Créditos: Foto: Bianca Aun

Educação ambiental em desastres minerários e outros

Marcus Vinicius Polignano

Marcus Vinicius Polignano

Dep. de Medicina Preventiva e Social – UFMG / Coordenador do Projeto Manuelzão – UFMG
E-mail: mvpolignano@gmail.com

Inicialmente gostaria de fazer um esclarecimento ao leitor. Na organização deste artigo procurei fugir um pouco do rigor metodológico na organização do texto, privilegiando muito mais o conjunto de ideias do que propriamente a linearidade temporal ou conectividade direta dos temas trabalhados,

Ao longo de vinte e cinco anos trabalhando com a temática  ambiental pelo Projeto Manuelzão as experiências foram várias e ricas, portanto, compartilhar este aprendizado com o leitor é um dever de ofício.

E assim início o artigo.

“A tarde do dia 5 de novembro de 2015 corria tranquila na pacata comunidade de Bento Rodrigues, com cerca de 600 habitantes, onde os moradores se cumprimentavam e se conheciam pelo nome. As donas de casa cuidavam de seus afazeres domésticos, os homens trabalhavam, alguns na mineradora, e as crianças estudavam na escola local. Por volta das 16h30min alguns celulares começaram a tocar e avisar que a barragem de rejeitos da empresa Samarco (Vale-BHP) havia se rompido.

A princípio todos foram tomados pelo espanto querendo acreditar que aquilo não era verdade. Momentos depois, heróis anônimos montados em suas motos, movidos pelo mais nobre dos sentimentos humanos – a solidariedade -, gritavam desesperadamente que a barragem tinha se rompido e que um mar de lama estava descendo em direção à comunidade. As pessoas ainda incrédulas, e ao mesmo tempo movidas pelo pânico, se deram conta de que teriam que se retirar rapidamente das suas moradias, salvar as pessoas queridas e deixar para trás tudo aquilo que foi construído ao longo de uma vida. Nem todos tiveram este tempo, a possibilidade de escapar, e foram soterrados pelo mar de lama. Contam-se para mais de duas dezenas os mortos e desaparecidos, alguns que certamente nunca serão encontrados.

A onda de lama “tsulama” que se seguiu, com até 15 metros de altura, atingiu em cheio o então límpido córrego Gualaxo do Sul, rasgando, devastando, destruindo áreas de pequenos agricultores, matas ciliares, vegetação nativa, nascentes e matando todas as espécies de animais que encontrou pela frente, domésticos e silvestres. A destruição chegou ao Ribeirão do Carmo, atingindo as comunidades de Paracutu de Baixo e Barra Longa, e finalmente ao leito do Rio Doce, já bastante comprometido por uma longa história de degradação e escassez hídrica.

A “tsulama” em nenhum momento perdeu a intensidade. Esta lama densa foi demonstrando uma forte capacidade de destruição, provocando a morte de toneladas de peixes. As alterações físico-químicas da qualidade da água impediram o uso para o abastecimento humano nas cidades ribeirinhas do Estado de Minas Gerais e Espírito Santo, que ficaram desabastecidas e viveram uma situação de caos e calamidade pública.

Este texto bem poderia ser de uma ficção, mas na verdade trata-se da descrição da realidade do crime da mineração na bacia do Rio Doce, que lançou  50 milhões de m3 de sedimentos em todo o leito da bacia do Rio Doce, causando a morte de 19 pessoas e milhares de atingidos, que até hoje lutam para que seus direitos sejam reconhecidos. Passados seis anos, nem as moradias de Bento Rodrigues, que foi varrido do mapa, foram reconstruídas.

E como as lições do rompimento da barragem da Samarco (Vale-BHP) não foram aprendidas e corrigidas, em 2019 a cena dantesca se repete, desta vez em Brumadinho, com o rompimento da barragem da Vale no córrego do Feijão, comprometendo a bacia do rio Paraopeba, causando a morte de 272 pessoas e deixando milhares de atingidos ao longo da bacia.

