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Com quantos Dissidentes se faz um grupelho?

Luiz Magno Marques de Abreu

Luiz Magno Marques de Abreu

Ator e iluminador (DRT: 8187). Estudante do Programa de Pós-graduação em Educação e Docência (Mestrado) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa: Educação, Ensino e Humanidades. Graduado em Filosofia (licenciatura e bacharelado) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Como Integrante do Grupo de Estudos e Ações em Filosofia e Educação (grupelho- FaE/UFMG), atua nos seguintes temas: Educação e Resistência, Filosofia e Corpo e Filosofia do Ensino de Filosofia. Atualmente, é professor na rede privada de ensino e coordenador de atividades culturais.

E-mail: Contato: luiz.mmabreu@gmail.com

Roda-viva

Eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom dançarino. (Nietzsche, A Gaia Ciência, §381)

Quando me tornei artista, há doze anos, não sabia direito o que era isso, eu estava na antiga 7a série e apenas vivenciava a experiência numa escola periférica às margens da Avenida Vilarinho, em Belo Horizonte, MG (lugar onde uma chuvinha faz a rua virar rio; rio onde aprendi a navegar em meio ao dilúvio da vida). A gente nunca sabe de quais modos os nossos anos de formação escolar nos afetarão. Creio que há mais aprendizados escondidos no invisível da escola do que na máscara que ela cotidianamente mostra. De certa maneira, todos sabem o que ela é e, recorrentemente, caímos nessa armadilha da identidade institucional. Restam-nos questionamentos sobre isso: os alunos aprendem, realmente, tudo aquilo que o professor ensina? Ou são, por vezes, os afetos intangíveis que constituem insofismavelmente o território a que denominamos escola?

O Projeto de Teatro, conduzido pelo professor e amigo Antônio Paulo Ferreira Lobo na E. M. Francisco Magalhães Gomes, foi e ainda é um espaço raro no qual o não institucionalizado constitui uma parte do território colonizado pelas burocracias do nosso velho e conhecido ambiente de formação: um pouco de caos em meio à ordem. Numa terra onde todos esperam por definições (de currículo, aprendizagem, futuro…), o inesperado e o disforme (aquilo que não tem fôrma). De algum modo, neste contexto, o teatro é uma consciência renascida fora da razão. Sem pretensões de formar atores, mas também sem o desejo de se tornar uma disciplina, o Projeto se projeta sem trajetória, conquanto sempre acerte o alvo: nós, hoje, ex-alunos e alunas, gente construída (e sempre em construção) pelo invisível da escola.

Com a mesma intensidade, minha trajetória na filosofia se consolidou pelos caminhos das diferenças. Nós, alunos e alunas de uma escola estadual à beira da Avenida Pedro I, também em Belo Horizonte, no turno noturno, trabalhadores durante o dia, descobrimos em meio às insuficiências materiais e de estrutura a inalienável possibilidade de nos fazermos presentes. Experimentações do pensamento conduzidas em cinquenta minutos, uma vez por semana, nas impactantes aulas do professor Rodrigo Carvalho (que não era formado em Filosofia, mas em Letras, e dava aulas a título precário). Ora, se um docente que não lecionava em sua área de formação foi capaz de despertar naquele eu jovem (e nos outros colegas) os afetos da Filosofia e mais, ainda que ele não saiba, semear em mim o desejo de formação filosófica em nível superior, imagine o que nós, professores e professoras, seríamos capazes de fazer na vida de um aluno? Evidentemente, a profissão docente carrega, entre os seus muitos afazeres, a ética da responsabilidade e do cuidado com o outro. Há muito que não creio mais que o compromisso do educador seja com os conteúdos. De todo modo, não falo do abandono ao rigor metodológico pertencente ao ensino em qualquer nível, mas da afirmação da sensibilidade (a compreensão de que lidamos com vidas situadas historicamente no tempo e no espaço, dissidências de todos os tipos, além de marcadamente estratificadas em classes) no contexto do ensino-aprendizagem. Falo de uma enormidade de vidas que não são suportadas pela formatação do sistema institucional escolar: os excluídos; os menores; os dissidentes; enfim, os grupelhos.

