
Trabalho colaborativo: sentir, ver e fazer na Educação Inclusiva
Wirlândia Magalhães Devens
Professora dos Anos Iniciais da Rede Municipal de Educação Básica de Aracruz, no Espírito Santo, desde 2001, na Escola Marechal Costa e Silva. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (2007) na linha de pesquisa Diversidade e Práticas Pedagógicas Inclusivas. Especialista em Educação Especial Inclusiva pela Faculdade da Região dos Lagos – Cabo Frio/RJ (2005) e Psicopedagogia pela Universidade Candido Mendes (2003). Graduada em Pedagogia (2001) e Psicologia (2024) pela Faculdade de Ciências Humanas em Aracruz. Integra um grupo de estudo da Língua Inglesa (2025) pela Bristol Community College em Massachussetts e um grupo de conversação na Burlington Scool of English, participa do grupo de estudos na área da Psicologia Corporal – Massagem Biodinâmica no Instituto Carlos Santos, em Vitoria, Espírito Santo, desde março 2024.
E-mail: landinha35@gmail.com
Contexto pedagógico na perspectiva da educação inclusiva
Este texto tem como materialidade um recorte da dissertação de mestrado O trabalho colaborativo crítico como dispositivo para práticas educacionais inclusivas, desenvolvida no ano de 2007 (Devens, 2007). A pesquisa, conforme explicitado no título, abordou questões relacionadas ao trabalho colaborativo-crítico como disparador de práticas pedagógicas inclusivas e buscou analisar como vinha se instituindo o trabalho colaborativo entre os professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o professor de apoio e os profissionais da equipe multidisciplinar em uma instituição de ensino da Educação Básica, mediante as implicações das ações de cunho reflexivo-colaborativas na formação continuada de professores.
Comumente, muitos questionamentos permeiam a atuação dos professores na atualidade, por exemplo: como colaborar para o ensino de crianças que apresentam necessidades educacionais especiais (por deficiência) em classes comuns? Como contribuir para ressignificar as práticas educativas da professora com sua turma? Neste âmbito, uma série de estudos e pesquisas (Bueno, 2011; Gonçalves, 2003; Jesus, 2005; Almeida, 2004) têm procurado superar a relação linear e mecânica entre o conhecimento técnico-científico e prática docente, proposta pela racionalidade técnica, que revela que o professor, para além dos limites e da insuficiência da concepção técnica de ensino, tem buscado novos instrumentos, teóricos e práticos, capazes de superar a complexidade dos desafios da profissão. Diante deste fato, Jesus (2005, p. 49) relata que: “educar na diversidade pressupõe considerar a existência de movimentos sócio-históricos de constituição de sujeitos e a complexidade de sociedades que marcam/constroem conceitos e concepções que se configuram em [criança com deficiência]”.
Para Tardif (2000), os conhecimentos elaborados e mobilizados pelos professores são vistos pela literatura como um processo contínuo, composto por diferentes etapas (pré-formação, formação inicial, iniciação à docência e formação permanente). Neste sentido, o processo de constituição dos saberes docentes é, a priori, uma construção social, que se encontra na interface entre o individual[1] e o social, visto que os estudos sobre os saberes não podem ser separados de outras dimensões do ensino, do trabalho realizado diariamente pelos professores, tampouco de contextos mais amplos do estudo da profissão docente, de sua história recente e da situação dentro da escola e da sociedade.
Diante da busca e da construção de novas/outras possibilidades de lidar com a diversidade, cabe aos profissionais da escola desenvolverem ações colaborativas que priorizem o “saber-fazer”, a fim de promover um trabalho orientado por práticas pedagógicas compartilhadas, seja entre a professora e as crianças da turma ou no movimento de grupo de estudo/reflexão, como instituição de criar espaços para reflexão.
Visando implementar práticas que ampliassem o conhecimento sobre as questões que desafiavam os profissionais no contexto escolar, nos aprofundamos na proposta de estudo e reflexão. Durante a pesquisa, foram realizadas trocas de experiências bem-sucedidas com o grupo, buscando motivar os profissionais a (re)pensarem sua prática pedagógica, com o foco em atender à diversidade, em vez de um modelo hegemônico de estudante. Esse processo permitiu expandir a compreensão sobre o trabalho colaborativo, refletir sobre uma escola que se comprometa com a construção de uma educação inclusiva, analisar o que o grupo já sabia e o que os profissionais precisavam aprender, bem como os recursos e apoios que poderiam auxiliá-los.
