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Crianças em tempo integral e professoras em tempo parcial

Vera Lúcia Vieira

Vera Lúcia Vieira

Professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, atuando como diretora de uma instituição municipal de Educação Infantil. Graduação em Pedagogia e Especialização em Docência na Educação Infantil – FAE/UFMG.

E-mail: veravieira68@gmail.com

Érica Dumont-Pena

Érica Dumont-Pena

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil da Faculdade de Educação da UFMG (NEPEI-FaE/UFMG). Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da UFMG.

E-mail: ericadumont@gmail.com

Este trabalho discute a organização das relações de cuidado e educação dos bebês em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI) da cidade de Belo Horizonte e apresenta reflexões voltadas às estratégias desenvolvidas pelas professoras municipais de Educação Infantil que trabalham em turno parcial e se revezam para atender bebês que permanecem na escola em tempo integral. Compreende-se que essas estratégias, para além da organização necessária das jornadas, horários e dinâmicas para o atendimento dos bebês em tempo integral, visam construir uma educação norteada pela formação humana integral, o que se apresenta como um desafio.

Nesse sentido buscamos observar o cotidiano de uma instituição com o objetivo de verificar a organização da rotina de trabalho com os bebês. As rotinas são compreendidas, de acordo como Barbosa (2010), como modos de organizar o dia a dia, constituídos pela cultura e política, capazes de incluir experiências diversificadas e em movimento, embora constantemente sejam percebidas como ferramentas homogeneizadoras das experiências de adultos e crianças. Compreende-se que as rotinas sejam vivas e compostas por estratégias particulares e inerentes às singularidades de cada contexto. Nesse sentido, observa-se que no espectro de uma rotina devem caber estratégias e instrumentos diversificados e modos espontâneos de agir.

As estratégias analisadas neste trabalho compunham a rotina da UMEI Céu Azul, onde desenvolvemos no ano de 2015, por um período de três meses, uma observação participante. Na época da pesquisa a UMEI atendia 220 crianças, das quais 48 eram bebês atendidos em horário integral, das 7 da manhã às 17h20.

A turma observada era composta por catorze bebês com idades entre 4 meses, 1 ano e 2 anos. No turno da manhã dividiam o trabalho uma “professora referência”[1] e uma “professora compartilhada”[2] trabalhando das 7 da manhã às 11h30. A mesma organização ocorria no turno da tarde, no qual uma professora referência e uma professora compartilhada dividiam as atividades das 13 às 17h. Contava-se ainda com uma professora compartilhada trabalhando das 8:30 às 13h, e uma no turno da tarde, em readaptação funcional[3]. Após março de 2015, uma auxiliar de Educação Infantil[4] também foi adicionada à equipe, trabalhando das 7 h às 11h24; e de 13 h às 17h24. Portanto, ao longo de um dia, sete profissionais, seis professoras e uma auxiliar, atuavam junto aos bebês dessa turma.

A observação e análise da rotina de cuidado e educação dos bebês na instituição teve como objetivo compreender a organização dos tempos das profissionais tendo em vista o elevado número de profissionais atuando em uma mesma turma.

Esse trabalho nos permitiu verificar alguns aspectos que considerados relevantes para a organização da rotina de trabalho com os bebês, cuidados com o ambiente, trabalho coletivo, planejamento e comunicação entre as professoras. Este texto trata especificamente dos dois últimos itens, destacando as estratégias planejamento e caderno de comunicações.

O PLANEJAMENTO E A COMUNICAÇÃO NA ROTINA COM OS BEBÊS

Na UMEI Céu Azul o planejamento pedagógico é realizado em três níveis. Há o planejamento global, que acontece semestralmente e constitui uma orientação para o planejamento mensal, que por sua vez referencia o planejamento semanal. Esses níveis são guiados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) e pelas Proposições Curriculares de Belo Horizonte, e elaborados de acordo com as especificidades das faixas etárias das crianças.

De acordo com as professoras da turma acompanhada, o planejamento global e mensal assegura que os trabalhos sejam realizados de forma articulada entre as professoras, visto que é mais abrangente e estável. Estes são estruturados em uma perspectiva mais ampla e possibilitam que a equipe atue junto aos bebês de forma harmônica, de modo a expressar um projeto público de educação que considera dimensões estéticas, políticas e éticas da sociedade, como previsto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009).

