Ilustração Vídeo

Editorial

A edição especial Educação e Desastres Minerários reúne trabalhos de professoras/es da rede básica de ensino, pesquisadoras/es e ativistas da educação no âmbito da temática da mineração. Tem como objetivo compartilhar práticas docentes, experiências, reflexões e investigações críticas sobre o cotidiano e o desafio de escolas e localidades nas quais a mineração atua e/ou que são impactadas pela atividade minerária.

Esta edição foi organizada pelo projeto de extensão “Mapeamento e visibilização de práticas didáticas e desafios de professores na bacia do Rio Doce, afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão da Samarco”, vinculado ao programa “PARTICIPA UFMG Mariana-Rio Doce”; pelo Grupo de Pesquisa CNPq Educação, Mineração e Território (EduMiTe), e pela Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB).

O Brasil, nos últimos anos, foi acometido por diversos desastres de rompimento de barragens de mineração, acontecimentos não isolados advindos de processos e não eventos pontuais ou acidentais como os discursos minerários tentaram disseminar. Estes desastres-crimes seguem atravessando ecossistemas, cadeias econômicas e modos de vida ao longo de anos. Os desastres provocados em 2015 pelas mineradoras Samarco-Vale-BHP em Mariana-MG e ao longo da bacia do rio Doce, assim como o desastre provocado pela mineradora Vale em 2019, em Brumadinho-MG e no rio Paraopeba, colocaram em debate mais intensamente as controvérsias e os impactos da atividade minerária nos territórios. Residentes atingidos pela mineração sentem o trauma ou ameaça deixados pelos desastres que seguem perpetuando seus impactos e violações, mesmo após anos do colapso das barragens. Dentre os diversos impactos que seguem por contínuos espaços de tempo podemos citar: impactos econômicos em diferentes cadeias(agricultura, turismo, pesca) ligadas aos rios afetados; problemas de saúde (mental e física); perda de lazer e destruição de modos de vida vinculados aos rios (indígenas, quilombolas e ribeirinhos).

Somam-se a estes, os impactos provocados pela mineração nas escolas, na vida pessoal e profissional de professores e demais trabalhadores da educação. Impactos silenciados inclusive nos relatórios de Assessorias Técnicas Independentes. Neles, os trabalhadores da educação não são reconhecidos em listagens de grupos de profissionais atingidos pelo crime da Samarco-Vale-BHP no município de Barra Longa, como relata a autora Simone Maria da Silva no texto “A influência do Módulo II na prática pedagógica de professores numa escola do campo atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão”. A autora, que na época do colapso da Barragem de Fundão trabalhava como auxiliar de serviços gerais, relata que seu sonho e conquista de ser professora na escola foi permeado pela lama, que passou a fazer parte também de cursos de formação de professores, organizados pela direção da escola em parceria com projetos de extensão universitária. Alguns destes também relatados no texto “Mineração, diálogo e prática numa escola atingida” de Cilésia Maria de Oliveira Carvalho, Ângela Maria de Souza Luz e Marcelo Loures dos Santos. Ambos os textos abordam como a escola foi construindo, ao longo do tempo, sua identidade enquanto escola do campo multiplamente atingida. Isso tanto por ter sido literalmente invadida pela lama do crime da Samarco-Vale-BHP, quanto por viver com o rompimento como atingidos em suas casas e recebendo alunos atingidos. Os dois textos evidenciam que a escola e os trabalhadores da educação, mesmo diante de algo tão inesperado e intenso, reorganizaram-se e reinventaram-se diante de um desastre-crime de tamanha proporção. Outro exemplo, ilustrado no texto “Os órfãos de Brumadinho e as práticas pedagógicas”, da autora Franciene Fernandes Marinho de Abreu, relata como uma escola em Brumadinho adaptou práticas pedagógicas no sentido de acolher o grande número de crianças órfãs, ou crianças que tiveram que lidar com o luto da morte de familiares, devido ao crime-rompimento da Vale em 2019. A autora aborda a importância do papel das professoras e professores diante da “vulnerabilidade emocional das crianças enlutadas”.

Esse atravessamento da lama na vida de professores e alunos tem se tornado parte da matriz pedagógica de escolas que antes não abordavam a temática da mineração em suas práticas. Nessa perspectiva, as autoras Adriane Cristina de Melo Hunzicker e Maria Isabel Antunes-Rocha designam de “silêncio pedagógico” no texto “A prática do silêncio pedagógico no contexto minerário”. As autoras alertam para a importância de tratar a temática da mineração e seus impactos tanto na formação de professores, quanto em Planos Municipais de Educação e Projetos Políticos Pedagógicos que são alguns dos documentos norteadores na educação escolar. A concepção e construção de uma “pedagogia da lama” é expresso no texto “As professoras e a pedagogia da lama” das autoras Alessandra Bernardes Faria Campos e Juscimara Santos Honorato que segundo as autoras: “a lama que desceu com o rompimento da barragem e seus desdobramentos desencadeou a produção de processos pedagógicos”.