Nesse contexto, a pesquisa desempenhou um papel fundamental na articulação de estratégias e no fortalecimento das relações pedagógicas, integrando diferentes saberes para atender à diversidade. A ideia de buscar ampliar a visão sobre o trabalho colaborativo e a construção de uma escola inclusiva, nesses movimentos de formação, foi essencial para avançar no processo de inclusão, uma vez que essas análises contribuíram para a integração de diferentes saberes e práticas, proporcionando uma abordagem mais abrangente e eficaz no apoio as crianças com diversas necessidades.
Reitera-se que a busca pela integração de saberes emerge nos questionamentos da equipe multidisciplinar, por meio de seus anseios em realizar um trabalho em conjunto com a equipe escolar, buscando, através da reflexão, instituir espaços de diálogos com os professores e as crianças, visando um maior conhecimento/aproximação com eles.
Neste contexto, as redes de articulações colaborativas entre crianças, professores e equipe multidisciplinar configuram-se como algo essencial na concretização de práticas educativas (Jesus, 2006), posto que a equipe passa a reconhecer o seu papel como profissional que pode colaborar com a escola, no que concerne à implementação de propostas pedagógicas que atendam a diferentes sujeitos. Entretanto, tais profissionais se sentem desafiados a promover reflexões/inquietações e, inclusive, novas expectativas de atuação do grupo.
Nesse processo, a partir do alinhavo de várias conversas direcionadas para a necessidade de realizar ações que levassem em conta as “peculiaridades locais” de cada um, nos diferentes contextos entre a professora e a turma, buscamos, pela via do trabalho colaborativo-crítico, instituir outras/novas/diferentes formas de atuação da equipe multidisciplinar no trabalho cotidiano. Em síntese, passamos a investir no processo de formação-intervenção com o grupo de crianças, propondo algumas alternativas para as questões apresentadas e investindo em ações concretas, junto ao professor, pensando e colaborando com ele no “fazer” pedagógico, bem como intensificando as ações que possibilitassem a nossa participação efetiva nos projetos com a turma de crianças.
Desse modo, um dos primeiros trabalhos apontados pela equipe multidisciplinar foi a possibilidade de conhecer as diferentes realidades e necessidades das turmas. Assim, os profissionais iniciaram um trabalho com as crianças do 1º ano B, com o projeto Trabalhando a diversidade através de histórias em quadrinhos.
Uma situação em especial nos chamou a atenção. Na sala da turma, a professora desenvolvia uma atividade na qual as crianças deveriam colocar em sequência alguns fatos da história em quadrinhos. Neste ínterim, uma menina que a chamávamos de Peticha tentava, junto à professora de apoio, desenvolver a atividade proposta. No entanto, assim que os profissionais da equipe multidisciplinar chegaram, Peticha levantou-se de sua cadeira, direcionando o olhar para eles e manifestando muita satisfação por tê-los ali. Enquanto isso, a pesquisadora acompanhava esses movimentos, tentando analisar as questões engendradas naquele espaço. Em seguida, a psicóloga procurou a pesquisadora e disse: “Você viu o comportamento da Peticha? Parece que, com a nossa chegada, ela está querendo nos dizer: ‘Vocês estão aqui por causa de mim? Estão aqui para me ajudar?’”
Destaca-se que, através desse diálogo, a psicóloga estava nos alertando para o fato de que Peticha estava se sentindo importante, amada e valorizada nas suas produções por outras pessoas que não eram do seu convívio, da sua rotina. Ao mesmo tempo, a situação nos ajudava a pensar sobre nossas representações e percepções a respeito do processo da aprendizagem.
Frente a essa questão, acreditamos que é preciso trabalhar com o professor, para que ele consiga romper preconceitos, aceitando ser “desestabilizado, surpreendido, contradito” (Meirieu, 2002, p. 198). Por outro lado, de acordo com Jesus (2006), isso exige das equipes pedagógicas, das equipes de gestão e das equipes multidisciplinares atitude no que diz respeito a ações de colaboração-crítica, para que todos sejam acolhidos/compreendidos em seus saberes-fazeres. Assim, nos propusemos a promover alguns movimentos, que foram incorporados em dois momentos simultâneos: 1) discussão das situações já vivenciadas pelos profissionais, busca por conhecimento/entendimento das atitudes, experiências, percepções, necessidades e possibilidades de envolvimento dos profissionais no cotidiano das questões de salas de aula; 2) planejamento, discussão e elaboração do projeto, a partir de reflexões sobre intervenção e ações a serem desenvolvidas nas salas.
Em um dos encontros foi discutido sobre as situações que nos possibilitavam analisar as concepções, atitudes e percepções dos profissionais da escola a respeito do atendimento à diversidade. Um ponto bastante discutido pela equipe multidisciplinar foi: como realizar as intervenções com pequenos grupos? Com algumas crianças ou com todos da sala? E onde (espaço físico)? Acabamos decidindo que as intervenções seriam realizadas com toda a classe em grupos de dez crianças.
No total, foram realizados seis encontros, com duração de duas horas cada um. As abordagens emergiam a partir das necessidades elencadas pelas crianças, bem como das reflexões e avaliações com o conjunto de profissionais que lidavam diretamente com eles (pesquisador, professor da sala, professor de apoio, equipe multidisciplinar). Sendo assim, foi desenvolvido um trabalho colaborativo-crítico com crianças e professores, por meio do projeto Revisitando o 5º ano B.
O projeto teve como objetivo inicial a escuta das crianças, entretanto, passou a ser também uma oportunidade de trabalhar a escuta ouvida/entendida pelos professores sobre elas, ou seja, refletir sobre o que estava sendo feito pelos professores a respeito delas. À medida que se realizava um trabalho com as crianças, buscávamos analisar como era interpretada essa escuta pelos professores, no processo de levá-los a autorreflexão sobre suas práticas. Os episódios que se seguem mostram essas conexões, de acordo com (Devens, 2007, p.156): “A psicóloga havia trabalhado na turma do 5º ano uma história intitulada Os Xulingos (Lucado, 2001). A história tratava da construção de marcas e preconceitos, produzidos por uma sociedade que excluía o que fugia do padrão de normalidade”. No momento do planejamento, a psicóloga leu a história para o grupo, tentando se ater aos olhares e as ações das crianças do 5º ano B:
Os xulingos eram considerados uma gentinha feia, pequena, diferente dos outros. Uns tinham narizes bem grandes; outros olhos enormes. Alguns, eram altos e outros… Todos os dias os xulingos só faziam uma coisa: colocavam adesivos uns nos outros. Cada xulingo tinha uma caixinha com adesivos dourados, cinzentos, em forma de bola. Os mais bonitos […] ganhavam estrelas […] os mais feios ganhavam bolas cinzentas, os que tinham talento também ganhavam estrelas (Diário de bordo – Devens, p. 159).
Figura 1 – Xulingos com marcas identificadas
Fonte: Lucado, 2001, páginas 12 e 14.
A partir da leitura da história, a professora trouxe reflexões para o grupo com base nas seguintes questões: será que quando utilizamos o sistema de compensação (referindo-se à prática realizada pela professora Esperança, por sugestão da pedagoga de dar estrelas às crianças como recompensa aos seus comportamentos), não estamos produzindo marcas nesse sujeito? Será que não estamos reforçando os estigmas atribuídos a eles?
O debate provocado pela referida história permitiu ao grupo perceber a necessidade de aprofundar a reflexão a respeito das práticas com as crianças, levando a pensar na necessidade de “desmonte” do projeto de reforçamento desenvolvido naquela turma. Ainda a esse respeito, alguns dias após as discussões proferidas, a professora Esperança, em um dos nossos encontros na sala da turma, disse:
Quero te contar uma coisa… Perguntei aos alunos se eles achavam que precisavam das estrelas [tinha um bom tempo que não lembravam delas] e o que realmente elas representavam e o que gostariam de fazer com elas. Sabe o que eles disseram? Que as verdadeiras estrelas eram eles, que não precisavam delas para nada e deram os encaminhamentos. Vamos usá-las para enfeitar nossas árvores de Natal (Professora Esperança).
A respeito dos discursos das crianças a psicóloga, junto com a professora da sala, nos disse que a história trabalhada, de alguma forma, também havia afetado aqueles indivíduos, pois, ao perguntar como os xulingos haviam se libertado das marcas, uma criança respondeu:
Eles decidiram acreditar que eram capazes. Assim como está acontecendo com nossa turma. Estamos acreditando na nossa capacidade, tentando enxergar o que temos de bom, tentando descobrir outras coisas em nós. Estávamos na mesma situação que os xulingos, mas, hoje, esses pontinhos estão caindo, não precisamos mais de estrelas, pois as verdadeiras estrelas somos nós (Diário de bordo – Devens, p. 161).