Ao entrar na academia, estudante de baixa renda subsidiado pelo ProUni (Programa Universidade Para Todos), deparei-me com um reinado intelectual concedido a poucos: vaidades paradoxais para o que eu entendia como filosofia; um mundo verdadeiramente distinto daquele aprendido nas aulas do professor Rodrigo. Espaço de conservação de uma razão travestida de emancipatória, mas, em seu íntimo, arrogante, violenta e segregadora. A realidade é que a verdade pela verdade, tão pregada pelos filósofos, é apenas um modo de eles se desafeiçoarem do mundo. Até que eles próprios envaidecidos por seu des(apego) e des(pretensão) se tornem, eles mesmos, a própria verdade. Foi um verdadeiro horror descobrir que a filosofia, reduzida àquele espaço institucionalizado, estava formando colonizadores do pensamento, sobretudo descumprindo sua tarefa educacional libertadora. Entretanto, como afirmou Eugênio Barba sobre o ofício do ator (que a meu ver não é muito diferente do trabalho do professor – com ressalvas, claro –, uma vez que ambos são responsáveis pelo fomento da vida):

Normalmente, há uma ferida no início de um caminho de criação. Ela revela que nos separamos de algo que era vital para nós, deixa rastros numa parte de nós que continua em exílio no mais profundo de nós mesmos. Em alguns casos, o tempo transforma nossa ferida numa cicatriz que deixa de doer. No exercício do nosso ofício, retornamos continuamente a essa íntima lesão, para recusá-la ou para lhe ser fiel (BARBA, 2018, p. 13).

Nesse contexto, tendo a crer que a lesão em mim deixada por uma formação castradora na filosofia foi retomada, servindo-me como ponto inicial para sua transvaloração. Muitas vezes, a afirmação violenta de uma ideia ou valor serve também para descortinar segredos há muito bem guardados: por exemplo, o de que a filosofia deve servir a todos. Para aqueles que não sabem, há diferença entre servir e a condição de ser servil. Servir é trabalhar em favor de uma coletividade e, mais especificamente, de sua libertação em comunhão, como em outras palavras disse Paulo Freire. “Para encontrar a si mesmo, é preciso misturar-se com o outro: o outro em nós mesmos ou o outro que está fora de nós” (BARBA, 2018, p. 13). Ser servil é algo próprio de alguém ou algo que se encontre na condição de servo e condescendente demais com as injustiças do mundo.

Muitas vezes, é a contingência e o invisível que propelem as velas do nosso navio; embarcação habitada por muitos, aliás, por todos nós que, por puro acaso, passamos a existir neste mundo que por si só é um mistério. Foi experimentando as circunstâncias que aprendi a determinar os acontecimentos e a construir o martelo que despedaça os destinos (BARBA, 2018, p. 9). E assim, como que conduzido por um vento, tornei-me professor. Essa brisa foi soprando nas brasas de minha memória os locais onde estive em minha vida, as pessoas com quem conversei, os conselhos, os encontros, as exclusões, os temores, as paixões e os horrores, que me deixaram incandescente a ponto de entender que a chama que ardia em mim não era somente minha; era fruto da formação imperceptível que recebi e recebo todos os dias.

Ser pequeno – este princípio do teatro –, criado, sabe-se lá quando, para acalmar os excessos do ego, também serve à filosofia e à docência. Três áreas produtoras de sentidos que se encontram na afirmação da vida. O professor, o artista e o filósofo são aqueles cujo

[…] treinamento […] é a iniciação para uma profissão na qual a resistência, com seus múltiplos significados, é uma condição fundamental: […] persistir na adversidade, na falta de sucesso, nos períodos de “inverno” e sem frutos; recusar a autoindulgência e as soluções óbvias; não desistir diante dos obstáculos; ser obstinado para extrair o difícil do difícil; ser tenaz para não se adaptar às limitações do contexto (BARBA, 2018, p. 18).

Como observa Barba, a nossa iniciação é diária. O que não significa estar sempre no mesmo lugar. Ao contrário, começar de novo é estar atento aos chamamentos da vida, é abrir-se à possibilidade do encontro, que certamente nos transformará em algo novo. Um novo que não existe do zero, mas que compõe o abecedário da vida. Somos todos amadores, aprendizes, pequenas potências que movem verdadeiros universos, subjetividades capazes da criação; criação mesma de uma subjetividade coletiva. Resistimos, então. Como grupos dissidentes à normalidade e à normalização, fazemos do nosso dia a dia com o nosso corpo, nossa voz, nossa carne e o nosso intelecto – uma exaltação da vida contra a mortificação do nosso tempo.

