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Materiais didáticos sobre conflitos socioambientais: os jogos como recursos pedagógicos

Lattes Luana (1) – Luana Campos Akinruli

Luana Carla Martins Campos Akinruli

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG
PROEX-UFMG
Realiza residência pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em História (UFMG/2019), é doutora em Antropologia (UFMG/2018), mestra em História (UFMG/2008) e licenciada em História, com formação complementar em Antropologia e Arqueologia (UFMG/2005).]

e-mail: luanacampos@insod.org

Este trabalho é um desdobramento da pesquisa de pós-doutorado em História  “A memória social dos conflitos socioambientais: as guerras de narrativas sobre a mineração em uma perspectiva histórica” que foi iniciada em 2019 e é desenvolvida pela equipe do Núcleo de História Oral (NHO) do Laboratório de História do Tempo Presente (LHTP), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem como objetivo geral promover reflexões da situação de conflito socioambiental, realidade cada vez mais presente entre os habitantes de Minas Gerais, pautando-se em metodologia de investigação interdisciplinar sobre os regimes de memória e as guerras de narrativas associados às estas situações sensíveis.

Este artigo trata dos resultados da produção de materiais didáticos por meio de um kit que privilegia, por um lado, a relevância da indissociabilidade da tríade Ensino-Pesquisa-Extensão e, por outro, a divulgação científica da pesquisa para, junto e com as comunidades atingidas. Isso, de modo a não somente fazê-las refletir, narrar e registrar suas memórias sobre suas experiências, como também fazer ecoar seus conhecimentos a respeito da realidade dos conflitos socioambientais, estimulando a ampliação dos engajamentos em prol das mudanças da realidade social.

Por meio de uma proposta de interação dialógica entre seus partícipes (comunidade escolar, universidade e sociedade), o intuito destes materiais didáticos é promover o impacto social por meio da educação como prática de liberdade (FREIRE, 1967). Relevante destacar que tais objetivos filiam-se às perspectivas mais abrangentes do campo da História Pública e da História do Tempo Presente (MAUAD; SANTHIAGO; BORGES, 2018), além de estar fundamentada nos parâmetros de ações extensionistas seguindo a Política Nacional de Extensão Universitária (FORPROEX, 2012).

A atuação interdisciplinar aqui destacada manifesta-se desde a concepção, desenvolvimento e a produção dos materiais didáticos, posto que as referências teórico-metodológicas que fundamentam o kit desenvolvem-se especialmente nos diálogos entre os campos científicos da História, Antropologia e Arqueologia. Por outro lado, o kit foi pensado para a possibilidade de serem aplicados em diversas disciplinas do Ensino Básico, como História, Sociologia, Filosofia, Geografia, Artes e Ciências, de modo também a contemplar os temas transdisciplinares presentes nos currículos.

Horizontes sensíveis: jogos sobre os conflitos socioambientais

A pesquisa desenvolveu-se, inicialmente, a partir de levantamentos realizados em fontes primárias (fundamentalmente jornais e revistas), postos em contraste com as fontes secundárias (referências bibliográficas) para o entendimento das incursões sobre o meio ambiente e, especialmente, sobre a mineração ao longo do tempo. Teve como recorte temporal inicial a década de 1950, momento identificado como sendo de modernização dos empreendimentos minerários em Minas Gerais, indo até os atuais contextos minerários. A partir dos resultados obtidos – sistematizados em um banco de dados – ventilamos os contextos e processos associados aos conflitos socioambientais, de modo a aprofundar os conteúdos tratados para iniciarmos a segunda etapa do projeto (AKINRULI, et. al., 2020).

Fizemos então o levantamento de fontes orais junto às comunidades impactadas pelo rompimento de barragens, com destaque para o caso de Fundão (Mariana/MG), cujo crime ambiental ocorreu em 2015. A aproximação com os grupos de atingidos permitiu que as realidades tão sensíveis, complexas e violentas também nos sensibilizassem para que pudéssemos contribuir de maneira dialógica sobre os processos de ensino-aprendizagem possíveis no ambiente escolar. O levantamento e cruzamento de fontes primárias e secundárias auxiliou-nos no desenvolvimento não somente de uma narrativa historiográfica sobre a temática, como também no estímulo à produção de materiais didáticos para a difusão de debates que, por vezes, permanecem circunscritos aos cânones acadêmicos e/ou aos movimentos sociais.