Figura 2 – Xulingos descobrindo seu potencial e valor
Fonte: LUCADO, 2001, páginas 26 e 30.
A tarefa de (re)inventar o cotidiano, a partir do conhecimento que se tem do espaço-tempo, é o grande desafio quando pensamos numa proposta de ensino que favoreça a “todos” os indivíduos. Desse modo, responder aos problemas e dilemas no cotidiano escolar, exige “do professor a consciência de que sua formação nunca está terminada e das chefias e do governo, a assunção do princípio de formação continuada” (Alarcão, 2001, p. 24).
Nessa perspectiva, requer que todos se envolvam na construção de espaços e ações que integram a vida escolar: desafios enfrentados e a serem enfrentados, expectativas, necessidades, interesses. Assim, tomando o cotidiano da professora junto da turma, como “palco”, mergulhamos na proposta de estudos/reflexão juntos aos profissionais da escola como possibilidade de investimento no processo de reflexão crítico-colaborativa das práticas pedagógicas dos profissionais.
Figura 3 – Formação de professores: interação e potencialização da aprendizagem
Fonte: Acervo pessoal, 2007.
Resultados ou o que ficou: reflexões sobre a prática colaborativa na construção da educação inclusiva
Uma questão que se destaca até aqui é a compreensão de que a formação continuada em serviço, particularmente por meio de estratégias como o trabalho colaborativo, é essencial para o desenvolvimento profissional dos educadores, pois propicia a reflexão crítica e a aquisição de novas competências, fundamentais para a melhoria contínua das práticas pedagógicas e para o enfrentamento das demandas educacionais contemporâneas. Esse processo pode possibilitar, aos professores e às professoras, o desenvolvimento de novas teorias e práticas pedagógicas dentro do processo ensino-aprendizagem.
Na referida escola promoveram avanços significativos na fluidez da pesquisa, possibilitaram autorreflexões dos processos vivenciados com o conjunto escolar e o fortalecimento da equipe nas ações de caráter formativo com grupo e da equipe político-pedagógico, garantindo sua atuação efetiva no contexto da educação inclusiva e, principalmente, sobre práticas pedagógicas efetivadas desenvolvidas entre a professora e a sua turma. Muito mais que pensar “o que ensinar as crianças”, os profissionais direcionaram suas ações para pensar sobre os conhecimentos que precisariam disponibilizar para potencializar a aprendizagem de todos. Esse posicionamento nos coloca na condição de ensinante, mas, sobretudo, de aprendentes, por possibilitar aos profissionais verem a escola para além de um lugar de trabalho, mas como um espaço para aprendizagem institucional e organizativa.
Assim sendo, pensamos que os professores e a equipe multidisciplinar em seus movimentos trilharam caminhos significativos na busca por práticas inclusivas no contexto escolar. Contudo, e necessário considerar que qualquer avanço deve ser construído de forma colaborativa, processual e contínua com os protagonistas da escola, para que, de fato, essas práticas atendam às demandas reais dos sujeitos escolares.
Referências
ALARCÃO, M. I. (Org.). Escola reflexiva e a nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.
ALMEIDA, M. L. Formação continuada como processo crítico-reflexivo-colaborativo: possibilidades de construção de uma prática inclusiva. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004.
BUENO, José Geraldo Silveira. Educação especial brasileira: questões conceituais e de atualidade. São Paulo: EDUC, 2011.
DEVENS, Wirlândia Magalhães. O trabalho colaborativo crítico como dispositivo para práticas educacionais inclusivas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
GONÇALVES, A. F. S. A inclusão de alunos com necessidades educativas especiais pela via do trabalho coletivo. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2003.
LUCADO, Max. Você é especial. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001.
MEIRIEU, P. A pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Tradução de Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.
TARDIF, M.; RAIMOND, D. Saberes, Tempo e Aprendizagem do Trabalho no Magistério. Educação e Sociedade, Campinas, n. 73, p. 209-244, dez. 2000.
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[1] O autor defende que o saber é uma construção individual, por considerar que o saber do educador é o saber associado à pessoa dele, à sua identidade, experiência de vida e história profissional (Tardif, 2002).

DEVENS, Wirlândia Magalhães. Trabalho colaborativo: sentir, ver e fazer na educação inclusiva. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 8, Número 33, Janeiro – Abril, 2025, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
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