Após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho tivemos um efeito cascata, pois a maioria dos atestados de segurança fornecidos pelas empresas mineradoras foram retirados e aí então foi possível verificar a real situação das mesmas, sendo que uma parcela significativa das barragens minerárias apresentava riscos de insegurança elevado.

Assim descobrimos que Minas Gerais tinha cerca de 450 barragens minerárias espalhadas pelo estado, a maior parte delas concentrada no quadrilátero ferrífero (aquífero), próxima de grandes aglomerados urbanos. Em 2019 a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha apenas 5 técnicos para realizar a fiscalização das barragens, e o estado de Minas que licencia, nenhuma ação de fiscalização.

Em dezembro de 2022 o país tinha 40 barragens em nível de emergência, as 3 com risco máximo (nível 3) ficam em Minas Gerais e pertencem à Vale: B3/B4 (Nova Lima), Forquilla II/III (Itabirito) e sul superior (Barão de Cocais). Outras 26, também em Minas, estão no nível 1. Com isso, mais de mil pessoas foram retiradas de suas casas e do seu cotidiano por estarem dentro da mancha de inundação caso venha a ocorrer um colapso das barragens.

Então, não estamos falando de fatos isolados, mas sim, de repetições de efeitos que falam a favor de erros e crimes, frutos de um modelo sistêmico que vem se repetindo ao longo da nossa história.

É difícil encontrar uma maneira de  explicar para as comunidades e crianças que os conceitos básicos de educação ambiental foram desrespeitados. Questões como: preservação da vida, proteção de ecossistemas, manutenção da biodiversidade, cuidados básicos com a natureza, proteção de nascentes e corpos hídricos.

Quando se conceitua e se estrutura um projeto de educação ambiental, pensa-se logo em crianças e escolas, como se fossem elas, necessariamente, os maiores agentes de transformação, diante da ação humana sobre o meio ambiente.

Na verdade, quando olhamos para o que ocorreu nos crimes minerários em Minas Gerais fica claro que os grandes responsáveis pelo processo estavam sentados nas cadeiras de escritórios de empresas e governos. Por vezes as próprias empresas patrocinam projetos de educação ambiental para as escolas e comunidades, enquanto suas práticas e ações vão na contramão do que é praticado nas comunidades. Estas mesmas empresas com as benesses da lei patrocinam projetos culturais, enquanto destroem  patrimônios naturais e bens culturais. Portanto, qualquer discussão sobre educação ambiental tem que ser validada pela prática de quem a propõe, para que não seja e não pareça meramente estética.

Por onde transita a crise ambiental

O século XX foi um marco na história humana, progressos científicos e geração de riquezas nunca vistos em outros momentos anteriores a este. Porém, também produziu crises de dimensões planetárias igualmente nunca vistas. Isto porque o modelo e os paradigmas sobre os quais se alicerçaram as intervenções humanas mostraram-se frágeis. Assim, o findar o século XX assistiu o definhamento do paradigma cartesiano-newtoniamo, substituído por uma visão de mundo e uma economia globalizada.

A partir da década de 1970, a crise ambiental emergiu como preocupação planetária, sendo a Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo – Suécia, seu marco histórico. Ora, o ambiente foi pensado, modificado, recriado, e degradado, tendo como referência, a concepção de que a natureza deveria estar a serviço do homem. O modelo de desenvolvimento proposto pelo capitalismo exigia apropriação da natureza e sua transformação em mercadorias. Sendo assim, o homem já não pode mais ser considerado “vítima” de um ambiente natural hostil, agressivo e selvagem. Ao contrário, o ambiente natural passou a ser “vítima” da ação humana. E esse indivíduo homem multiplicou-se numa escala vertiginosa, saindo de um bilhão em 1800, para cerca de seis bilhões em 2010, com estimativa de atingir nove bilhões em 2050.

