tal guerra revolucionária, os oficiais brasileiros passaram a ter como objetivo o combate dos revolucionários brasileiros que, segundo eles, tinham por objetivo a conquista física e moral da população, utilizando-se das técnicas de greves, terrorismo, manejo das massas, comícios, guerrilha e da educação.

Dos quartéis o conceito de guerra revolucionária foi exportado para a sociedade civil e parte da direita e da extrema-direita demonstraram apoio ao combate dos revolucionários, sustentando a ideia da existência de um inimigo interno. No arcabouço ideológico que constrói esse inimigo ideal-típico também estão os professores.

Na perspectiva da guerra revolucionária, na narrativa do Orvil, aparece também os registros de quatro supostas tentativas de golpes comunistas no Brasil: a primeira em 1922, com a criação do PCB; a segunda entre 1954 e 1964, com as Ligas Camponesas e os discursos inflamados de Brizola e Luiz Carlos Prestes; a terceira entre 1964 e 1974, com a luta armada e, por fim, estaríamos diante da quarta tentativa, após o fim do regime e considerada a mais perniciosa de todas, caracterizada pela infiltração nas instituições brasileiras, principalmente na educação e na cultura, com o propósito de doutrinar a sociedade e moldar uma mentalidade social em direção ao comunismo.

E como tudo isso se apresenta na atualidade? Tornou-se necessário vencer as eleições e expurgar os infiltrados comunistas do Estado brasileiro, incluindo professores e intelectuais. Esse raciocínio fica evidente no Orvil, pois nele também defende-se que

na esfera educacional, onde as esquerdas obtiveram seu maior êxito, valendo-se de estudantes e clérigos progressistas, procuravam disseminar sua doutrinação entre as massas populares. […] a União Nacional dos Estudantes (UNE), através de seu Centro Popular de Cultura, assim como o próprio MEC e as Secretarias de Educação dos Estados, se empenharam em realizar a aliança política entre trabalhadores, estudantes e camponeses, como premissa da revolução (O Orvil, 1988, p. 105).

Dessa forma, criou-se um novo ambiente de defesa na educação, visando a eliminação dos inimigos internos da nação, que, segundo a narrativa, segue orientações socialistas internacionais. Como essa visão revisionista acabou reverberando nas políticas educacionais?  Como exemplo, cita-se o corte de mais de seis mil bolsas de pós-graduação pela Capes, em 2019, que teve como objetivo o fim do financiamento de supostos “grupos comunistas” infiltrados nas pesquisas. Já em 2020, O CNPq lançou um edital de iniciação científica sem a área de humanidades. Isso ocorreu porque as Ciências Humanas são predominantemente vistas como socialistas e alimentadoras da doutrinação ideológica em instituições públicas e privadas. Em 2021, houve debates sobre a mudança de livros didáticos para remover temas polêmicos e o suposto ENEM neutro que excluiria questões fundamentais da História do Brasil, como a ditadura militar e a escravidão.

Por fim, tem-se a pesquisa A liberdade acadêmica está em risco no Brasil? realizada pelo Observatório do Conhecimento, Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e Observatório de Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC, feita com pesquisadores, docentes e estudantes dos programas de Pós-Graduação de instituições públicas e privadas de ensino superior de todo o país. Ao todo 1.116 pessoas das cinco regiões do Brasil responderam a um questionário de 30 questões. As primeiras análises da pesquisa apontam que 35% dos respondentes já limitaram a si próprios em suas pesquisas e aulas por medo de consequências negativas. 58% dos respondentes conhecem experiências de sujeitos que sofreram interferências em suas pesquisas e aulas. Segundo o relatório

De fato, as pessoas mais afetadas por ameaças e violações à liberdade acadêmica são as que fazem pesquisa ou lecionam nas áreas de Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, seguidas de perto pela área de Ciências da Saúde. Também é notável a proporção de respondentes da área de Linguística, letras e Artes (9%) que já limitaram o conteúdo de suas aulas por receio de retaliações ou consequências negativas (Pesquisa Nacional: A liberdade acadêmica está em risco no Brasil? p. 5, 2022.).

A pesquisa deixa claro que a liberdade acadêmica no Brasil passou por riscos e fragilidades, podendo ter gerado um apagão de ideias e até mesmo fuga de cérebros, tal como ocorreu com a pesquisadora Larissa Mies Bombardi que decidiu sair do Brasil, em 2019, devido a intimidações que recebeu por causa da sua pesquisa envolvendo agrotóxicos.

Considerações finais

Iniciamos nossa análise neste artigo com dois mitos reproduzidos pelos saudosistas da ditadura civil-militar: boa educação e desenvolvimento econômico. O primeiro desconstruído com dados estatísticos que mostram que o acesso à educação básica em nosso país é maior na redemocratização. Além disso, pesquisas já desconstruíram o mito do milagre econômico brasileiro apontando o aumento das desigualdades sociais.

Em seguida, utilizamos o livro O Orvil para apresentar a visão revisionista da ditadura militar brasileira e como ele foi base para a gestão Bolsonaro (2018–2022). Para isso apresentamos, de forma básica, os conceitos de revisionismo e negacionismo histórico, bem como de guerra revolucionária que orientou os militares no golpe de 1964 nas perseguições aos movimentos sociais, tal como a UNE.