Na terceira etapa do projeto passamos a nos dedicar à criação de produtos extensionistas destinados à Educação Básica, uma vez que já havíamos desenvolvido os protótipos de dois jogos didáticos que denominamos “À Ferro e Lama: mineração e conflitos socioambientais”, e que foram aplicados em grupos de comunidades escolares do ensino fundamental para adequação e melhor aperfeiçoamento da proposta. Ressalta-se que grande parte da motivação da utilização destes recursos didáticos aqui propostos, valida-se pelas ações em prol dos direitos fundamentais, como o direito à memória, à história e à territorialidade, posto que colocam em contraste as experiências vividas pelos atingidos, de forma a expor suas lutas  decorrentes dos contextos socias. E os jogos são recursos que por meio de suas estratégias, abordagens, fomento à sociabilização e ludicidade, permitiram com que nos aproximássemos do grupo e da temática, de maneira sensível (ABERASTURY, 1992).

Do “Ferro e Lama” aos “Horizontes Sensíveis”: deixar-se atingir e sensibilizar-se

Os jogos foram produzidos com materiais reciclados e testados quanto aos recursos de jogabilidade, bem como adequação em termos de conteúdos e transposição didática. Notoriamente, a complexidade do tema era um grande desafio para sua produção.,  A sensibilidade, no tocante às suas abordagens, expressou-se como uma pauta prioritária, especialmente a partir do processo de aproximação com os atingidos pelo rompimento de barragens e a promoção de escutas sensíveis às realidades experienciadas.

Inicialmente, utilizamos paletas de cores mais escuras, que nos remetiam ao contexto dos rejeitos e, obviamente, da destruição causada pelas situações de conflitos socioambientais. Essa estratégia didática foi repensada, porque não se adequava em termos cognitivos, aos nossos objetivos. Comonossa proposta era a tomada de consciência e (re)conhecimento crítico da realidade, para a  promoçãoda mudança de maneira positiva por meio da formação escolar, impactando esta e futuras gerações, era necessário que todos os recursos estivessem em consonância com essa premissa.  A proposição de janelas de esperanças, horizontes de expectativas possíveis de mudança social por meio da educação, no sentido de consolidação de uma pedagogia da esperança (FREIRE, 2014). Assim, dentre as adaptações que realizamos, alteramos o próprio título do kit didático, que passou a ser denominado “Horizontes Sensíveis: jogos sobre os conflitos socioambientais”, e que foi acompanhado de uma logomarca propositiva neste sentido.

De maneira mais detalhada, o kit didático contém dois diferentes jogos, a saber:

– Jogo de Tabuleiro: funcionamento inspirado no jogo de tabuleiro “Perfil” (Grow), que pode ser jogado em duplas, trios ou em grupos maiores. Os jogadores têm à sua escolha cartas divididas em quatro categorias (ano, conceito, eventos e agentes) com até cinco dicas para que, por meio da dinâmica de perguntas e respostas, a equipe consiga chegar ao conhecimento da carta sorteada e assim, caminhar para o fim do tabuleiro. As rodadas são marcadas por peões representados por pedras extraídas da mineração em nosso território, o que incentiva conhecimentos específicos de aspectos mineralógicos. É indicado para alunos dos anos iniciais do Ensino fundamental II e incentiva a apropriação de conteúdo relacionado à questão ambiental. Desde datas ou situações/eventos de relevância para a memória social dos conflitos socioambientais, até os entendimentos de pessoas ou instituições envolvidas nas questões ambientais, além de conceitos relacionados à temática geral da pesquisa, como “mineração”, “conflito socioambiental”, “memória”, “patrimônio”, dentre outros. O jogo prevê a construção de cartas pelos próprios participantes, de modo a ampliar as informações e o seu conteúdo a partir dos usos e significados comunitários.

– Quebra-Cabeça: um conjunto de três quebra-cabeças contemplando, cada um deles, uma imagem do “antes”, “durante” e “depois” do Rompimento da Barragem do Córrego do Feijão (Brumadinho/MG, 2019). As peças podem ser montadas  individualmente ou em equipes para o exercício da observação, da análise dos contextos em níveis diferentes de abordagens de escalas (micro e macro; longe e perto), e no desenvolvimento da memória visual sobre o mesmo território em temporalidades distintas. Este jogo faz uso de linguagem não verbal que transmite, simbolicamente, a magnitude do ocorrido e os impactos na comunidade local, além de alcançar públicos de diferentes faixas etárias. As fotografias utilizadas podem ser produzidas pela comunidade.

De modo geral, a produção desses jogos didáticos mostra-se especialmente relevante pelo conteúdo e pela abordagem empregada. Em se tratando do conteúdo, é uma temática contemporânea, e ao mesmo tempo, bastante invisibilizada pelas estruturas de poder estabelecidas entre os agentes e as agências envolvidas com a questão ambiental no país. Além dos múltiplos interesses relacionados ao tema, em grande medida pautados pela unicidade das questões econômicas, a complexidade de conceitos e procedimentos legais relacionados à pauta ambiental mostra-se como um obstáculo à participação democrática e acessível de todos os cidadãos. Adiciona-se a isto, as situações traumáticas e bastante sensíveis, e mesmo violentas, nas quais as comunidades impactadas pelos conflitos socioambientais estão inseridas. 

Assim, a abordagem escolhida de aproximação às comunidades e a sensibilização da sociedade de forma mais ampla, passa por recursos lúdicos que promovem a ampliação do conhecimento sobre os conflitos socioambientais. Os jogos didáticos favorecem não somente a aquisição de informações e o aprofundamento do conhecimento prévio dos alunos, como também estimulam reflexões críticas estabelecidas de forma ética, responsável e feitas coletivamente (GIACOMONI, 2013). Nesta situação, engendra-se na escola o ambiente privilegiado para a relação dialógica e de trocas de vivências entre seus partícipes.

Considerações Finais

O contexto de expansão da atividade minerária em grande escala na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero em Minas Gerais, vivido nas últimas décadas, e seus desdobramentos relacionados aos impactos socioambientais de grande envergadura, têm provocado inúmeras situações de conflito (AKINRULI, 2018). Tais enfrentamentos situam-se não somente na instância econômica, como também refletem-se nas bruscas alterações dos modos de vida locais, nas disputas territoriais, nas modificações do meio ambiente, na destruição do patrimônio cultural, nos conflitos de direitos à memória.

As disputas de lógicas diferenciadas e contrastantes da noção de desenvolvimento e da apropriação do ambiente provocam confrontos e refletem práticas de desigualdades e violências múltiplas. Em grande medida são resultados de um conjunto de normas construídas e pactuadas em níveis nacional e internacional que privilegiam a manutenção de interesses hegemônicos, associados à distorção dos mecanismos de participação política que começaram a ser instituídos no período pós-ditatorial.

Neste sentido, é fundamental estabelecer ações com os diversos atores envolvidos, a partir de uma interação dialógica que contribua efetivamente, com as questões que precisam deliberar, posto que estão inseridos nesta realidade que muitas vezes não os beneficiam, mas ao contrário, extraem seus direitos fundamentais.

A atuação no ambiente escolar, como se trata esta proposta, empregando jogos didáticos, permite privilegiar a formação crítica dos sujeitos desde a mais tenra idade, e a partir de metodologias que estimulem a participação e a democratização do conhecimento, colocando em relevo a contribuição de atores não universitários em sua produção e difusão. Abrem-se, pois, múltiplas possibilidades de articulação entre a universidade e a sociedade, cujas ações oferecem contribuições relevantes para a transformação social, visando a superação das desigualdades epistêmicas e a exclusão de determinados grupos nos procedimentos memorialísticos relacionados ao contexto de conflitos socioambientais. 

A proposta destes jogos didáticos fortalece a relação autônoma e crítico-propositiva da extensão universitária com a sociedade por meio de ações capazes de gerar impacto social a partir da formação escolar dos envolvidos. Assim, a produção destes materiais didáticos, que contou com a parceria da Pró-reitora de Extensão (Proex/UFMG), tem também o intento de lançar olhar para o lugar da universidade no compromisso com as demandas atuais da sociedade.

Referências
ABERASTURY, Arminda. A criança e seus jogos. São Paulo: Artmed, 1992.

AKINRULI, Luana Carla Martins Campos. A desconstrução do esquecimento em contexto de conflito ambiental: arqueologia e etnografia da comunidade de Miguel Burnier, Ouro Preto, Minas Gerais. 2018. 400f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

AKINRULI, Luana Carla Martins Campos et. al. A memória social dos conflitos socioambientais: as guerras de narrativas sobre a mineração em uma perspectiva histórica (1950-2019). In: XXXX (Org.) Mineração, cidadania e história – Inconfidência 230 anos. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, 2020. p.102-109.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014

GIACOMONI, Marcello Paniz; PEREIRA, Nilton Mullet (Orgs). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013.

MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (Orgs.). Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS (FORPROEX). Política Nacional de Extensão Universitária (PNEU). Manaus, 2012.

AKINRULI, Luana Carla Martins Campos.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 5, Número Especial Educação e desastres minerários,janeiro,2022, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: PROEX/UFMG

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