Tempo. Deixei o teatro para cursar o mestrado em educação e docência, mas creio que o teatro nunca tenha me deixado. Como uma primeira pousada, a arte abrigou a criança que eu era, o menino que eu sou. Abriu os caminhos para alguém que sequer sabia andar, me acolheu em seus braços, me ninou quando eu estava com medo e acendeu as luzes do quarto escuro onde eu vivia para me mostrar que não havia nada a temer. Mostrou-me o quão incompleto sou. Devo minha vida ao teatro, assim como a devo aos professores que por ela passaram (e que ainda passarão). Apesar de falar do passado, todos esses encontros constituem o que sou no presente. O que estou sendo. Presente: chamada da vida.

Hoje, eu, professor de Filosofia na Educação Básica, vejo-me como Paulo, Rodrigo, Marluce, Ana Nery, William Sandes, Miro; como Ítalo Mudado, Geraldo Octaviano, Sílvia Contaldo, Valéria de Marco, Magda Guadalupe, Roberto Starling, Nilce, Simone, Renata Aspis, Libéria, Wagner Nascimento, Licínia. Vejo-me vendo a mim mesmo como todos eles, professores e professoras, amigos, impulsionadores desse alguém que semeia, com gratidão, o que outrora plantaram em mim.

Uum ponto sem final: ensaiar(-se)

Cada vez mais, sinto-me perseguidor de um mundo que não está no futuro. Um mundo que há tempos ensaiamos e que permanecerá sempre ensaio. Um mundo presente cuja experimentação vivifica o seu sentido, um mundo sempre por se fazer, do qual somos testemunhas presentes. Um agora que é e não é ao mesmo tempo, que está entre esses dois polos; que se faz sendo e que, por isso, é ininterrupto o movimento, o que está no meio, em constante frio na barriga. Um mundo onde todos nós somos pontos que a cada encontro vão formando reticências. Diferentes diferenças que se misturam transformando-se no inesperado. É o que testemunho como professor de Filosofia e ator: viver é ensaiar-se.

A filosofia é experimentação do pensamento. O pensamento se distingue da razão. “A razão clássica opera por recognição, ao passo que o pensamento cria” (ASPIS, 2016, p. 434). O teatro é experimentação do pensamento, mas, estritamente, não é filosofia. Entretanto, “[a] filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela se dirige diretamente aos não-filósofos” (DELEUZE, 1992, p. 174-5), assim como o teatro se dirige diretamente aos não atores. Aliados, a filosofia e o teatro provocam o mundo, um mundo que é sempre instável e presente. Um ato de grande risco, pois, ao confrontarmos o mundo, puxamos, inevitavelmente, o tapete de nossas certezas. Nesse sentido, pensar é sempre um ensaio de nós mesmos. Viver é sempre aprender com o que está oculto.

Quando José Saramago escreveu o seu Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras, 1995), penso que ele questionava suas certezas, ao mesmo tempo em que se dirigia à humanidade. E se de uma hora para a outra ficássemos todos cegos? O que poderíamos aprender com a nossa própria cegueira? Como o “se” Mágico de Stanislavski serve aos atores para questionarem suas personagens: e se no lugar de aceitar o meu destino eu me rebelasse? O “se” cria sempre uma nova possibilidade; um novo caminho. Ensaiar. Ensaiar(-se). Eis um exercício diário, constante e infindável. “Quem não espera o inesperado nunca o encontrará” (HERÁCLITO, 1996, p. 98). Como disse o Helenista Donaldo Schüler ao interpretar o fragmento 18 do nosso amigo pré-socrático:

Se o encontro com o esperado se consumasse, os caminhos se apagariam, secariam os rios que navegamos e que nos atravessam, perderíamos sem recurso os cursos e dormiríamos embalados no silêncio das origens (SCHULER, 2000, p. 185-6).

Tememos vertiginosamente o silêncio da origem, bem como a mudez do fim, pois vivemos entre essas duas instâncias; tudo o que existe é meio. Ensaio para algo que não sabemos o que foi ou o que será. Não sabemos o que calça o mundo. Fantasiamos a ordem da existência:

Esta ordem não é tão firme como aparenta; nenhum objeto, nenhum eu, nenhuma forma, nenhum princípio é seguro; tudo sofre uma invisível, porém incessante, transformação; no instável, o futuro tem mais possibilidades que no estável, e o presente nada mais é que uma hipótese ainda não superada (MUSIL apud LARROSA, 2004).