Tais planejamentos são conjugados com o planejamento semanal, realizado a partir de uma perspectiva temporal mais circunscrita, e permite que incertezas, imprevistos e bifurcações estejam presentes. Já o planejamento mensal assegura a continuidade do trabalho diário das professoras e modifica-se com mais frequência de acordo com as demandas dos bebês e professoras. O planejamento semanal é entregue à coordenação pedagógica dois dias antes da semana em que será executado, o que permite a discussão de seu conteúdo junto à equipe, organização do material e espaços necessários para o desenvolvimento das atividades.

Não há dúvida de que a complexidade do planejamento estruturado em três níveis é essencial para a organização do trabalho conjunto entre professoras que muitas vezes não se veem. Contudo, notam-se desafios ao entrar na dinâmica concreta das interações. Na UMEI Céu Azul, as professoras por vezes se desencontram, o que pode acarretar em repetição de atividades e também discordância entre elas. Como salientou Moraes (2010) toda ação planejada entra na dinâmica das interações e pode ser objeto da cooperação ou recursão entre os que planejaram, podendo ou não ser desviada da rota estabelecida inicialmente.

Desse modo, o desafio do planejamento consiste em permitir aberturas entre o que se define como rota e o que se concretiza efetivamente na prática pedagógica. Como alerta Moraes (2010) a abertura e flexibilidade dos planejamentos pode fazer emergir processos significativos e importantes de situações que inicialmente surgiam como insignificantes e não planejadas. Além disso, há a necessidade de prever “espaços vazios” que possam dar lugar ao protagonismo dos bebês e professoras.

A qualidade das relações entre professoras, especialmente a comunicação, é um aspecto importante para garantia da qualidade do atendimento aos bebês e às crianças pequenas. Na UMEI Céu Azul, uma das estratégias de comunicação utilizadas é o Caderno de Comunicação. Trata-se de um caderno para a socialização de informações entre as professoras, cujos horários de trabalho são diferentes ao longo do dia, e reflete a preocupação com a troca de informações sobre o encaminhamento do trabalho e as ocorrências com os bebês, além de subsidiarem a comunicação direta com as famílias e os registros das informações nas agendas das crianças.

No entanto, nossa análise das informações compartilhadas no Caderno de Comunicação indica que as informações mais relevantes repassadas entre as professoras dizem respeito às ações mais voltadas ao cuidado com os bebês – sobretudo o cuidado com os que têm alguma enfermidade. Não se encontram relatos referentes às brincadeiras e demais processos de aprendizagem, e sim receitas médicas, informações sobre assaduras, febres, acidentes. É compreensível que o registro do cuidado com os bebês, principalmente nas situações em que falta saúde, apresenta-se como uma prioridade no atendimento a essa faixa etária. Em geral, nessas situações, as professoras precisam “improvisar” e lançar mão de conhecimentos adquiridos no universo doméstico, conseguindo não só cuidar de uma criança doente, mas também avaliar e distinguir o estado em que esta precisa de cuidado de outras pessoas, no caso algum profissional da saúde ou famílias (DUMONT-PENA, 2014).

Assim, o Caderno de Comunicação permite que haja uma continuidade nos cuidados e possibilita a construção de conhecimentos em torno de temas não abordados nos cursos de Pedagogia.

Nessa sentido o caderno pode ser um importante instrumento para discussão em reuniões de equipe, fazendo emergir um universo de ações de cuidados que compõem a educação, ações essas realizadas a partir das aprendizagens individuais das professoras, que muitas vezes encontram-se invisibilizadas, contribuindo para a separação entre cuidado e educação no contexto da Educação Infantil e para a fragmentação da rotina.

O Caderno de Comunicação também é importante referência para as anotações que serão feitas nas agendas dos bebês. Tais anotações se mostram relevantes, pois permitem a comunicação entre professoras e famílias. Essa comunicação sobre o cuidado com a saúde e sobre os cuidados indispensáveis (sono, alimentação, banho) parece ser ainda mais importante quando se trata de informar às famílias sobre a rotina das crianças pequenas, já que geram confiança nas famílias que, inicialmente, demonstram temer principalmente pela segurança física dos bebês (SILVA, 2011). Com o passar dos anos, essas mesmas famílias tendem a se preocupar mais com os processos de aprendizagem. Sendo assim, a despeito da importância dos registros relacionados aos cuidados, é importante refletir sobre a ausência de registros e comunicação relacionadas aos processos de aprendizagens dos bebês.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este trabalho buscamos apresentar algumas estratégias de organização das professoras diante da fragmentação do tempo de trabalho e busca pela construção de uma educação plena no contexto da educação e cuidado dos bebês. As estratégias indicam esforços dessas trabalhadoras para comunicarem entre si e estabelecerem uma relação com as famílias, propiciando harmonia e integração do serviço ofertado.