Ainda sobre a temática da educação em contextos de crimes-rompimentos, a autora Luana Carla Martins Campos Akinruli em “Materiais didáticos sobre os conflitos socioambientais” aborda o direito à memória, à história, e à territorialidade por meio dos jogos didáticos envolvendo o contexto de violações de direitos tanto em Mariana, quanto em Brumadinho.

A valorização da memória local também é uma das temáticas que perpassa o texto “Antônio Pereira: a escola como ponto de encontro” de Patrícia Ferreira Ramos. Antônio Pereira, um pacato vilarejo de Ouro Preto-MG, passou a conviver com o pânico do risco de rompimento de uma barragem que teve seu nível de emergência acionado. E em meio às diversas novas terminologias (zona de autossalvamento, rota de fuga, Plano de Ação Emergencial), o significado destas para a dinâmica de vida local e as funções impostas pela ameaça da barragem à escola, esta é designada como ponto de encontro comunitário no caso de um rompimento. A autora relata o histórico de desinformação sobre a mineração nesse território e como se deu a construção da percepção de ser uma escola atingida pela “lama invisível”.

Assim como Ouro Preto, outras cidades cujos contextos têm a mineração como atividade econômica centenária, foram mencionadas em textos como a “Mineração e suas controvérsias: abordagem didática ciência-tecnologia-sociedade-ambiente (CTSA)” de Roberta Araújo e Daniela Campolina. As autoras relatam, por exemplo, o desafio de se trabalhar a temática da mineração em uma escola na cidade de Nova Lima. Segundo elas, o histórico da mineração no município colabora para a invisibilidade de controvérsias que envolvem essa atividade econômica. As autoras remetem a importância de trabalhar a temática da mineração especialmente na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero, pois há impactos significativos dessa atividade na segurança hídrica de diversas cidades que dependem da água que advém dessa região. Abordam também a importância de professores e alunos conhecerem a rota da lama, no caso de rompimento de barragens. Assunto esse que também permeia o texto “Projeto “Somos atingidos?”: o uso dos gêneros textuais na construção do saber sobre a mineração” do autor Wanderlin Alexandre dos Santos Junior. O autor, que leciona em uma escola localizada a menos de 100m do rio das Velhas, na cidade de Rio Acima, relata como um coletivo de professores se organizou para a busca de mais informações sobre barragens, que poderiam atingir a cidade e a escola. Em meio a esse processo, os professores estruturaram um projeto interdisciplinar que designaram de “Somos atingidos?!” por meio do qual a percepção do risco de rompimento e informações sobre barragens, assim como o caminho da lama, foram trabalhados em diferentes práticas didáticas envolvendo professores de diversas disciplinas.

Processos pelos quais os professores passam para sua formação e empoderamento diante da decisão de trabalharem a temática da mineração de maneira crítica, também foram relatados no artigo “Cursinho popular como ferramenta emancipatória para o enfrentamento do assédio da mineração em territórios quilombolas e em comunidades do campo de Santo Antônio do Itambé-MG ”dos autores Fernanda Nunes Barroso e Heric Maicon Almeida Mota. Ao lecionarem na cidade de Santo Antônio do Itambé vivenciaram os discursos minerários em contextos distintos das cidades em que complexos minerários fazem parte de seu histórico. A cidade está entre dois municípios com distintas realidades: Serro, que tem a produção do queijo artesanal como principal atividade econômica e Conceição do Mato Dentro, que tem na grande mineração, atualmente, uma de suas atividades base. Os professores relatam como, por meio de parcerias entre comunidade, sindicato, associação de moradores, e universidade; empenharam ações no sentido de informação-formação para visibilizar controvérsias e impactos da megamineração.

Os discursos minerários em municípios onde a mineração “está chegando”, ou seja, em que há interesse em se instalar empreendimentos, também são mencionados no texto “Mineração do lítio e processos político-educativos no Vale Do Jequitinhonha/MG” de Sueli do Carmo Oliveira, Aline Aparecida Ruas e José Carlos Silvério dos Santos. Os autores ao mencionarem a chegada da mineração de lítio na região questionam sobre a concepção de modernização e transição energética que contrapõe a situação da instalação da mineração – que tem uma grande demanda hídrica em seu processo produtivo – , a situação de escassez hídrica – em uma região semi-árida, no norte de Minas Gerais. Pesquisadores e ativistas, em comunidades que já vivenciam a escassez hídrica questionam o papel dos Institutos Federais enquanto espaços de legitimação dos discursos minerários, entendendo que estes deveriam ser locais que perpetuassem a educação crítica, libertadora, e empoderadora. E relatam o trabalho realizado envolvendo movimento ativista e mulheres arpilleras que por meio de bordados tecem denúncias e reflexões sobre a atividade minerária em um processo “político-educativo” apontando a insegurança hídrica como um dos “efeitos derrame” dessa atividade na região.

Os impactos da mineração na segurança hídrica também foram abordados no texto “Educação ambiental em desastres minerários e outros” de Marcus Vinícius Polignano. O autor, que também é coordenador do Projeto Manuelzão, aponta a “água como matriz para entender as contradições ambientais do nosso modelo civilizatório” e indica a importância do entendimento territorial das bacias hidrográficas para se trabalhar de maneira transdisciplinar a temática de desastres minerários.

