Raça, origem social e desigualdade educacional

Introdução

Este trabalho consiste numa breve exposição, com base em estudos de caráter científico e em reflexões esparsas, sobre as relações inextrincáveis entre raça, origem social e desigualdade educacional. Trata-se de uma interpretação parcial, no sentido de tipo ideal que o sociólogo clássico Max Weber conferiu ao termo. Desta forma, buscamos identificar os meandros para a construção de uma educação democrática e cidadã.

As desigualdades educacionais possuem uma ligação estreita com as outras formas de desigualdade, e estas se realimentam. Diferentes estudos já demonstraram o peso das desigualdades sociais sobre o desempenho escolar.  Nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo nos Estados Unidos, França e Inglaterra, pesquisas correlacionavam as desigualdades de acesso à educação e desempenho escolar à origem social. Importantes exemplos foram aquelas produzidas pelo INDE (Institut National d’Études Démographiques), pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Relatório Coleman e algumas pesquisas britânicas (FORQUIN, 1995), pois abordaram, através de uma série de dados estatísticos, todos os grandes problemas que seriam discutidos nos anos seguintes pela sociologia que trata da desigualdade educacional.

A título de exemplo, recorremos aqui aos estudos clássicos de Pierre Bourdieu no campo da sociologia educacional. De acordo com a literatura específica sobre o tema, até meados do século XX, predominava no campo da análise educacional uma visão extremamente otimista sobre o papel da educação em promover a justiça social, combater os privilégios e as desigualdades sociais na construção de uma sociedade justa, moderna e democrática (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2014). Entretanto, Bourdieu mostrou, com base em uma série de dados estatísticos, que a expansão do sistema de ensino, acompanhada de sua abertura às classes sociais antes excluídas, não significou efetivamente uma redução das desigualdades por intermédio da escola. Na verdade, a escola continuou reproduzindo as desigualdades preexistentes na sociedade, pois exigia e sancionava um tipo de saber que era restrito às classes dominantes e a sua forma de transmissão. O processo de eliminação diferencial dos indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais apenas mudou de face, passando de uma eliminação brutal e precoce, para uma mais prolongada e dissimulada (NOGUEIRA e CATANI, 1998).

Problemática brasileira

Para compreender as especificidades do caso brasileiro, alude-se primeiramente ao pensamento do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. O autor afirma que faz parte da realidade de um país subdesenvolvido a existência de uma infinidade de situações nas quais os educadores precisam estar munidos de uma consciência política penetrante (FERNANDES, 2019, p.82). Como afirma o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

Para compreender estas especificidades, é de fundamental importância remontarmos às raízes históricas, sociais e culturais da sociedade brasileira e as desigualdades que aqui foram gestadas. Vivemos numa nação marcada por profundas desigualdades étnico-raciais, fruto de uma sociedade formada sobre a escravidão e o genocídio da população indígena sob a aparência de vivermos numa democracia racial. Segundo o Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), a população negra, jovem e de baixa escolaridade está entre as principais vítimas de mortes violentas no país. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os autodeclarados negros (que inclui pretos e pardos) representam 50,7% da população brasileira, entretanto eles são minoria entre os concluintes do Ensino Superior.

Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) mostram que apenas 2,66% dos concluintes em Medicina no ano de 2010 eram pardos ou pretos. Assim, percebemos que a desigualdade de raça no país se reflete no acesso ao ensino superior e gera consequências também para a escolha das carreiras universitárias. Este fato, dentre outros, justificou a adoção da Lei de cotas raciais no ano de 2012 (Lei nº 12.711/2012), que destina uma porcentagem de vagas obrigatoriamente para estudantes pobres, de escola pública e que se declaram pretos, pardos ou indígenas. Em decorrência disso, pela primeira vez, o número de estudantes negros nas universidades públicas superou o número de brancos, segundo a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo IBGE com base na Pnad Contínua de 2019.

Daí a importância das ações afirmativas, enquanto políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados socioeconomicamente. Deste modo, estas políticas têm por objetivo principal combater diferentes tipos de discriminações, através do acesso a uma série de direitos relacionados à cidadania, a políticas redistributivas, de proteção social, reconhecimento cultural, dentre outros.

Educação, cultura e justiça escolar

Um outro ponto a ser destacado acerca desta problemática diz respeito à relação indissociável entre educação e cultura. Segundo Vera Maria Candau, não é possível conceber uma experiência pedagógica desculturalizada, isto é, desvinculada completamente das questões culturais da sociedade (CANDAU, 2013, p.13). Ainda segundo a autora a escola possui um caráter homogeneizador e monocultural, sendo necessário romper com esta prática e construir novas, em que a questão da diferença e do multiculturalismo se faça mais presente. É justamente aí que se encaixa a proposta de uma educação intercultural, definida como:

Uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas. (CANDAU, 2013, p.23).

