Educação das (in)sensibilidades: histórias e memórias da ditadura no Brasil
Quando eu era criança, para mim, os territórios da área urbana da cidade em que eu morava era dividido entre a “Rua” – onde estavam localizadas as repartições públicas, entre elas a escola, o comércio e as casas dos bem-nascidos da cidade; separada da rua por um córrego que, em nome oficial e sem águas claras, inspirava, por assim dizer, o nome da outra banda da cidade, a “Água Preta” – onde residiam famílias trabalhadoras, com suas numerosas proles, todas em casas de alvenaria. Pela “Água Preta” chegava-se à parte mais pobre da cidade, a “Ferrugem”, não por acaso, pelo nome do território e pela pobreza das pessoas, habitados por uma população de maioria negra. Contíguo à Ferrugem estava o “Bambu”, a zona de prostituição da cidade, reconhecida por todo mundo, mas conhecida mesmo pelos homens de todas as classes e de todos os territórios da cidade.
Eu me mudei da cidade no final da década de 1970, quando estava com 13 anos. Com a família toda, nós nos deslocamos para a região industrial de Belo Horizonte/Contagem, onde já residiam vários parentes nossos. Ao longo do tempo, voltei inúmeras vezes à cidade. Hoje, frequento um grupo no Facebook que reúne mais de 3.500 pessoas. A considerar o tamanho da população do município, isso corresponderia a mais de 30% dos habitantes da cidade; considerada apenas a população da área urbana, tal grupo mobiliza o equivalente a mais da metade desta população.
Tanto em minhas contínuas viagens à minha cidade quanto, agora, no grupo do Facebook, jamais ouvi nenhuma reflexão ou indicação sobre os possíveis nomes do, hoje, bairro da Ferrugem. Nunca, em momento algum, eu ouvi alguém relacionar o nome do bairro com a cor da pele das pessoas que o habitavam. No entanto, desde criancinha eu sabia. Sabia porque sentia. Ninguém nos ensinava, mas a experiência cotidiana fazia com que o aprendizado nos entrasse pelos poros, por todos os sentidos, e nos dava a quase exata medida de como a divisão dos territórios era feita e a que ela se prestava: para dividir, discriminar e governar as populações.
No grupo a que me referi acima, são postadas, continuamente, imagens da cidade e de seus diferentes territórios. São fotos antigas e atuais. Nelas e, sobretudo, nas alocuções e descrições que as acompanham, assim como no comentário, a cidade “antiga” era quase perfeita: todas as pessoas tinham casa, tinham o que comer, a água era limpa, a fartura era grande e todos se congratulavam-se nos festejos e na camaradagem. Nada de preconceitos, violências, fome… Dos povos ancestrais, exterminados, é como se nunca tivessem existido e, claro, não continuam existindo bem “ali”.
Isto tudo me veio à lembrança quando me pus a pensar para escrever este pequeno texto de memórias sobre a educação nos tempos da ditadura civil-militar que assolou o país entre 1964 (ano em que eu nasci!) e 1985. Isto porque sempre me chamou a atenção o fato de muitas pessoas, mesmo colegas professores, sobretudo quem vivia no interior do Brasil naqueles tempos, dizerem que não viveram a ditadura. É como se “tudo aquilo” tivesse ocorrido nos grandes centros urbanos e, quando muito, na região do Araguaia. Desse modo, a vida cotidiana, da escola à igreja, das relações familiares aos negócios, da casa à comida e tudo o mais, tivesse sido vivido longe das maléficas influências da famigerada ditadura.
É claro que é sempre preciso lembrar que se trata de memória, logo, também do esquecimento. Mas o que o trabalho da memória recoloca é, justamente: trata-se de um esquecimento ou, pior que isso, de uma concepção de educação que não se volta para as dimensões subjetivas e das sensibilidades? Penso que, no mais das vezes, trata-se dessa segunda opção. As pessoas não sabem que sabem, pois também não interrogam os modos pelos quais foram educadas e como “aprenderam”, pois também não sabem o que aprenderam.