Por fim, abordamos as consequências atuais desse revisionismo nas políticas educacionais, evidenciando a ameaça à liberdade acadêmica no Brasil, com exemplos de cortes de bolsas de pós-graduação, mudanças nos livros didáticos e fuga de cérebros.

O pesquisador João Cezar Castro Rocha, em seu livro Guerra cultural e retórica do ódio, argumenta que o risco de fracasso da guerra cultural é significativo e diante dessa frustração, a violência que estava restrita às redes sociais pode se espalhar para as ruas e salas de aula. O projeto educacional fascista foi derrotado nas urnas, em 2022, porém ainda está presente entre deputados, senadores, governadores e membros da sociedade civil, podendo retornar como prática discursiva potente a qualquer momento, exigindo nossa vigilância perene.

No livro Como funciona o Fascismo, publicado em 2005 e de autoria de Jason Stanley, temos uma análise dos líderes da atualidade, democraticamente eleitos, mas que possuem retórica fascista. Nele, no capítulo 3, aborda-se uma característica marcante dessa retórica: o Anti-intelectualismo. Segundo o autor, “a política fascista visa minar o discurso público atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem” (Stanley, 2018, p. 48). Isso não quer dizer que não exista um papel para as escolas, universidades e a cultura na política fascista, porém, elas devem apresentar apenas os pontos de vista considerados legítimos pelo líder: a proteção da família tradicional, o orgulho do passado mítico e religioso e a tradição.

A cultura e a educação fascista buscam mudar o senso comum, alterando os significados de palavras e conceitos-chave que utilizamos para compreender o mundo, tal como o de liberdade, educação e cultura. Por isso, uma educação plural, democrática e livre representa uma ameaça ao projeto fascista. Estejamos atentos. Sempre.

Referências

ANDRADE. Rafael Herculano de.  Negacionismo no YoutubeUm “Brasil Paralelo” a serviço das novas direitas. Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Monografia. 2022.

BRASIL NUNCA MAIS: UM RELATO PARA A HISTÓRIA. São Paulo: Vozes, 1985.

CHIRIO, Maud. A política dos Quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

CYSNE, Rubens Penha. Ensaios Econômicos da Escola de Pós-Graduação em Economia  do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas. Nº 227, 1994.

FÁVERO, Maria de Lourdes de A. A UNE em tempos de autoritarismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

FESTA, Marcos Vinícius Paludo. O Projeto Orvil e a introdução da guerra cultural no contexto brasileiro. XV Encontro Estadual de História da ANPUH – RS. Universidade de Passo Fundo, 2020. Disponível em: https://www.eeh2020.anpuh-rs.org.br/resources/anais/15/anpuh-rs-eeh2020/1598229871_ARQUIVO_a4d7dbd78eb0d1d02223ec64572212eb.pdf   Acesso em 06. Jun. 2023 às 14h23.

FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho – Os livros secretos da ditadura: Os livros secretos da ditadura. São Paulo: Record, 2009.

IBGE. Estatísticas do Sécuo XX. Disponível em https://seculoxx.ibge.gov.br/populacionais-sociais-politicas-e-culturais/busca-por-temas/educacao.html Acesso em 03.Jun.2024 às 16h56.

INEP. ESTATÍSTICAS DA EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL. 1996. Disponível em https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/estatisticas_da_educacao_basica_no_brasil.pdf   Acesso em 03.Jun.2024 às 16h56.

NASCIMENTO, Jose. Maciel. ORVIL: as tentativas de tomada do poder. São Paulo: Editora Schoba. 1988.

OBERVATÓRIO DO CONHECIMENTO; CENTRO DE ANÁLISE DA LIBERDADE E DO AUTORITARISMO (LAUT); OBERVATORIO PESQUISA, CIÊNCIA E LIBERDADE (SBPC). Pesquisa Nacional: A liberdade acadêmcia está em risco no Brasil? [Relatório]. Rio de Janeiro: Obervatório do Conhecimento, XX. Jul. 2022.

ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. 1ª ed. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. São Paulo: L&PM Editores, 2018. 

STARLING, Heloísa; SCHWARCZ, Lilia. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

[1] A obra Brasil Nunca Mais foi desenvolvido por Dom Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o Pastor presbiteriano Jaime Wrigth clandestinamente entre 1979 e 1985 e produziu uma significativa documentação sobre a ditadura civil-militar brasileira. O livro organizou várias páginas de processos do STM (Superior Tribunal Militar) revelando a política estatal de tortura no Brasil. Atualmente essa documentação faz parte do Arquivo Edgard Leuenroth na Unicamp. Disponível em https://ael.ifch.unicamp.br/   Acesso em 08. jun. 2024 às 09h33.

[2] Mais informações disponíveis em: https://www.brasilparalelo.com.br/o-que-e-a-brasil-paralelo. Acesso em: 07. Jun. 2024 às 14h23.

[3] Dados retirados na página da Brasil Paralelo na plataforma do YouTube. Disponível em: https://youtu.be/yTenWQHRPIg?si=oW6ygRkFqpYGwbVh Acesso em: 07. Jun. 2024 às 14h29.

CARRIERI, Raquel Augusta Melilo. ANDRADE, Renata Fernandes Maia de. Golpe de 1964: o caráter fascista do revisionismo. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Arquivo Nacional

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