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Conversa com as psicólogas e psicólogos do Projeto PAS, da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte

Evento de Formação oferecido pelo Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (CAPE) – Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 07/01/2025

Liberia Neves

Libéria Neves

Professora da Faculdade de Educação da UFMG – na graduação e no Mestrado Profissional em Educação e Docência (PROMESTRE). Psicóloga Escolar, mestre e doutora em Educação pela FaE UFMG.

Contato: liberianeves@gmail.com

Caras psicólogas e psicólogos do Projeto PAS, da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte,

Foi com muita alegria que aceitei o convite para estar hoje com vocês e assim fazer parte deste momento histórico, em que se começa a efetivar um fato inédito – um projeto vinculado a uma política pública de garantia da presença de um(a) profissional da psicologia (e do serviço social) em cada escola da rede pública municipal de Belo Horizonte. Sem, obviamente, romantizarmos este fato, uma vez que se trata de um momento de desbravamento, de tensões, de luta, de incertezas. No entanto, vocês, por motivos variados, aceitaram fazer parte e até aqui permaneceram, contribuindo com o que poderá ser esta política.

Ao longo da minha fala, irei aos poucos me apresentando a vocês, contando um pouco a minha história, minha trajetória, apontando o lugar de onde eu falo e, a partir dessa rota, abordarei o campo da Psicologia da Educação, o universo da escola e destacarei alguns elementos os quais considero pertinentes à atuação de vocês no Projeto PAS.

De fato, eu gostaria mesmo era de estar com vocês presencialmente, de ter a oportunidade de ver os olhares, de ouvi-las e ouvi-los, de sentir as questões de cada escola onde estão atuando. O encontro remoto se trata de uma alternativa que já nos trouxe muito adoecimento pelo excesso do seu uso, especialmente a partir da pandemia da Covid 19. Mas é preciso reconhecê-la também como uma boa solução, quando queremos falar com 300 pessoas simultaneamente, uma vez que o tempo, na atualidade, se tornou artigo raro, tendo em vista o modo de vida que absorvemos – modo em que as palavras de ordem são: velocidade, produtividade, sucesso, engajamento, empreendedorismo, regulação das emoções, resiliência; da ansiedade como algo naturalizado; da medicalização da tristeza; das postagens que comprovam a felicidade nas redes sociais, seguidas da expectativa pelo número de visualizações.

E certamente que tudo isso também confluiu para o fato de vocês estarem hoje nas escolas. Essa virada de século tem nos mostrado que vivemos um momento diferente, com novos adoecimentos psíquicos. É importante dizer que a Lei 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica, depois de 20 anos de tramitação, foi promulgada após o ataque ocorrido à escola de Suzano (SP) e à escola de Caraí (MG), precedidos pelo ataque à escola de Realengo (RJ), em 2011, e pelo menos mais sete ataques, de acordo com o Relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental” (2022). Não sabemos se vivemos um momento pior (se é que isso pode ser mensurado!), mas um momento diferente, novo. A isso somamos um “tiro de misericórdia”: a pandemia – um divisor de águas que alterou a relação com o tempo, alterou o valor simbólico das instituições, marcou radicalmente uma geração de crianças e de adolescentes.

Tudo isso trouxe uma demanda incomensurável para a escola – o único espaço da cultura em que todas as crianças e adolescentes devem frequentar, por direito, assegurado enquanto dever do Estado e da família. Além de tantas demandas, a escola passou a ser fortemente atacada nos últimos tempos, considerada por alguns extremistas como “perigosa”, devido a seu suposto poder de “doutrinação” em massa.

Depois disso, no espaço escolar, tudo parece estar no superlativo: professoras e professores cansadíssimos, famílias perdidíssimas, crianças e adolescentes muitas vezes agitadíssimos, irritadíssimos, desanimadíssimos, desinteressadíssimos.

Mas a escola segue “de pé”, sustentando tudo isso e agora em tempo integral, pelo menos nas 173 unidades de Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte.

É preciso dizer que Belo Horizonte há muito vem ocupando um lugar de vanguarda na implementação de políticas de educação. Historicamente, esta rede e seus atores acumulam muitas ações que se tornaram referência para outras redes. Inclusive no que concerne à luta. Os trabalhadores e trabalhadoras em Educação de BH protagonizaram movimentos históricos, do final da década de 1970 em diante, conquistaram direitos muito importantes, inclusive sustentando uma organização sindical forte, que hoje mantém uma gestão colegiada que demonstra uma tradição de luta e de resistência. É importante conhecer esta história. Inclusive porque psicólogos/as e assistentes sociais que atuam nas escolas passam a compor a classe de trabalhadores/as da educação.

Outro episódio histórico desta rede diz respeito à Escola Plural, implantada na década de 1990 apresentando uma proposta inclusiva que, mesmo depois de extinta, plantou uma cultura da inclusão. Antes mesmo da implementação da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, a rede de BH já praticava a educação das pessoas com deficiência na escola comum, por meio de Diretrizes para a Educação Inclusiva. Não necessariamente garantindo a aprendizagem a todos/as, mas já garantindo o acesso e a permanência – primeiro passo para a garantia da aprendizagem.

