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Uma mudança de percurso profissional na educação

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Leonardo Ribeiro Gomes 

Doutorando e Mestre em Educação pela FAE/UFMG. Licenciado e Bacharel em História. Atuou como professor na Educação Básica nas redes estadual de Minas Gerais, municipal de Belo Horizonte, na Fundação de Ensino de Contagem – FUNEC, além de escolas rede privada em Belo Horizonte e em Santa Luzia. Atualmente é Técnico em Assuntos Educacionais no IFMG.

E-mail: leorigomes@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A produção acadêmica sobre educação é extremamente importante e representa papel central na formação dos profissionais da sala de aula e dos pesquisadores dos processos educativos. Mas aqui, neste texto, pretendo falar estritamente da experiência da sala de aula e, como muitos dizem, falar do chão de sala e com a roupa suja de giz. Foi esse lugar, sobretudo, que me fez chegar até aqui. Escrevo para aqueles que, como eu, apesar de todo movimento em contrário, acreditam em uma educação pública de qualidade efetivamente para todos, mesmo em tempos sombrios como os atuais.

UM PERCURSO

Desde o mês de fevereiro de 2000 até setembro de 2016 trabalhei ininterruptamente como professor de história na educação básica. Nesse período, perdi a conta de quantas vezes ministrei aulas em turmas de ensino fundamental II, ensino médio, educação de jovens e adultos e pré-vestibular. Conheci um pouco da realidade da rede estadual de Minas Gerais, das redes municipais de Contagem e Belo Horizonte, como também das redes privadas de Belo Horizonte e Santa Luzia. Nunca uma aula foi igual à outra. Nesse período, aprendi muito com os estudantes e também com meus colegas de profissão em cada uma das instituições por onde passei. Devo ter acertado muita coisa e, certamente, errei na mesma proporção.

Nunca me imaginei fora de sala de aula durante esse período, apesar de, por várias vezes, ter ouvido até mesmo de gestores das instituições públicas e privadas por onde passei coisas do tipo: “Você é jovem e inteligente, faça um concurso! Saia disso! Educação não tem futuro neste país”. Isso era como receber uma facada mortal. Procurei com minha prática superar essas opiniões. Eu tentava encorajar todo estagiário que chegava para observar a minha prática ou tentar conhecer um pouco mais do ofício a seguir firme na profissão que escolheu e se preparava para exercer. Assim, não me imaginava fora da sala de aula, menos ainda fora da educação. Tinha como desejo galgar posições na carreira. Se conheci parcialmente a educação básica com as experiências que tive, objetivava ter contato com a educação superior. O caminho para esse desejo era a pós-graduação. Depois de algumas tentativas frustradas quase desisti desse caminho, mas eis que fiz o mestrado e agora estou no segundo ano do doutorado, ambos em história da educação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Essa breve descrição de um percurso, entretanto, não visa elencar alguns traços da minha trajetória profissional para ficar apenas nisso, o objetivo é situar o leitor sobre o lugar de onde falo e para onde vou a partir de uma mudança de rumo no meu percurso profissional, que tem a educação como eixo central. O objetivo é também demonstrar e compartilhar um pouco do duplo sentimento que tive: de um lado o reconhecimento de parte do trabalho que desenvolvi em sala de aula, de outro o sentimento de deixar a sala de aula (mesmo que temporariamente) em um momento político nacional de total ataque à educação pública.

MUDANÇAS DE RUMO

Em 2014, fiz um concurso para o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), autarquia do Governo Federal criada em 2008. O IFMG tem por missão ofertar ensino técnico e graduação nas modalidades bacharelado, licenciatura e tecnologia, além de cursos de pós-graduação e de formação inicial e continuada. São vários campi pelo território mineiro e, nos últimos anos, o IFMG vem atendendo parcela crescente dos estudantes do estado que até então teriam chances reduzidas de acesso a educação pública, gratuita e de qualidade. Os IFs vêm atingindo cada vez mais índices satisfatórios nas avaliações sistêmicas[1].

O cargo para o qual concorri era de técnico em assuntos educacionais. Exerceria uma função de acompanhamento de professores e estudantes em suas demandas pedagógicas. Considerava que era hora de contribuir com outras dimensões do processo educativo. Veio a aprovação, porém a nomeação para o cargo sairia algum tempo depois. Tinha certeza de que a minha provável ida para o IFMG seria uma grande mudança, mas dela falarei daqui a pouco.

No início de 2015, iniciei os estudos no doutorado em educação. Trabalhava em duas escolas. Tendo em vista as disciplinas ainda a cursar na Faculdade de Educação, solicitei uma diminuição de carga-horária na escola particular.

Mas aquilo que se tornaria a primeira grande mudança em uma trajetória que, apesar das circunstâncias muitas vezes adversas, foi, na medida do possível, planejada por mim, aconteceu mesmo no final de 2015. E de forma até hoje pouco clara, mas, certamente, quem viveu as agruras da política municipal de Contagem sabe o que estou relatando.

No final de 2015, perdi minha lotação de professor da unidade Ressaca da Fundação de Ensino de Contagem (Funec). Trabalhei nessa unidade desde a minha posse em 2006, por meio de concurso público. Praticamente todo o meu percurso na instituição foi feito ali, lugar em que conquistei, sobretudo, amigos. Nesse processo nada claro de remoção de professores, restar-me-ia uma vaga em uma unidade cuja distância da minha residência inviabilizaria tanto o cumprimento dos horários quanto minhas obrigações enquanto estudante do doutorado na UFMG.

Nessa época já havia me desligado totalmente da escola particular. Só ao final do mês de fevereiro, aos 45 minutos e caminhando para prorrogação, minha situação na Funec foi regularizada. Fui removido para outra unidade, agora mais perto, porém necessitava de redução de carga-horária devido a questões particulares e de ordem familiar. E é sobre a saída da Funec e minha ida para o IFMG que passo a discorrer agora. Mudança de rumo, mas não de abandono da crença na educação como promotora de possibilidades de autonomização dos indivíduos.

DESPEDIDAS

No dia 9 de setembro de 2016 saiu a confirmação da minha posse no IFMG. Desde a nomeação vivia a alegria por algo esperado e também a angústia de ter que interromper um processo pelo caminho. No mesmo dia 9 de setembro, durante uma aula que esperava ser semelhante a tantas outras, uma estudante do 2º ano do ensino médio falou, ao término da minha explanação: “Professor, você dá aula com a alma”. Fui para casa refletindo sobre isso. Era um misto de orgulho e tristeza que sentia naquele momento.

Na outra semana, no dia 14 de setembro, era aniversário de um ano do meu filho. Quando saí de casa às 6h20, ele ainda dormia. Dei um beijo nele e pensei: vou trabalhar e já volto, e assim que chegar, vamos brincar! Pensei que seria um dia normal na escola, não foi. Teve choro, agradecimento e pedido de desculpas por frustrar os estudantes com a minha saída. Já ao término do primeiro horário de aula, às 7h50, minhas turmas já sabiam que no outro dia seria minha última vez ali. Naquele dia, tive o maior reconhecimento que um professor pode ter: o carinho e o respeito de seus estudantes. Não tem salário, prêmio ou homenagem maior que a fala sincera e emocionada de jovens estudantes que o mundo teima em dizer que nunca serão ou não darão em nada no futuro. São pessoas lindas e cheias de sonhos a realizar. Nunca imaginava ter um reconhecimento como aquele, espontâneo, sincero e, principalmente, de surpresa, como foi naquela manhã do dia 14 de setembro. Mas aquilo tudo também doeu. Doeu a alma.

No intervalo fui para a sala dos professores e muitos não sabiam ou não tinham a dimensão do que havia acontecido. Ao tentar explicar, ainda com lágrimas nos olhos, ouvi comentários do tipo: “Ah, se fosse eu, nenhuma lágrima derramaria!”. “Puxa!”, pensei comigo, silenciosamente, e envolto em profunda tristeza. Quando meus alunos disseram que eu fazia diferença era talvez por isso. Sempre acreditei na potencialidade de cada um, e isso vai muito além de conteúdo disciplinar. Desejar um bom dia, boa tarde, boa noite, um bom final de semana, tratá-los com respeito, ouvi-los em suas demandas são ações que nunca representaram para mim algum tipo de encargo. Foi tudo feito com a atenção merecida por cada um daqueles educandos.

Mas naquele dia, apesar da alegria do primeiro ano do meu filho, não brinquei. Naquele dia chorei sozinho. Chorei pela educação pública. Chorei pela situação das escolas e pelas condições docentes. Chorei pela decisão que tomava, pois pensava que, de alguma forma, estava abandonando a batalha ou deixando de navegar nas águas agitadas da educação. Chorei também pelo desrespeito que, além de ser grande por parte da sociedade, é também reiterado em vários aspectos pelos próprios professores.

Mas se aquele dia já tinha sido intenso e se eu pensava que a despedida estava consolidada, o dia seguinte, esse sim, o último na escola, seria mais intenso ainda. Houve mais homenagens. Os estudantes fizeram leitura de textos, me abraçaram carinhosamente, choraram. Eu chorei mais. Eles disseram: “professor, obrigado por ter feito a diferença”. Essa frase parecia uma que meu irmão me disse há muito tempo: “Vá lá e faça a diferença para seus alunos”. Um estudante me agradeceu, disse que tinha aprendido história por minha causa, mas que ficava triste, pois, segundo sua opinião, “um professor tão bom não ia querer dar aulas neste fim de mundo”.

UM ATÉ LOGO

Que profissão é essa que encanta e que provoca sentimentos múltiplos como esses? Ser professor está marcado em minha pele. Está no meu DNA. Não falo isso como se fosse um alienado às péssimas condições de trabalho e salário e inerte diante do massacre diário, inclusive da mídia, em relação aos professores e à escola pública. Falo isso em um momento no qual o desmonte do Estado brasileiro é arquitetado e tocado a passos largos pelo grupo que assaltou o poder em agosto de 2016. Mas falo isso cheio de esperança. Esperança nos jovens que acreditam que é possível fazer a diferença.

Faço agora uma breve pausa com os afazeres da sala de aula. Vou procurar conhecer, aprender e colaborar com outras dimensões do processo educativo cujos meandros desconheço. Vou navegar em outros mares e, como disse uma estudante: “Professor, vá lá e vença, pois, essa batalha aqui você venceu brilhantemente”!

 

 

[1] Estranhamente, o resultado por escola no ENEM 2015, divulgado pelo MEC no dia 4 de outubro de 2016, não incluiu os Institutos Federais. As razões para isso são conhecidas e fazem parte de um amplo processo de desqualificação do ensino público ofertado pelas Escolas Técnicas Federais, com intuito de apagar a memória constituída e consolidada de uma modalidade de ensino que sempre se pautou pela oferta de uma educação qualificada.

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