A consciência da espacialidade das bacia hidrográfica e do caminho da lama como o caminho da fluência dos rios também é tema do texto “Mapeamento Geoparticipativo de Barragens (MapGB) na formação de professores” de Daniela Campolina e Lussandra Martins Gianasi. As autoras apresentam a metodologia Mapeamento Geoparticipativo de Barragens como uma proposta de ferramenta educativa que possibilita tanto a percepção geoespacial para conhecimento territorial da localização das barragens, quanto de produção de informação referente ao caminho da lama. Colocando assim o professor, alunos e comunidade no lugar de produtores de informação importantes para a percepção de risco e empoderamento. 

A importância da leitura geoespacial como forma de empoderamento também é abordado pelos autores Flávio Fonseca do Carmo, Luciana Hiromi Yoshino Kamino, Felipe Fonseca do Carmo, Izabella Oliveira Silva, Rogério Tobias Junior e Viviane Silva do Carmo no texto “Usos de ferramentas digitais na escola para abordar controvérsias da mineração”. Os autores, que integram a equipe do Instituto Prístino, apresentam o Atlas Digital Geoambiental de Minas Gerais como instrumento didático para analisar a presença de barragens, complexos minerários em territórios em MG de grande importância ecossistêmica, e que são fonte de diversos serviços ambientais: os ecossistemas ferruginosos. Os autores sugerem a abordagem de controvérsias da mineração, dentre elas a minero-dependência como uma ameaça para a segurança hídrica em diversos territórios do Estado de Minas que possuem significativas reservas de água em meio a aquíferos constituídos de minério de ferro, conversando dessa forma também, com outros textos da edição.

Sobre a importância da água enquanto elemento constituinte do modo de vida de diversas comunidades, Avelin Buniacá Kambiwá nos convida a repensar sobre o tipo de sociedade que alimenta os discursos minerários e produz crimes-desastre. Em seu texto “Educação para o bem viver no enfrentamento à mineração”, Avelin traz um pouco da concepção do bem viver apresentando a “cosmovisão indígena em relação ao ambiente que nos cerca e do qual fazemos parte” e, “propondo uma nova forma de ver o mundo propagado por agentes da educação e da cultura”. Nesse contexto, a autora vê na educação um espaço de diálogo de saberes tão essencial para o enfrentamento à minero-dependência, entendendo essa atividade como inviabilizadora de diversas outras formas de se viver em um território. E, nos convida ainda, ao exercício da alfabetização antiracista como uma forma de reconhecer e visibilizar os impactos da mineração e injustiças ambientais desta, frente às comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais.

As discussões e relatos aqui trazidos mostram a diversidade de experiências de professoras/es, pesquisadoras/es e ativistas que tiveram sua vida, de alguma forma, invadida pela lama e fizeram disso um processo de produção informação, de formação e empoderamento. Muitos dos autores são também lideranças ou referências comunitárias nos processos de luta por direitos diante dos crimes-desastres e da ameaça da lama invisível. . construíram conhecimento se desdobram  os efeitos da mineração no silenciamento pedagógico e o contexto formativo de práticas que caminham no sentido contrário à banalização da atuação minerária. Pressupõe-se, então, que ao ler a edição, o leitor encontrará uma riqueza de perspectivas críticas sobre o impacto da mineração na diversidade dos territórios em Minas Gerais¹.

Convidamos os leitores a conhecerem este novo número da RBEB, composto por seis artigos científicos, sete relatos de experiência e dois textos de opinião. Somos gratos a todos os pareceristas adjuntos que aceitaram o mergulho na temática para avaliação dos artigos publicados neste número da RBEB. Parabenizamos e agradecemos a todos os autores pelo ímpeto e exercício comunicacional, e pelo partilhamento de toda a sua sabedoria. Por fim, saudamos a todos os graduandos, pós-graduandos e bolsistas vinculados ao projeto que tornaram essa edição possível.

Boa leitura!

Lussandra Gianasi e Daniela Campolina – Coordenadoras do Projeto de Extensão “Mapeamento e visibilização de práticas didáticas e desafios de professores na bacia do Rio Doce afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão da Samarco”.

Vanessa Macêdo – Editora Executiva da Revista Brasileira de Educação Básica e Luiza Pereira – Editora executiva para a Edição Especial Educação e Desastres Minerários

Equipe organizadora da edição especial.

_______

1. A chamada, inicialmente, teve perspectivas de alcance nacional. No entanto, todos os textos recebidos foram de autores residentes e atuantes no estado de Minas Gerais. Em janeiro de 2022, a maioria das barragens em nível de emergência acionado encontram-se em MG, segundo dados da Agência Nacional de Mineração.SIGBM Público | ANM – Agência Nacional de Mineral.

This Post Has 2 Comments
  1. bom dia.
    gostaria de ter acesso à edicação especial de desastres minerários.
    não encontro o link para download na página.
    obrigada

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *