Livros Destaque Cronicando N 5

Cronicando

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Alessandra Gomes da Silva

Possui graduação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009), bacharelado e licenciatura em Letras (português-francês) e suas respectivas Literaturas. É mestre em Letras – Literatura (2016), pelo programa de pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Puc – Rio. Desde 2006, é professora de Ensino Básico do Instituto Nacional de Educação de Surdos, atuando nas áreas de Ensino, Pesquisa e Extensão. Tem interesse na interseção dos seguintes temas: acessibilidade cultural, narrativas audiovisuais, leitura, literatura e surdez.

E-mail: aletrasufrj@hotmail.com

Este relato corresponde a um recorte da dissertação intitulada Por uma poética dos sentidos: a literatura no contexto da surdez (SILVA, 2016), defendida no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). A proposta para o trabalho de pesquisa surgiu a partir de uma experiência em um contexto bastante singular, tendo como base a atuação como docente de literatura em turmas de Educação Básica, no colégio de aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)[1]. Reflete-se, então, acerca de modos de experimentar a literatura com os alunos surdos adultos, usuários da língua brasileira de sinais (Libras) e da língua portuguesa, modalidade escrita, como segunda língua.

Para situarmos as peculiaridades que perpassam o campo, faz-se necessária uma pequena introdução sobre o tema. A surdez impede que os indivíduos adquiram uma língua oral apenas em contato com outras pessoas. Quando nascemos, vamos, aos poucos, nos constituindo enquanto sujeitos. Faz parte desse processo o aprender a falar, sobretudo, a partir de estímulos oferecidos por adultos próximos a esses novos seres em formação. Com a surdez, no entanto, há um obstáculo natural para essa aquisição. Nesse sentido, os surdos foram considerados deficientes, tendo como base a impossibilidade de aprender a língua oral do mesmo modo que os ouvintes, o que se modificou em função do reconhecimento de seu meio de comunicação gestual, a língua de sinais (PERLIN, 2005).

Foram com os trabalhos de Stokoe, a partir dos anos de 1960, que se estabeleceu que “tal mímica”, feita por surdos entre si, representava uma língua própria, o que culminou com a comprovação do estatuto linguístico das línguas de sinais. Provou-se, assim, que elas não correspondiam a uma ‘versão deficitária das línguas orais’. Antes, correspondiam a sistemas próprios de comunicação que também apresentavam as mesmas características das demais línguas (SALLES et al., 2004, p. 89). Nesse contexto, a surdez acabaria por sair de um paradigma puramente clínico (da reabilitação) para abarcar também um paradigma linguístico (da diferença). Tais publicações são citadas até hoje, por diferentes correntes linguísticas, e acarretaram uma série de políticas públicas que buscam garantir à comunidade surda sua inserção em grupos linguísticos minoritários, processo ainda bastante complexo e em curso nas diferentes esferas sociais.

Os dados dessa introdução convergem para a necessidade de o surdo se tornar bilíngue, condição, aliás, compulsória para esse grupo, uma vez que, de acordo com Skliar (1998), há o direito do surdo ao aprendizado da língua de sinais como primeira língua, sua língua de instrução, e a língua portuguesa, em sua modalidade escrita, como segunda língua. Isso significa dizer que os surdos (quase sempre) não aprendem a leitura e a escrita do mesmo modo que um ouvinte, uma vez que não estabelecem uma relação entre letra e som. A aprendizagem deveria ser promovida por meio de elementos visuais e com metodologias próprias, tendo como base as utilizadas com usuários de segunda língua. Nesse sentido, há ainda algumas características da língua de sinais que podem interferir no processo de construção da habilidade de leitura desses alunos em português, já que a Libras é uma língua com estruturas linguísticas simultâneas e não-lineares, enquanto o português é uma língua linear (SALLES et al., 2004).

Nesse contexto, ao menos duas questões se evidenciam: a dificuldade de comunicação que, por conseguinte, dificulta também a aquisição de conhecimentos básicos, como as contações de histórias muito comuns desde a infância e que geralmente os surdos adultos, em sua maioria, desconhecem. Além disso, consequentemente, há uma dificuldade em ter acesso aos bens culturais quase sempre disponíveis em língua portuguesa escrita, entre eles a literatura.

O foco do trabalho recaiu sobre os adultos surdos, sobretudo aqueles que não tiveram acesso a uma escolarização formal adequada e ainda frequentam os bancos escolares em cursos noturnos. São em sua maioria jovens e adultos trabalhadores que não conseguiram finalizar seus estudos no tempo previsto. Posto isso, planejamos algumas incursões pontuais que nos permitiram observar mais de perto os modos de se relacionar com o texto literário por um grupo de alunos, matriculados no 9º ano do Ensino Fundamental noturno. Para o artigo, analisou-se a terceira e última atividade realizada, com duração de uma aula de dois tempos de cinquenta minutos.