Tendo isto em vista é importante que se coloque a seguinte questão: quer-se uma escola para o povo ou contra o povo? Alerta-se ainda para o fato de que a democratização do acesso à escola não significa necessariamente a democratização da escola. Para isso, é importante considerar as múltiplas relações existentes entre este espaço e a sociedade, atentando para as categorias raça e origem social.

Diante deste impasse, coloca-se a seguinte questão: o que seria uma escola verdadeiramente democrática? Para alguns, seria dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, dependeria de cada um. Já para o sociólogo francês François Dubet, não existe meritocracia verdadeira sem considerar algumas condições básicas como: 1) a igualdade distributiva das oportunidades, que se refere à equidade na oferta escolar; 2) a igualdade social das oportunidades, entendida como uma base comum de conhecimentos que todos deveriam aprender indistintamente e que fosse útil não apenas para o mercado, mas para a vida do indivíduo como um todo; 3) igualdade individual das oportunidades, em que deveria considerar as consequências das desigualdades de mérito, ainda que realizadas todas as condições anteriores, que equalizariam as oportunidades iniciais, sobre as desigualdades sociais (DUBET, 2008).

Em face destas condicionantes, é importante questionar a própria existência da meritocracia numa sociedade marcada por profunda desigualdade como é a sociedade brasileira. A ideologia da meritocracia pretende mascarar as desigualdades de desempenho em ideologias de dons, apartadas das reais condições sociais e culturais dos alunos.

Nesta altura, retomam-se as contribuições de Florestan Fernandes para pensar as relações entre a formação política e o trabalho do professor. Segundo o autor, o educador tem um papel político fundamental dentro de uma sociedade subdesenvolvida. Para ele, o principal elemento na condição humana do professor é o cidadão e, se ele não tiver em si a figura forte do cidadão, acaba se tornando instrumento para diferentes tipos de manipulação (FERNANDES, 2019, p. 71). Pensar politicamente é alguma coisa que não se aprende fora da prática. Se o professor pensa que sua tarefa é ensinar o ABC e ignora a pessoa de seus estudantes e as condições em que vivem obviamente não vai aprender a pensar politicamente ou talvez vá agir politicamente em termos conservadores. Trata-se enfim de desobjetificar e de humanizar o ser humano que vai para a escola despojado das condições mínimas para passar pelo processo educacional (FERNANDES, 2019). É o mesmo processo de humanização proposto pela pedagogia libertadora de Paulo Freire. Para ele, a concepção e a prática bancária terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens (FREIRE, 2014).

Conclusão

Este trabalho apresentou alguns apontamentos sobre as possíveis correlações entre raça, origem social e desigualdade educacional, pensando as especificidades do caso brasileiro. O Brasil ainda possui abismos sociais gritantes, seja em termos de classes sociais ou étnico-raciais, o que coloca o país entre os mais desiguais do mundo. Assim, este fato precisa ser considerado para a construção de um espaço educacional democrático, inclusivo e cidadão, sob pena de continuar reproduzindo as injustiças sociais sob um verniz meritocrático. Para isso, existem alguns pressupostos necessários para se construir uma escola justa, sem prescindir do papel político que os educadores são chamados a ter. Parafraseando Weber: “este trabalho será simples e fácil, se cada qual encontrar e obedecer ao demônio que tece as teias de sua vida.” (WEBER, 2011, p. 64).

Referências

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 ago. 2012. Seção 1, p. 1.

CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In:  MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Orgs.). Multiculturalismo: Diferenças culturais e práticas pedagógicas. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

DUBET, François. O Que é uma Escola Justa? A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez, 2008.

FERNANDES, Florestan. A formação política e o trabalho do professor. Marília: Lutas anticapital, 2019.

FORQUIN, Jean Claude. Sociologia da Educação: dez anos de pesquisa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 56.ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

IBGE. Atlas do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro, 2013.

__________. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro, 2019.

IPEA. Atlas de Violência 2017. Rio de Janeiro, 2017.

NOGUEIRA, M. A. e CATANI, A. M. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Bourdieu & a Educação. 4ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. 18 ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

Jackson Barbosa da Costa

Jackson Barbosa da Costa

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2017), especialista em Ensino de Sociologia no Ensino Médio pela Universidade Federal da Bahia (2016) e Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). Atualmente é professor de sociologia do Instituto Federal do Sertão Pernambucano e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Política – HABITUS, desenvolvendo pesquisas no campo da sociologia da educação.

E-mail: jackson.costa@ifsertao-pe.edu.br

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