Envolvido que estou nas discussões sobre a memória da ditadura, tenho feito um esforço para me lembrar dos processos educativos pelos quais passei e que, visto de hoje, mostram o enraizamento da cultura política autoritária nos mais longínquos rincões deste país. Como afirma Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, “eu cresci na ditadura”, e as memórias do meu corpo, das minhas sensibilidades e da minha formação estão comigo para me lembrar (OLIVERIRA, 2022). Das práticas educativas de uma igreja tridentina e que andava de mãos dadas com os poderem que assolavam o país, não é preciso dizer mais. Das festas cívicas também muito se falou e ainda se fala, demonstrando seu caráter de construção de sensibilidades ordeiras e autoritárias, além de ufanistas e preconceituosas em relação a tudo que fosse “contrária” à ordem religiosa. Que, pergunto eu, quem teria vivido no interior do Brasil nestes tempos cruéis e passado ao largo desses movimentos educativos?
Lembro das festas cívicas que meus irmãos e minhas irmãs mais velhas, mais do que eu, participavam. Como em todo o Brasil, é claro que mimetizavam desfiles militares com suas ordens e hinos marciais. E, como escuto dizer ainda hoje, todo mundo gostava! E como não gostar das roupas vistosas, do reconhecimento das famílias, e, inclusive, das alegrias do movimento bem feito ou do instrumento bem tocado? E, por outro lado, como não admirar os poderosos no palanque, as faixas de louvação à ditadura, o 7 de setembro militarizado?
Havia alegria, por certo. Mas também havia medo! Por meio de histórias contadas pelos adultos aprendíamos o medo de deus e do diabo, do céu e do inferno, da desordem e da anarquia, da polícia e da rebeldia, da professora e, mais ainda, da diretora. O medo estava em tudo e em todos, e era um processo educativo tão intenso e presente que quase invisível. Mas nunca se falava de ditadura, é certo. Mas é justamente por isso que funcionou: “tudo” ou quase tudo já estava lá. O que a ditadura e seus algozes fizeram foi mobilizar isso em direção a uma cultura cívica cada vez mais autoritária e violenta e inovar, inclusive com a utilização da ciência mais moderna, nos métodos de combate às pessoas que resistiam a ela, inclusive nas formas de torturar e matar.
Eu falava acima que não se conversava muito nos ambientes em que eu vivia, sobre os povos ancestrais que habitavam aqueles territórios, nem mesmo sobre o líder indígena que, ainda no século XIX, emprestou o nome à cidade. Aliás, a cidade não tinha nem mesmo história, a não ser aquela contada a partir de sua emancipação e sobre os poderosos locais. Mas a gente aprendia. Aprendia que não se podia confiar em cigano e nem em índios. E mais: aprendíamos que o sangue das “índias pegas no laço” ainda corre nas veias de muitas pessoas, o que faz com sejam insubordinadas, violentas ou insolentes.
Mas, também lá no interior do Brasil chegou a televisão, e com ela o projeto cultural norte-americano abraçado pelas lideranças da ditadura civil-militar e seus apoiadores. Na televisão da “casa dos vizinhos” assistíamos os enlatados que as redes de tvs brasileiras, todas apoiadoras da ditadura, compravam. Nelas aprendíamos, com a saga da família de Daniel Boone – cuja estreia nos EUA se deu justamente em 1964! – aprendíamos o desvalor das culturas e das vidas dos povos ancestrais que habitavam os territórios que vinham sendo roubados pelos brancos estadunidenses; o mesmo acontecia com os povos africanos nas séries de Tarzan… e mais uma longa e quase infinita lista.
Mas é claro, tudo funcionava porque não se tratava apenas e tão somente de uma educação das (in)sensibilidades em relação àqueles povos que habitavam lugares que a gente não conhecia e, por certo, não interessava conhecer. O maior aprendizado, creio eu, era em relação aos povos indígenas e africanos, nossos ancestrais que, bem ali ao lado, nos metiam medo por suas crenças e rituais e pela possibilidade de terem contaminado nosso “sangue” ou, pior ainda, nossa “pele”, esta muito mais visível e objeto de preconceitos os mais diversos.