Colocada no plano econômico, podemos afirmar que a relação ambiental passou a ser traduzida numa economia globalizada pela relação produção-consumo, pois é através da produção que geramos demanda de matéria-prima e energia-natrueza, que por sua vez, alimenta-se do consumo dos seres humanos. Segundo Loureiro (2004) este sistema de exploração tem como resultado a alienação do ser humano em relação a si próprio, e o estímulo ao produtivismo capaz de movimentar o mercado, e gerar ao acúmulo de capital, sendo esta a base estrutural da reprodução do modelo. Dessa forma, vivemos numa organização social que, para sobreviver, é preciso incentivar o consumismo (inerente a este tipo de modo de produção) e a coisificação de tudo e de todos. Coisificação entendida como o processo social pelo qual externalizamos e retificamos a realidade e a natureza, transformando tudo em mercadoria.

É compreensível, que este mesmo sistema desincentive ações de conhecimento ou de respeito ao ambiente, ações que não sejam a perspectiva de uso para fins de sustentabilidade econômica e apropriação dos bens naturais.

Concomitantemente, a população humana, cuja distribuição está estruturada pelo modelo produtivo, passou a viver em cidades. Em 2007, 50% da população mundial ocupava 2,4% da superfície do planeta. As cidades formando conurbações, realidade cada vez mais complexa, irradiam suas demandas além de suas fronteiras e, ao mesmo tempo, atraem o conjunto das forças produtivas da sociedade. Os efeitos dessa dinâmica modificam radicalmente a natureza e em consequência, como parte dela, o homem. Essa construção social foi incapaz de gerar um ambiente harmônico, reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais que se expressam na distribuição dos equipamentos sociais, na qualidade ambiental e até mesmo na estética do espaço urbano.

Por sua vez, o desenvolvimento econômico globalizado demanda cada vez mais matéria prima e energia, produzindo necessidade paralela de apropriação da natureza em uma escala nunca antes vista na história do planeta. Tendo por base o ano de 1890, cem anos depois, em 1990, a economia mundial cresceu 14 vezes, a produção industrial 40, o uso de energia 16 e a produção de carvão 7 vezes. No mesmo período, a poluição do ar aumentou 5 vezes e houve redução de florestas e perda de biodiversidade (FREITAS & PORTO, 2006).

As projeções do IPCC (Intergorvernmental Panel on Climate Change) prevêem, até 2050, crescimento na temperatura média da superfície global de 2,0 a 6,4 graus Celsus, afetando o clima, provocando o derretimento das camadas polares e a elevação do nível do mar, causando impactos importantes e imprevisíveis sobre diferentes ecossistemas.

A economia globalizada e concentrada cria um capital internacional cada vez mais volátil, sem pátria ou compromisso, o que determina o rítmo e o grau de degradação ambiental para diferentes partes e povos do mundo, definindo o processo de vida e morte de pessoas e da biodiversidade.

Assim, na divisão internacional do capital, as empresas mais lucrativas, tecnológicas e limpas ficam no primeiro mundo, enquanto as mais degradadoras, poluidoras e destruidoras do meio ambiente, ficam com os países mais pobres, que exportam commodities como o agronegócio e a extração mineral, impulsionando uma degradação ambiental sem limite, como é o caso do Brasil.

O rompimento da relação homem-natureza

É importante citarmos alguns autores importantes para o entendimento conceitual, como vem se processando, à nível cultural, das mudanças que alimentam este sistema.

A escola filosófica que usa o termo ecológico foi iniciada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1973), no início da década de 70, que criou uma distinção entre os termos ecologia rasa e ecologia profunda, muito utilizados na atualidade para distinguir os pensamentos ambientalistas contemporâneos. A ecologia rasa é por natureza antropocêntrica, vislumbrando os homens acima ou fora da natureza, como sendo a fonte de todos os valores, atribuindo à natureza um valor simplesmente instrumental. Já  ecologia profunda, por sua vez, não vê os seres humanos separados do meio natural, pelo contrário, estão todos os seres vivos, independentemente de gênero ou espécie, conectados na teia da vida.

A Ecologia Profunda foi proposta pelo filósofo norueguês Arne NAESS em 1973 como uma resposta a visão dominante sobre o uso dos recursos naturais. Arne NAESS se inclui na tradição de pensamento ecológico-filosófico de Henry THOREAU, proposto em Walden, e de Aldo LEOPOLD, na sua Ética da Terra. Denominou de Ecologia Profunda por demonstrar claramente a sua distinção frente ao paradigma dominante (GOLDIM, 1999).