E agora, novamente de certa forma na vanguarda e, diferentemente de boa parte das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, ensaia a possibilidade de efetivar a Lei 13.935/2019, garantindo, por meio de um projeto piloto, a presença de uma dupla de profissionais – da psicologia e da assistência social – em cada escola.

Eu sou fruto da rede municipal de BH. Estudei no colégio Marconi, numa época em que a educação escolar não era para todos e todas. Digo isso porque eu tive que fazer prova de seleção, aos 11 anos de idade, para disputar uma das vagas; e naquela época, tínhamos que comprar os livros (que não eram bons, aos olhos das crianças e adolescentes), comprar o lanche diário, entre outras coisas. Ou seja, a escola era para uma classe média, branca, de tradição escolarizada. Alguns dos meus colegas possuíam significativo capital econômico. E a grande maioria (com ou sem grande capital econômico) certamente usufruía de elevado capital cultural. Esse é um conceito da sociologia da educação, especificamente cunhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que nos ajudou a compreender as desigualdades entre classes sociais e a explicar o desempenho escolar dos indivíduos, destacando a escola como espaço de reprodução da desigualdade.

Eu não vim de uma família com capital econômico, mas eu herdei um bom capital cultural. Meu pai era escritor, poeta, cursou até o nível superior, algo raríssimo para a geração dele e, como funcionário público, foi bibliotecário no colégio Imaco e depois no Marconi, onde estudei da antiga 5ª série ao antigo 3º ano do 2º grau, entre 1984 e 1990. Foi nessa escola que tive minha formação política.

Recentemente, encontrei com meus colegas de turma do último ano e percebi como cada um acolheu a oferta daquela escola de modo diferente. Ou seja, um professor fala a todos/as, mas cada um/a escuta de uma maneira.

A psicologia me ajuda a compreender isso e a responder que a educação escolar é composta principalmente por processos de aprendizagem e de ensino, mas também de um elemento que a psicanálise chama de transmissão – algo que escapa à nossa intenção e ao nosso controle. Transmite-se mais do que se deseja e muito menos do que se pretende. Numa relação pedagógica, que se transmite, de fato, é o desejo de saber sobre aquilo que se ensina. Por isso, sempre irá comportar algo de impossível, ou seja, de incapturável, fora do planejado, fora do controle. O outro – nosso objetivo na ação educativa – é sempre atingido de forma “não toda”. Desse modo, o ato educativo é sempre incompleto.

Sigmund Freud pontuou que, assim como governar e psicanalisar, educar é um ato impossível. O pai da psicanálise não disse que os processos escolares não possam ser bem-sucedidos, mas sim que estes não são exatos, na medida em que não temos total controle do que se passa no e com o outro. E, por isso, o ato de educar encarna um mal-estar constituinte – para os professores e professoras, que escolhem esta profissão não pela fama ou pelo dinheiro, mas pelo desejo de ensinar.

Já participei em muitas pesquisas realizadas em escolas da rede privada, escolas com projetos pedagógicos tradicionais, inovadores ou alternativos e posso dizer que mesmo onde há condições de trabalho bastante estruturadas, o mal-estar também está presente.

E a cada tempo, a educação lida com esse mal-estar de uma forma, de acordo com os recursos e os discursos disponíveis, quase sempre buscando uma resposta numa suposta falta presente no outro: “Ah! Esse menino não aprende porque ele tem uma família desestruturada”; “porque ele vive numa região muito vulnerável”; “porque os pais são analfabetos”; “porque ele é filho de mãe solteira”; “porque os pais são separados”; “porque ele é preguiçoso”; “porque ele quer tudo na mão”; “porque ele é criado com a avó”; “porque ele é DI”; “porque ele deve ter TDAH”; “porque ele deve ter TOD”; “TAG”; “TEA”.

Eu escapei de uma sigla na infância. Assim como quase todas as crianças, eu era bastante desassossegada. Mas como não tinha nenhum tipo de dificuldade motora, escapei da DCM – disfunção cerebral mínima, muito diagnosticada no final da década de 1970, cuja indicação, na época, era o uso de Fenobarbital (Gardenal). Hoje vigoram outras siglas e outras indicações farmacológicas – o Metilfenidato, Lisdexanfetamina, Atomoxetinaque, Imipramina, Guanfacine, Risperidona… Na infância do meu pai, os desassossegados eram corrigidos pela palmatória e pelo “joelho no milho”. Na dos meus irmãos mais velhos que eu, era a “bomba”, seguida de expulsão. Formas violentas de exclusão muitas vezes chanceladas por algum discurso científico e/ou religioso vigente. Hoje, acrescenta-se a estes, os discursos dos coaches, influencers, muitas vezes pronunciados nas redes sociais, principalmente o TikTok.

Escapei de um diagnóstico, segui a vida, sempre desassossegada e, assim como vocês, me graduei em psicologia. Cursei parte na PUC Minas e parte na Fumec, onde me formei, no final de 1996. Naquele momento, não havia tantas áreas de atuação para uma psicóloga recém-formada. E a clínica, espaço na época difícil de se estabelecer, sempre me soou solitária. O SUS e suas políticas de saúde mental estavam ainda sendo implantados.