Essas estratégias lançam luz sobre o complexo diálogo entre adultos participantes da rotina de educação e cuidado dos bebês, para os quais a continuidade e recorrência das ações é importante para oferecer certo domínio e segurança sobre o mundo. Vozes, texturas da pele, músicas e comidas que se repetem fazem com que os bebês possam construir um primeiro eixo de história e memória. Saber também que os adultos se repetem faz com que os bebês confiem que estes voltarão, que podem contar com o outro e que são amados. Nesse sentido, são valorosos os esforços deste grupo profissional para se repetirem umas nas outras, por meio da comunicação e do respeito profissional entre si e com as crianças. Contudo, isso não nos exime do desafio de refletir sobre a presença de múltiplos agentes participantes da educação e cuidado dos bebês. Indagamos se o planejamento e comunicação, além de outros aspectos qualitativos da rotina de trabalho com os bebês, conseguem de fato ser assegurados na organização do trabalho de todos os profissionais dessa e das demais instituições de Educação Infantil Municipais.

Também nos perguntamos sobre os conteúdos desses planejamentos. É necessário criar estratégias para que eles incluam ações educativas, brincadeiras e não apenas ações básicas de cuidados relacionados à manutenção das necessidades vitais dos bebês. O planejamento deve conter a integração da proposta educativa. Por fim, se pretendemos construir uma educação em tempo integral para bebês e crianças pequenas, também precisamos pensar em diferentes profissionais que possam se dedicar de forma articulada e, para tanto, constituir uma carreira profissional que garanta aos professores de Educação Infantil condições salariais e de trabalho condizentes com essa proposta.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, M. C. S. Por amor e por força: rotinas na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer nº 20/2009. Diário Oficial da União, 9 dez. 2009. Disponível em: <http://bit.ly/2ngIKXG>. Acesso em: 28 mar. 2017.

DUMONT-PENA, É. Cuidar: relações sociais, práticas e sentidos no contexto da Educação Infantil. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

MORAES, M. C. Complexidade e currículo: por urna nova relação. Polis, Santiago, v. 9, n. 25, p. 289-311, 2010.

SILVA, I. O.  Educação Infantil e espaço público: o cuidado e a Educação da Primeira Infância em espaços coletivos. In: ZORNIG, S. M. A. Z.; ARAGÃO, R. O. (Orgs.). Nascimento: antes e depois – cuidados em Rede. 2. ed. Curitiba: Abebê, 2011. p. 213-222.

[1] A professora referência está alocada somente em uma turma, tornando-se referência da mesma. Trata-se de Professora Municipal de Educação Infantil, com carga horária semanal de 22h30, concursada em nível municipal, com formação mínima exigida em magistério de nível médio.

[2] A professora compartilhada possui as mesmas características do cargo da professora referência, porém, acompanha uma ou mais turmas ao logo do dia.

[3] Trata-se de Professora Municipal de Educação Infantil, com carga horária semanal 22h30, concursada em nível municipal, com formação mínima exigida em magistério de nível médio, com determinado problema de saúde que restringe suas funções docentes.

[4] A auxiliar de apoio à Educação Infantil é contratada através da Caixa Escolar, em regime de trabalho celetista, para atuar no apoio às professoras e crianças das turmas de período integral, com carga horária de 44h semanais, sem exigência de formação específica para o magistério.

VIEIRA, Vera Lúcia, PENA, Érica Dumont. Crianças em tempo integral e professoras em tempo parcial. (Belo Horizonte, online) [online]. 2017, vol.2, n.3. ISSN 2526-1126. http://pensaraeducacao.com.br/rbeducacaobasica/wp-content/uploads/sites/5/2019/05/4-CRIANÇAS-EM-TEMPO-INTEGRAL-E-PROFESSORAS-EM-TEMPO-PARCIAL.pdf

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