Naess (1973, p.100) vai  além para definir o pensamento ecológico profundo, afirmando que “sua essência consiste em formular questões mais profundas”.

Apolo Heringer Lisboa, idealizador do Projeto Manuelzão , afirma que:

O paradigma antrópico de domínio da natureza ignorou duas questões: que a natureza associa o ser humano ao restante da flora e fauna; e que as atuais relações sociais excluem a maioria dos seres humanos das conquistas sociais e técnico-científicas, cassando suas cidadanias e o direito à saúde. Nestas relações, o dinheiro é que confere cidadania. Este paradigma insustentável, a médio e longo prazos entrou em confronto antagônico agudo com o ambiente e a sociedade, ameaçando a vida da atual e das futuras gerações. As doenças também são sinais e sintomas de uma crise paradigmática. O estoque de saúde nesta sociedade está muito abaixo do aceitável e das possibilidades históricas. A democracia no Brasil está falhando ao não conseguir equacionar e resolver esta questão. O Sistema Único de Saúde procede do ponto de vista das declarações constitucionais, mas sua operacionalização nega a concepção ecossistêmica de saúde coletiva. (LISBOA; GOULART; DINIZ, 2008. p.28)

Já Leonardo Boff, filósofo e teólogo brasileiro, defende a ecologia social, aquela que insere o ser humano e a sociedade dentro da natureza. Preocupa-se não apenas com o embelezamento da cidade, com melhores avenidas, com praças ou praias mais atrativas, mas prioriza o saneamento básico, uma boa rede escolar e um serviço de saúde decente. A injustiça social significa uma violência contra o ser mais complexo e singular da criação que é o ser humano, homem e mulher. Ele é parte e parcela da natureza. A ecologia social propugna um desenvolvimento sustentável,  que atende às carências básicas dos seres humanos, sem sacrificar o capital natural da Terra, considerando também as necessidades das gerações futuras que têm direito à sua satisfação e de herdarem uma Terra habitável com relações humanas minimamente justas (BOFF, 1999).

Para Boff (1999), nossa contemporaneidade demonstra sintomas da crise civilizacional, com base em descuido e descaso por questões essenciais, que definem o homem como homo sapiens. E o ser humano criou um “complexo de Deus”, comportando-se como se fora Deus. Através de um projeto tecnocientífico, passou a acreditar que tudo podia, e que não haveria limites à sua pretensão de tudo conhecer, de dominar e de tudo projetar. Essa pretensão acabou por colocar exigências exorbitantes a si mesmo, o desenvolvimento tecnológico já demonstra o seu componente destrutivo ao ameaçar o destino comum da Terra e seus habitantes, culminando no que ele denomina “o complexo de Deus” que o acabrunha.

Portanto podemos dizer que a questão ambiental cabe no campo do direito, assim como consta do artigo 225 da Constituição Federal Brasileira (1988):

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

    • Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento) (Regulamento) (Regulamento)

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Outro importante pensador neste contexto é Edgar Morin, que critica o modelo cartesiano de interpretação do mundo, dividindo o mundo em compartimentos e fragmentando as áreas de conhecimento, como se a simples somatória das partes fizesse o todo, produzindo um reducionismo da realidade. Ele defende a complexidade, dentro de uma escola filosófica contemporânea, que parte de uma visão de mundo como um todo indissociável, propondo uma abordagem multidisciplinar para a construção do conhecimento. Contrapõe-se à causalidade por abordar os fenômenos como totalidade orgânica. Ou seja, o ambiente e o planeta são sistemas complexos e que têm que ser entendidos na sua integridade, e não na sua fragmentação (MORIN, 2005).