Nesse sentido, a proposta contou com um despretensioso interesse em discutir a contribuição da literatura e da arte em geral para uma formação humanista do homem. Sabemos que a discussão da função da arte extrapola qualquer visão utilitarista e limitadora que justificasse sua inserção no cotidiano da escola. Não foi esse o interesse, pensou-se antes em propor uma discussão sobre como podemos ver o mundo e como a arte poderia interferir nesse olhar. Para essa discussão, escolheu-se uma crônica bastante contundente, chamada “Vista Cansada[2], do autor Otto Lara Resende. Na crônica, o autor aborda a questão do ver e de como vamos perdendo essa capacidade de perceber o que está a nossa volta. Sabemos que o individualismo tem sido um problema recorrente em nossa sociedade e, além disso, gostaríamos de abordar temas como a simplicidade e o cotidiano, por isso também a opção pelo gênero crônica.

Assim, inicialmente foi feito um vocabulário visual com as palavras que poderiam gerar mais dúvidas entre os alunos pelo possível desconhecimento de seu significado. Somente depois que essas palavras-chave foram entendidas, distribuiu-se uma folha com o texto escrito. Os alunos fizeram uma leitura individual e partilhamos uma leitura conjunta. A crônica utilizada tinha uma estrutura argumentativa, pois defendia uma ideia delimitada. O fragmento que sobressaiu da leitura dos alunos foi “se eu morrer, morre comigo uma forma de olhar”. Discorrendo sobre o trecho, eles abordaram a questão de como cada pessoa tem uma percepção própria da realidade, de acordo com seus valores, sua personalidade, seu conhecimento de mundo, suas vivências etc.

Nesse contexto, decidiu-se aproveitar uma inspiração a partir de uma atividade realizada em uma oficina de fotografia[3] para tentar (re)educar nosso olhar para o que estaria ao nosso redor, mas que, por isso mesmo, nem sempre seríamos capazes de perceber. Nesse contexto, os alunos deveriam escolher entre imagens que foram retiradas de jornais e também de sites da internet. Depois, deveriam marcar nas imagens detalhes que poderiam ser vistos mais de perto, explicando os motivos de sua seleção entre as imagens possíveis. Pensou-se no que deveria guiar nosso olhar, em pequenos detalhes da própria imagem.

Figura 1 – Alguns trabalhos dos alunos

 

Durante a atividade, pode-se perceber como a crônica traz um tema extremamente pertinente para falarmos a respeito de como nos relacionamos com o outro. É esse olhar para o próximo, capaz de se emocionar ou de se entristecer, que podemos partilhar com os alunos a partir das artes, um modo mais poético de compreensão da própria vida. Dessa forma, eles selecionaram, entre as diferentes imagens, desde o desejo de aventura até o contato com a natureza, além de exporem sentimentos como preocupação com os mais pobres, com os que possuem menos condições de vida e o próprio medo da solidão, do desamparo diante dos percalços do mundo.

Figura 2 – Alguns trabalhos dos alunos

 

Desse modo, acredita-se que a escolha do gênero textual a ser trabalhado, a temática do texto e a mediação do professor-leitor são aspectos marcantes para o alcance das narrativas literárias na escola, com o público em questão. Além disso, atividades que promovam um trânsito entre línguas e linguagens se mostraram mais ricas para serem exploradas em sala de aula. Assim, finaliza-se o texto indicando que a intenção se constituiu em mostrar práticas que, com recursos simples, podem favorecer outros meios de contato com os textos literários em sala de aula de turmas de alunos surdos do Ensino Fundamental.

 

 

REFERÊNCIAS

PERLIN, G. T. T. Identidades surdas. In: SKLIAR, C. (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2005. p.51-73

SALLES, H. M. M. L. et al. Ensino de língua portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Brasília, DF: MEC; Seesp, 2004. v. 1.

SILVA, A. G. Por uma poética dos sentidos: a literatura no contexto da surdez. 2016. 167 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

SKLIAR, C. Bilinguismo e biculturalismo: uma análise sobre as narrativas tradicionais na educação dos surdos. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 8, p. 44-57, maio/ago. 1998.

[1] Disponível em: <http://bit.ly/2fd2lsF>. Acesso em: 03 ago. 2017.

[2] Disponível em: <http://bit.ly/2vtSbKw>. Acesso em: 03 ago. 2017.

[3]Disponível em Fotografias para todos. As imagens foram retiradas de O Globo, Revista Bula e Hypeness.

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