Mãos Negras Sobre Caderno Destaque Empoderar O Conhecimento N 5

Empoderar o conhecimento escolar na classe popular

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Ana Paula Menezes Andrade

Mestranda em Ensino em Educação Básica no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp UERJ. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2002) e Especialista em Supervisão Escolar pelas Faculdades Integradas Jacarepaguá – FIJ (2007). Atualmente é Professor II na Prefeitura Municipal de Duque de Caxias executando a Função de Secretário Escolar. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação, Ensino Fundamental I e Gestão Escolar.

E-mail: paulamandrade.tj@gmail.com

Há cerca de dois anos, atuando em uma turma de terceiro ano do ciclo de alfabetização em escola da Rede Municipal de Ensino de Duque de Caxias, município da região chamada de Baixada Fluminense no estado do Rio de Janeiro, vivi uma experiência muito marcante envolvendo um aluno, que neste trabalho chamarei de Tiago. Logo que cheguei para assumir a turma, que no mês de março daquele ano ainda aguardava em casa pela chegada de um professor, fui advertida por colegas a respeito de Tiago. As colegas exortavam que eu tomasse cuidado com meus pertences, que não deixasse que entrassem na sala de aula durante o recreio, que não “desse mole” nas aulas com ele, que mantivesse o pulso firme. As alegações se fundamentavam em argumentos do tipo: “ele já é velho na escola, não quer nada”, “está envolvido com o movimento (do tráfico)”, “tem maus hábitos”, “é mal educado”, “preguiçoso”, “só arruma problemas”, e a lista continuava a cada conversa em que Tiago era citado.

Os comentários sobre Tiago eram tantos e tão depreciativos que me chamaram atenção, pois durante as primeiras semanas de aula Tiago se mostrava solícito e realizava as tarefas, gostava de ouvir e de contar histórias, embora apresentasse certa dificuldade nos relacionamentos e costumasse falar muito durante as aulas.

Munida das informações que retirava por observação das atividades diárias com a turma e com Tiago, eu argumentava com as colegas que ele não parecia ser tão mau aluno assim e relatava como ele estava se comportando durante as aulas, mas de toda forma percebia o descrédito conferido ao aluno quando ainda me diziam: “Acredite no que estamos falando, já conhecemos essa família, esse menino não presta. Tem um irmão preso (na cadeia), outro já foi assassinado e a mãe dele tem tantos outros filhos… São todos iguais!”

Não conseguia entender os motivos pelos quais essas professoras, formadas em magistério nos níveis de Ensino Médio, Graduação e Pós-graduação, não percebiam o quão preconceituosas e agressivas eram suas falas! Os documentos “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana – Lei 10.639/03” (BRASIL, 2004) e “Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais” (BRASIL, 2006) apontam para o atendimento a uma demanda estritamente relacionada ao caso de Tiago e de outras muitas crianças, dessa e de outras escolas nas quais trabalhei. Conforme o último documento citado, “…Crianças, adolescentes e jovens, negros e negras, têm vivenciado um ambiente escolar inibidor e desfavorável ao seu sucesso, ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades.” (BRASIL, 2006, p. 71).

Cavalleiro (2004), ao apresentar pesquisa sobre preconceito na pré-escola, evidencia a ocorrência de silenciamentos despercebidos pelas professoras no cotidiano das classes pré-escolares que fazem nada mais do que reforçar as desigualdades entre negros e brancos. Além de incutir nas crianças um paradigma de normalidade das ações de preconceito, na medida em que as crianças negras geralmente não são ouvidas pelas professoras e que, em alguns momentos, são até mesmo ridicularizadas por elas.

De acordo com a autora:

O silêncio da criança diante dos outros demonstra a sua fragilidade diante de situação tão humilhante, imposta pelo amigo. Sinaliza o quanto ela não domina o seu direito de defesa. E expressa, também, a sua falta de confiança nos adultos à sua volta para resolverem o problema, visto que não foram procurados para defendê-lo” (CAVALLEIRO, 2004, p. 66).

O fato de as professoras não compreenderem, ou de não darem atenção as crianças negras, faz que as crianças deixem de procurá-las para resolver as questões porque elas passam a supor que nada será feito e, por não saberem como se defender, essas crianças podem apresentar reações diversas, da total apatia até a agressividade extrema.

Dessa forma, as falas daquelas professoras com as quais convivi, foram pouco a pouco minando qualquer sentimento de confiança que pudesse ter sido estabelecido porque eu me recusava a acreditar que aquele aluno, apesar das circunstâncias envolvidas no seu cotidiano, estava ali todos os dias de aula se esforçando para me mostrar que queria ser diferente e, o mais importante, que podia ser diferente da imagem que já se havia construído a respeito dele e, também, daquela que a escola lhe atribuía. É verdade que, muitas vezes, foram necessárias providências capazes de corrigir atitudes erradas por parte do aluno, mas isso também era feito com muitos outros alunos, daquela e de outras escolas onde eu já tinha trabalhado.

O caso de Tiago não era único para que se tornasse tão assustador quanto se dizia e isso aguçou ainda mais minhas reflexões pessoais: Como poderiam professores de tão reconhecida rede municipal de ensino marginalizar e reforçar as marcas da exclusão dentro da escola? Sua formação não deu conta de fazê-los compreender qual seria seu papel como professores? Quais eram exatamente as crenças desses professores e qual o fundamento de tal atribuição de valores depreciativos e, aparentemente, indiscriminados? Não estariam eles cientes do direito a educação para todas as crianças garantido pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996)?