A água como matriz para entender as contradições ambientais do nosso modelo civilizatório

A água é o sangue da Terra, por onde ela passa carreia o que encontra pelo caminho. E o ciclo hidrológico a renova anualmente. A nossa água, porém, está sendo contaminada por poluentes lançados na atmosfera ou depositados no solo, como lixos, esgotos, efluentes industriais, agrotóxicos e outros insumos da produção, por pessoas físicas e jurídicas.  Assim, como uma análise de sangue revela distúrbios da saúde humana, um exame da qualidade da água é capaz de detectar os desequilíbrios na saúde da natureza, e revelar o diagnóstico das populações que habitam aqueles ecossistemas.

As características e condições da água lhe atribuem outros papéis. Eixo de mobilização, de monitoramento, de planejamento e gestão, eixo metodológico e estratégico. A água tem um papel transcendente como eixo de reconstrução de uma nova mentalidade civilizatória compatível com a vida e a sustentabilidade do desenvolvimento. Este papel é científico, é físico, é político. É científico por exigir imaginação, filosofia e método. É físico por ser a água o solvente universal, em estado líquido à temperatura ambiente, e a única substância do Universo cujo estado líquido é mais denso que o estado sólido, o que permitiu a vida evoluir sob o gelo. É político por exigir opções e atitudes éticas para a sua preservação .

A vida começou na água. Por que a água não volta a ter vida, para termos os rios vivos? Por que não compatibilizar e subordinar os usos da água pelos seres humanos às necessidades do conjunto dos ecossistemas do território hidrográfico, o que, no fundo, é do interesse humano mais fundamental e perene. Evidentemente, as águas não são importantes somente para os homens, mas para toda a biodiversidade da Terra.

As águas, fluindo pelo espaço natural, estabeleceram alguns caminhos preferenciais constituindo um território geográfico definido, que é a bacia hidrográfica. Ela assemelha-se a um grande sistema circulatório, por onde circula a água necessária à vida, definindo junto com o solo a riqueza da biodiversidade de uma determinada região. Todos nós pertencemos a uma bacia hidrográfica.

A visão de bacia traz consigo o pensamento sistêmico e integrado do conhecimento, demonstrando a inter-relação biótica e abiótica na manutenção do equilíbrio desses ecossistemas. Sob a perspectiva holística, todos os fenômenos na natureza são vistos como partes de um universo interdependente, que se baseia  em uma reciprocidade interior, e entre os mundos natural, físico e cultural, que permeiam toda a comunidade biótica.

Os conceitos de bacia e ecossistemas exigem trabalhar o conhecimento, de uma forma transdisciplinar, única, capaz de captar a essência dos fenômenos que sustentam a vida neste território hidrográfico e ecossistêmico. Um sistema doente compromete a vida de todos que dele dependem. O conceito de bacia permite ainda, romper com a fragmentação do conhecimento, a dicotomia entre urbano/rural, entre degradação/preservação, uma vez que são faces de uma mesma realidade, partes integrantes de uma mesma bacia, integrada às bacias e ecossistemas lindeiros.

É importante explicitar que as bacias hidrográficas são delimitações naturais, estabelecidas pelos fluxos das águas e que não estão sujeitas aos territórios arbitrários municipais, estaduais e nacionais. Neste sentido, podemos dizer, poeticamente, que não são divisoras mas somatórias de povos.

Águas e a construção da transdisciplinaridade

As águas que nos permitem sensibilizar, problematizar e identificar um território de complexa composição, também nos traz o eixo estruturador para a construção de um projeto ambiental transversal. A água está presente na constituição de todos os seres vivos. A água tem um ciclo natural definido que envolve realidades específicas de diversas áreas do conhecimento como a física, a química, a biologia, a geografia e outras. Ou seja, a água é um tema integrador. A água percorre todos os ecossistemas, urbanos e rurais, carreando para os leitos dos rios todas as características dos processos sociais positivos ou negativos, passados e presentes, impressões digitais da mentalidade civilizatória de cada época. Mentalidade essa que define, por exemplo, como tratar os descartes da produção e do consumo, a forma de exploração dos bens naturais na expansão industrial, agrícola, produção animal e a exploração minerária.