Ao contrário do que muitas vezes a gente pensa, o principal objetivo da indústria cultural não foi nos “alienar” de nossa realidade. Pelo contrário, foi o de nos oferecer sensibilidade e ferramentas cognitivas para sentir e compreender o nosso mundo de acordo com os preconceitos e as tópicas do imperialismo. E, como hoje já é sabido, não foi por acaso que as redes de televisão foram amplamente apoiadas em sua expansão pela ditadura: elas possibilitavam uma educação que ia muito além do “telecurso” e das mensagens ufanistas de seu jornalismo de plantão.
E lá no interior, a gente ouvia músicas caipiras e ouvia novelas também. Tudo pelo rádio! Por isso, não se pode falar daqueles tempos sem citar a importância educativa do rádio. A educação radiofônica como produtora de (in)sensibilidades foi (e ainda é) arma poderosa que, naqueles tempos, ganhava de longe da influência da televisão. Novelas e músicas transmitidas pela radiodifusão produziram, ao longo das décadas da ditadura, (in)sensibilidades fundamentais para a legitimação e expansão da cultura antidemocrática e violenta tornada política de Estado.
Lendo este texto pode-se pensar que vivíamos numa redoma autoritária em que a família, a escola, a igreja, o rádio, a televisão e as demais instituições públicas moldavam nossas mentes, sensibilidades e corpos. É claro que nem tudo era dessa ordem. Também havia a pelada de todos os dias, o circo de vez em quando, as rinhas do final de semana, as touradas que encantavam. Mesmo as atividades da escola, da igreja e outras tantas poderiam e, por certo, foram, ressignificadas por mim e por muitas outras crianças. Disso também, eu sei, fui feito e me constituí.
Mas, continuo a perguntar: como, no início da década de 1970, dissociar a pelada do final da tarde ou os jogos do final de semana da copa do mundo e a mobilização do tricampeonato mundial pela ditadura? Como não associar as relações espúrias do futebol e toda a sua estrutura com o regime autoritário e com a naturalização destas relações, no Brasil, até os dias de hoje? Os Neymares, os Robinhos, os Daniels, com seus comportamentos pessoais e com suas vinculações políticas com o que há de pior no país e no mundo, dão continuidade a uma longa tradição educativa que, entre nós, desgraçadamente, educou uma multidão de pessoas aficionadas pelo futebol desde, pelo menos, o final dos anos de 1960.
O que não podemos nos esquecer, hoje e sempre, é que a ditadura, com sua cultura autoritária e violenta, chegou a todos os territórios deste país e nada nem ninguém ficou a salva dela. Isso nos impõe, como cidadãos mas, sobretudo, como educadores e educadoras que somos, fazer um inventário de nossos aprendizados e dos espaços e tempos educativos que nos constituíram ao longo daqueles tenebrosos tempos. Se tal não fazemos, corremos o risco não apenas de mantermos uma relação ingênua com nosso próprio passado, mas também, o que é pior, de não indagarmos sobre como este passado nos afeta e a todas as pessoas que caminham ao nosso lado.
Referência
OLIVEIRA, Marcus A. T. de. Eu cresci na ditadura– memórias do corpo, do trabalho, da formação. Campinas: Mercado de Letras, 2022.
Luciano Mendes
Possui graduação em Pedagogia, mestrado em Educação pela UFMG e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. É professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Participou da coordenação do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil – 1822-2022 e do Portal do Bicentenário da Independência. É autor, dentre outros, de A morte do professor (Caravana, 2022) e O corpo do tempo (Penalux, 2023).
E-mail: lucianomff@uol.com.br
FARIA FILHO, Luciano Mendes. Educação das (in)sensibilidades: histórias e memórias da ditadura no Brasil. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
Imagem de destaque: Luciano Mendes