Responder a esses requisitos requer um trabalho que atenda as crianças oriundas de culturas diversas presentes na escola e, consequentemente, que atenda aqueles cuja origem ascende as matrizes de formação do povo brasileiro, a saber, o negro, afrodescendente. Munanga (2005) mostra que

O racismo não surgiu de uma hora para outra. Ele é fruto de um longo processo de amadurecimento, objetivando usar a mão-de-obra barata através da exploração dos povos colonizados. Exploração que gerava riqueza e poder, sem nenhum custo-extra para o branco colonizador e opressor. (MUNANGA, 2005, p. 42)

Então, qual instituição, que não a escola, seria a maior implicada nos processos que visam a superação da violência simbólica gerada pelo preconceito racial?

Imagem do livro “O menino marrom”[1], de Ziraldo.

No caso de Tiago, como no caso de outros alunos, me pareceu claro que a escola tem a preocupação de reconhecer que atende e trabalha com muitas culturas, que se percebe como espaço multicultural, mas que ainda não se preocupa em articular essas culturas com o objetivo de alcançar a interculturalidade[2] necessária à aprendizagem significativa; mostra também valorizar ainda um currículo axiologicamente eurocêntrico[3], de modo que desconsidera, ainda, as questões postas pela cultura popular e as que dão sentido a história de nossa própria sociedade.

Conforme diz Soares (2011, p. 8), essa culpabilização do aluno se explica pelo que se pratica na escola e que a autora chama de ideologia do dom: “segundo a qual as causas do sucesso ou do fracasso na escola devem ser buscadas nas características dos indivíduos: a escola oferece ‘igualdade de oportunidades’; o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá do dom – aptidão, inteligência, talento – de cada um”.

Tal concepção, entretanto, não se firmaria se contraposta ao fato de que o currículo eurocêntrico vem privilegiando por décadas os alunos oriundos de famílias com situações econômicas mais abastadas e brancos, em sua maioria. Se fosse questão de aptidão para estudar, as dificuldades de aprendizagem e o fracasso escolar apareceriam em qualquer grupo social de maneira equilibrada (SOARES, 2011, p. 9-12).

De acordo com a questão da multi e da interculturalidade, conceitos que considerei fundamentais para nortear a escrita deste trabalho, o papel da educação escolar deve apoiar-se no que estes conceitos traduzem, a saber:

A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los (CANDAU; KOFF, 2006, p. 475).

Nessa perspectiva, se incluiria articular os mais variados tipos de diferença, desde a cultura musical e o modo de utilizar a linguagem para se expressar até a maneira de se vestir, por exemplo. Para citar um exemplo de adaptação de uso da língua portuguesa, este aluno citado (Tiago) disse, de modo depreciativo, um dia que seu colega, morador de uma comunidade localizada num morro atrás da escola chamado “Morro do Badu”, era baduenense; mostrando inegável lógica ao transformar um substantivo num adjetivo pátrio. O mesmo aluno que as colegas professoras da escola diziam não ter mais jeito, faz emergir uma fala que diz que “vamos aprendendo com a multifuncionalidade da linguagem para podermos ‘deixá-la’ emergir na escola, porque emerge na vida” (BAIÃO, 1998, p. 116).

Sigo, então, na busca da compreensão acerca dos motivos para que a violência advinda do preconceito racial apareça tão nitidamente nas escolas de educação básica, principalmente nas que atendem aos estudantes das classes populares, que chega a incomodar e prejudicar alunos que, com sua autoestima baixa, passam a crer que tudo o que dizem a seu respeito seja verdade. Assim como continuo buscando a compreensão sobre quem, como e porquê vem se legitimando a ideologia do dom (SOARES,2011) nessas escolas e o que pode ser feito com o objetivo de minar essa concepção visando uma educação de qualidade para todos.

 

 

REFERÊNCIAS

BAIÃO, J. C. Uma análise de cartas/bilhetes de alunos nas séries iniciais ou “tia, te amo do fundo do meu coração”. 1998. Dissertação (Mestrado em Linguística) ‒ Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.

______. O professor leitor e formador de leitores. Salto para o Futuro, Brasília, DF, ano XVIII, n. 16, p. 16-23, set. 2008.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/1994. 35. ed. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. Disponível em: <http://bit.ly/2u2ujsN>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Poder Legislativo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Seção 1, p. 27833. Disponível em: <http://bit.ly/1U7QxVu>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Ministério da Educação; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, DF: MEC/Seprir, 2004. Disponível em: <http://bit.ly/2daykZc>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília, DF: MEC/S ecad, 2006. Disponível em: <http://bit.ly/1Wo2tne>. Acesso em: 27 jul. 2017.

CANDAU, V. M. Relatório da pesquisa universidade, diversidade cultural e formação de professores. Rio de Janeiro: Departamento de Educação da PUC-RIO, 2003.

CANDAU, V. M.; KOFF, A. M. N. S. Conversas com… sobre a didática e a perspectiva multi/intercultural. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 95, p. 471-493, maio/ago. 2006.

CAVALLEIRO, E. S. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2004.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. São Paulo: LTC, 2008.

LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber ‒ eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. (Coleção Sur Sur). Disponível em: <http://bit.ly/2tHd4xK>. Acesso em: 27 jul. 2017.

MUNANGA, K. (Org). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília, DF: MEC/BID/Unesco, 2005. Disponível em: <http://bit.ly/2v374Ty>. Acesso em: 27 jul. 2017.

SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 2011.

[1] Disponível em: <http://bit.ly/2v14AG0>. Acesso em: 27 jul. 2017.

[2] Conforme conceito tratado por Vera Maria Candau (2006).

[3] O que se diz do saber baseado em conhecimentos e valores apenas das sociedades europeias (LANDER, 2005).

This Post Has 2 Comments
  1. Boa tarde,

    Qual o numero da revista onde foi publicado o artigo “Empoderar o conhecimento escolar na classe popular”, para que possa referencia-lo.

    Grata

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