A água doce, elemento natural essencial para a vida e a economia, vem sofrendo o impacto direto da contradição entre desenvolvimento e gestão ambiental. Prova disso é o que vem ocorrendo com os rios. Esta história está refletida na qualidade e na quantidade das águas dos rios, que deveriam estar vivos, piscosos e habitados de forma saudável por outros seres da biota aquática e que, nas regiões mais densamente povoadas por seres humanos, perderam essas características. Os rios, como o Doce e o Paraopeba, mostram-se contaminados pela lama tóxica e não podem ser usados para a dessedentação de animais, para a pesca, para a irrigação de plantações, como um bem cultural dos povos indígenas. Rios circulantes e mortos no seu próprio leito.

Entender a relação conceitual entre cultura e natureza, tendo a água como referência metodológica, é um primeiro passo para mudar atitudes e comportamentos frente à questão ambiental. É também fundamental a incorporação do conceito de pertencimento. Tradicionalmente, estamos mais vinculados ao conceito de território do bairro, da cidade, do município, estado e país. No entanto, essa subdivisão espacial tem um caráter basicamente administrativo, não tendo uma vinculação fundamental com o ambiente natural, do qual verdadeiramente dependemos, e no qual influímos. Os cursos d’água percorrem bairros, municípios, cidade e campo, vinculando-nos às bacias hidrográficas. A ideia de pertencimento a uma bacia hidrográfica, a um ecossistema contínuo, é fundamental para que se possa adotar a atitude de cuidar.

A fratura conceitual entre o pragmatismo utilitarista de recursos hídricos e o ambientalismo desprovido de preocupações com a economia, não é mais admissível nesta altura da história. A gestão integrada e compartilhada da bacia hidrográfica é vista hoje como método essencial para o desenvolvimento econômico, social e ambiental com sustentabilidade. Estamos tratando aqui de conceitos diferentes como crescimento e desenvolvimento econômico, sem poder aprofundar esta questão. Até que ponto pensar o desenvolvimento não implica numa ruptura radical com a atual mentalidade de crescimento?

Por vezes vemos mineradoras e governos de braços dados lançando mão de recursos e de reservas de futuro para objetivos imediatistas. Recentemente foi aprovado na bacia do Rio Paraopeba um rebaixamento de lençol freático 3.130 m3 por hora, 24 horas por dia, por 10 anos. Isto significa retirar água armazenada no subsolo suficiente para abastecer diariamente, uma população de 600.000 pessoas, e que uma vez explotada não terá mais que se acumular e assim, se perderá esta reserva de água de excelente qualidade para o futuro.

Mas a sustentabilidade do desenvolvimento em relação ao meio ambiente não se refere simplesmente à possibilidade de um gerenciamento competente, às cobranças pelo uso da água e outras providências político-administrativas do Estado. Trata-se de algo muitíssimo superior, que é compatibilizar economia, meio ambiente e vida. A preservação e a conservação dos ecossistemas e das suas biodiversidades são inseparáveis, em razão da fisiologia da Terra, da possibilidade de termos água em abundância e de qualidade para todos os usos e para sempre.

Não há nenhuma incompatibilidade conceitual entre preservação e conservação dos ecossistemas naturais, bem como de biodiversidade, com a preocupação relativa ao aumento da qualidade e quantidade das águas enquanto insumo para a produção. Pelo contrário, o modelo da fratura conceitual e institucional que separa recursos hídricos de meio ambiente, que separa a água da vida na Terra, é absolutamente insustentável. E não é possível transigir com esta questão. Não há como fazer a gestão das águas como se fosse mero gerenciamento empresarial e administrativo de recursos hídricos, de massas d’água, de caixas d’água. A boa gestão, ao contrário, pode incorporar toda a sociedade, a educação ambiental, as paixões para soerguer o nosso país, com um novo imaginário de vida, solidariedade e cidadania.