 

O que ensaiei até aqui

Seja ele do Ensino Fundamental ou Médio, regente de turma ou não, contratado, designado ou efetivo, lecionando em ambientes formais, não formais ou informais, seja de qualquer disciplina, o professor nunca saberá o verdadeiro alcance de sua presença; até onde e como reverberará na vida de alguém. E afirmo isso como um corpo repleto de muitas existências, inclusive a minha própria. Dos muitos anos que passei na escola (e ainda passo como mestrando e docente), sinto que a maioria deles se perdeu, pois em grande parte não se impregnaram do sentido necessário para que se fixassem em minha conduta e memória. Da minha formação lembro-me mais dos inesperados: de quando, em meio aos nãos diários, ouvi “sim” pela primeira vez e comecei a fazer teatro; de quando, acompanhado de um professor, comi canjica com pão na cantina, depois de um longo dia de trabalho, e conversamos; de quando me vi ganhar o respeito dos meus colegas ao me tornar representante deles e repercutir por minha voz a voz de todos; de quando a morte de um amigo que corria atrás de uma pipa no lugar de estar na escola; de quando a merenda não dava para todo mundo, mas todo mundo dividia o pouco que tinha; de quando as aulas de Filosofia apresentavam para nós um mundo que nos era roubado; de quando um professor cansado chorou em sala e se fez humano; de quando todos os encontros, as risadas e os afetos se encontraram para construir a cada um de nós, o que estamos sendo, e eleger a vida como a nossa maior bandeira.

Até aqui ensaiei uma existência de experimentações no teatro, na docência e na filosofia como uma criança que faz do mundo o seu palco, brincando; e recebendo advertências por pensar coisas que os adultos, com seu olhar encardido, rejeitam por medo de lesões: a criação de possíveis. Com espírito dançarino, vejo-me, outrora, subindo as escadas de um escorregador azul, no qual, hoje, no topo, preparo para descer gradativamente: um escorregador chamado vida. Quem por ele subirá depois de mim? Certamente, um outro, afetado por um espírito jovem, despertado por algum encontro insuspeito numa esquina qualquer, a qualquer hora; espantado por um descobrimento de força, astúcia e beleza: o encontro de duas ou mais vidas na afirmação de seu infinito – o eco de um grito pela diferença.

 

 

REFERÊNCIAS

ASPIS, Renata Pereira Lima. Notas Esparsas Sobre Filosofias da Diferença e Currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 3, p. 429-439, set./dez. 2016.

BARBA, Eugenio. A Essência do Teatro. Ephemera, v. 1, n. 1, p. 7-22, dez. 2018.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Tradução: Bento Prado Jr.; Alberto Alonzo Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

HERÁCLITO. Fragmentos. In: SOUZA, José Cavalcante de. (Org.) Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

LARROSA, Jorge. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação & Realidade, v. 29, n. 1, p. 27-43, jan./jun. 2004.

SCHÜLLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2000.

 

 

LINKS E INDICAÇÕES:

Grupo de estudos em filosofia e educação

 O Grupelho (UFMG/CNPq) deseja produzir conhecimentos que contribuam com a investigação e problematização da educação pensada transversalmente pela filosofia. Trata-se de encarar a imposição da necessidade de se pensar de outra forma as mesmas questões, criar problemas que movimentem o pensamento, praticando o pensar como experimentação.

I Encontro de Diretores

Realizado pelo Circo Teatro Udi Grudi, o I Encontro de Diretores contou com a participação de Eugênio Barba, cuja palestra revela um pouco de sua história e relação com o Teatro Antropológico.

 

O Século Stanislavski

A série conta a história de Konstantin Stanislavski, nomeado uma das três grandes personalidades do século 20, com Freud e Einstein. Usando imagens de arquivo da Rússia, os programas contam como foi a vida do criador do Teatro de Arte de Moscou e do método de prática teatral mais popular do mundo, o método Stanislavski.

Janela da Alma

Como aprofundamento da temática proposta no livro Ensaio Sobre a Cegueira, sugerimos o documentário Janela da Alma, no qual dezenove pessoas com diferentes graus de deficiência visual, da miopia discreta à cegueira total, falam como se veem, como veem os outros e como percebem o mundo. O escritor e prêmio Nobel José Saramago, o músico Hermeto Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz Marieta Severo, o vereador cego Arnaldo Godoy, entre outros, fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos relativos à visão.

Imagem de destaque: Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay

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