E por falar em vida, o que dizer da flora, da fauna e do peixe? E aqui, com a autoridade dos antigos profetas, podemos dizer: se não formos capazes de saber escutar a “voz dos peixes”, através da qual falam as futuras gerações, voz que sintetiza o nosso compromisso com a vida na Terra, e seus sistemas de reprodução da vida, não seremos capazes de sustentar o nosso desenvolvimento, a médio e longo prazos. Nem de assegurar a possibilidade dos múltiplos usos dos espaços disponíveis para as diversas atividades, e termos águas abundantes e de qualidade. O ser humano não sobrevive à destruição da flora e da fauna, pois depende integralmente do meio ambiente para sobreviver, para se alimentar e respirar. A “voz dos peixes” fala através dos bioindicadores dos corpos d’água, que monitoram a integralidade do sistema ambiental, terrestre e aéreo. Metaforicamente, a água representa o sangue da Terra e o eixo sistêmico do conjunto do meio ambiente. A “voz dos peixes” é a voz da razão contemporânea e das futuras gerações.

Portanto, para o projeto Manuelzão, uma verdadeira educação ambiental é uma educação que mobilize, organize, promova a luta pelos direitos.

Educação e transformação cultural

As grandes transformações históricas só se concretizam quando novos valores culturais são incorporados ao modo de vida das pessoas e à sua existência cotidiana, vinculando o particular ao público, o microssocial ao macrossocial (GADOTTI, 2003).

Se o modelo sociocultural existente degrada o meio ambiente e não se modifica, é porque a sociedade o “sustenta” culturalmente.  Focada numa visão antropocêntrica, a cultura contemporânea demonstra pouca preocupação com as consequências do atual modelo para as gerações futuras, bem como com a extinção de outras espécies, perda de biodiversidade e da vida no planeta Terra.

 A grande meta então, é redesenhar um novo modelo biocêntrico, que possa recompor a nossa relação com a natureza, centrada no respeito à vida.

Cotidianidade e territorialidade são conceitos-chave, pois, ao nos referirmos ao processo educativo, precisamos entender onde cada educador e educando se situa, de modo a promovermos uma prática que seja simultaneamente específica e universal, que reconheça a diversidade na busca da justiça, evitando um “educar para todos” que nivela autoritariamente os diferentes sujeitos sociais.

Será impossível ou mesmo inviável o desenvolvimento de um novo modelo de que parta apenas de uma proposição política sem uma participação efetiva da sociedade civil. Somente através da transformação cultural[1] seremos capazes de criar uma nova mentalidade civilizatória que permita a existência de rios vivos, da biodiversidade e de uma nova mentalidade de promoção de saúde, de vida e de solidariedade socioambiental planetária.

Embora nem todas as escolas e comunidades estejam localizadas nas proximidades de um curso d’água, todas pertencem a uma bacia hidrográfica. Portanto, todas as atitudes ambientais praticadas na escola e nas comunidades terão uma repercussão direta sobre a bacia hidrográfica.

Para que seja efetiva, a educação ambiental deve caminhar para a Gestão Ambiental  Participativa efetiva, baseando-se no desenvolvimento de uma “pedagogia ambiental”, que compreende um conjunto de etapas sucessivas e interdependentes (Figura 1). Estas etapas têm por objetivo final a incorporação de novos conhecimentos, valores e atitudes que impliquem numa participação na gestão ambiental. Isto significa desenvolver atitudes como cuidar, participar, mobilizar e organizar a sociedade para a transformação da realidade socioambiental.

 

Figura 1. Etapas de desenvolvimento da pedagogia ambiental.
Fonte: Gadotti, 2003.

Para que a gestão ambiental possa, efetivamente, produzir os efeitos esperados é imprescindível o comprometimento e o envolvimento da comunidade local. Por outro lado, em razão da complexidade das ações a serem empreendidas no processo de educação socioambiental para a solução de problemas, será fundamental o envolvimento de diversas áreas do saber (interdisciplinaridade – transdisciplinaridade), e a participação de diversos agentes sociais. Portanto, será fundamental pensar e agir por meio de parcerias, consolidando uma rede de sustentabilidade socioambiental.

Assim, a Educação Ambiental deve ser desenvolvida como uma prática integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal (ambiente escolar) e não formal (espaços da comunidade), concomitantemente com as intervenções que serão efetuadas, buscando sensibilizar a coletividade sobre as questões socioambientais locais, e sobre a importância da sua participação no processo, com o empoderamento da sociedade local para discutir os rumos do seu modelo de economia e ecologia local. Neste processo é fundamental que a sociedade seja instrumentalizada para defender e se apropriar dos seus direitos. Como já foi citado, a própria constituição federal (BRASIL, 1988) atribui ao cidadão o dever de lutar por um ambiente equilibrado, saudável e justo.

A lei estadual 23.291 de 25/02/2019 de segurança de barragens (MINAS GERAIS, 2019), conhecida como Mar de Lama Nunca Mais, representa uma conquista social que tem que ser apropriada pela sociedade. Esta lei garante dentre outras coisas, que: serão realizadas audiências públicas para a construção de barragens, inclusive com a exposição sobre manchas de inundação; que fica vedada a construção e alteamento de barragens à montante; a comprovação da inexistência de melhor técnica disponível e alternativa locacional com menor potencial de risco ou dano ambiental, para a acumulação ou para a disposição final ou temporária de rejeitos e resíduos industriais ou de mineração em barragens; fica vedada a concessão de licença ambiental para construção, instalação, ampliação ou alteamento de barragem em cujos estudos de cenários de rupturas seja identificada comunidade na zona de autossalvamento.

A educação ambiental é, portanto, também uma educação sobre justiça socioambiental. A concepção de ambiental nos liga filosoficamente ao “todo”, valoriza todas as potencialidades de um lugar: o ambiente natural, a cultura, a história, e a economia. Essa compreensão está relacionada a uma nova maneira de perceber a realidade, a visão sistêmica ou ecológica da vida, que se sobrepõe ao pensamento mecanicista do conhecimento.

Segundo Loureiro,

[…] educar é transformar pela teoria em confronto com a prática e vice-versa, com consciência adquirida na relação entre o eu e o outro, nós (em sociedade) e o mundo. É desvelar a realidade e trabalhar com os sujeitos concretos, situado espacial e historicamente. É, portanto, exercer a autonomia para uma vida plena, modificando-nos individualmente pela ação conjunta que nos conduz às transformações estruturais. Logo, a categoria educar não se esgota em processos individuais e transpessoais. Engloba, sim, tais esferas, mas vincula-as às práticas coletivas, cotidianas e comunitárias que nos dão sentido de pertencimento à sociedade. Ao pensarmos e realizarmos uma educação ambiental crítica e emancipatória, resgatar o conceito de práxis associado à educação torna-se fundamental. A práxis “implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Paulo Freire). Portanto, é a atividade que pressupõe sujeito livre e consciente. (LOUREIRO, 2004. p. 29 – 52)

Quando pensamos em educação ambiental, pensamos num processo permanente que pode acontecer em qualquer lugar: em casa, na escola, nas comunidades ribeirinhas. Educação ambiental é querer um mundo diferente com cidadania, paz, justiça social e ambiental, emprego, e democracia. É buscar ações de transformação para uma vida melhor no presente e no futuro. É olhar para a natureza com os olhos do coração e respeitar todas as formas de vida, considerando a interdependência entre todos os elementos presentes no meio ambiente.

Não podemos continuar sentados no presente, com a visão e soluções focadas no passado, querendo construir um futuro.

Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.

GADOTTI, M. Saber aprender: um olhar sobre Paulo Freire e as perspectivas atuais da educação. In: LINHARES, C. e TRINDADE, M. N. Compartilhando o mundo com Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 2003

GOLDIM, José Roberto. Ecologia Profunda, 1999. Disponível em: http://www.ufrgs.br/bioetica/ecoprof.htm.

FREITAS, C. M.; PORTO, M. F. S. Saúde, ambiente e sustentabilidade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006.

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[1] Cultura é o conjunto de manifestações artísticas, sociais, lingüísticas e comportamentais de um povo ou civilização, como: música, teatro, rituais religiosos, língua falada e escrita, mitos, hábitos, atitudes, danças, arquitetura, invenções, pensamentos, formas de organização social, etc. Uma das capacidades que diferenciam o ser humano dos animais irracionais é a capacidade de produção de cultura.

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Crédito da imagem: Bianca Aun/CBH Rio das Velhas

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