Diante da necessidade financeira, fui trabalhar para bancos e, depois de adoecer psiquicamente num destes, fui trabalhar com arte. Troquei uma bolsa de estudos, em teatro, por serviços de psicóloga educacional na própria escola de teatro – na PUC Minas. Uma função que não existia. Mas eu busquei exercê-la. Hoje eu compreendo que o que fiz foi uma análise institucional, um diagnóstico psicossocial seguido da implantação do trabalho de uma psicóloga no contexto de uma escola grande de teatro. Passei a observar tudo, localizar os desafios da escola e depois propus trabalhar junto com os professores e professoras, acolher os/as estudantes que não raro se desorganizavam na experiência intensa que o teatro provoca. No começo os/as professores/as me olhavam torto, mas depois, a maioria, não todos/as, reconheceu os benefícios do trabalho para toda a comunidade da escola. Eu não recuei porque precisava da bolsa e tomei gosto pelo potencial inovador, de invenção, que a proposta comportava.

Quando saí, passei num processo seletivo simplificado para ser psicóloga educacional em uma das unidades de uma ONG que atuava em algumas comunidades de BH, em parceria com escolas municipais, com outras ONG’s e com o programa “6 a 14” da PBH, hoje incorporado pelo Programa de Atendimento Educacional Integrado (PAEI). Ali eu aprendi muitos limites da atuação do/a psicólogo/a numa instituição educativa.

Quanto eu cheguei, os/as professores/as e as instituições parceiras esperavam que eu fizesse atendimento clínico de crianças e adolescentes considerados “problemas”. Já havia uma lista de nomes me aguardando, pois o Centro de Saúde não dava conta da demanda dos encaminhamentos.

Logo de cara, percebi que isso não seria possível. Principalmente porque nessa lógica institucional, não conseguimos estabelecer um lugar de transferência com os sujeitos – crianças e adolescentes, que possa configurar um atendimento clínico. A não ser que estejamos pontualmente na instituição para este fim. Mas podemos acolher urgências subjetivos, realizar escutas pontuais daqueles/as que nos procuram por algum motivo.

No entanto, não raramente somos convocados pela instituição no lugar de quem irá conversar com estudantes, mesmo contra sua vontade, quando cometem algo fora das regras. Assim, a gente fica no lugar da norma, da ordem, do mestre. E esse não é o lugar do profissional da psicologia. Eu considero que seu lugar, sobretudo na perspectiva da Lei 13.935/2019, seja o da e escuta, do acolhimento e de intervenção. Algumas vezes, de intervenções pontuais, no cotidiano, sutis, diante de oportunidades e contingências (e isso é muito potente!). Outras vezes, um lugar de escuta e intervenção mais abrangentes, a partir de um diagnóstico e de um plano de ação pactuado com a instituição.

A partir dessa experiência a que me referi acima (que foi riquíssima em minha trajetória!) e em outras que se seguiram, concluí que cada instituição educacional, mesmo pertencente ao mesmo grupo ou rede, pode ser pensada como um sujeito, inclusive com seus sintomas, com seu modo singular (e às vezes torto) de funcionamento. E assim como um sujeito psíquico, nem sempre com demanda de mudança. Nesse sentido, se o/a psicólogo/a, como parte integrante da equipe, entra no sintoma instituição, o trabalho dele/a muitas vezes perde o efeito e o sentido.

Na última instituição educacional que trabalhei como psicóloga, eu considero que entrei no sintoma – por inexperiência, pouca reflexão, ingenuidade ou mesmo por não ter interlocutores (outros/as psicólogos/as escolares). Me vi reclamando dos (im)possíveis do espaço e então decidi sair.  Fui passar a fazer outra coisa no campo da psicologia educacional – investigar: “como uma instituição escolar, além de acolher, oferecer segurança, ser um lugar de vida, pode também ensinar a todos?” “Como os conflitos podem ser mediados nesse espaço naturalmente de conflitos – a escola –, uma vez que ele abriga hoje, depois de muita luta, a toda diversidade?“

Hoje o acesso à escola (não ainda à aprendizagem) é de fato para todos. E tudo que é para todos, obviamente, traz inúmeros desafios.

Eu estive no colégio Marconi, em 2006, para realizar uma pesquisa 15 anos depois que saí de lá como estudante. E vi uma escola muito diferente da que eu estudei. Vi uma escola muito melhor! Ali havia crianças e adolescentes negros e negras, crianças e adolescentes moradores de várias periferias e de regiões mais centrais, crianças e adolescentes com deficiência, com condições de sofrimento mental, em cumprindo medida socioeducativa, filhos e filhas de famílias migrantes e/ou refugiadas.

E todas e todas com garantia de alimentação balanceada, na escola; acessando material didático qualificado, gratuitamente, selecionado pelos professores e professoras da rede; com o quadro de aulas completo; usufruindo do Programa Escola Integrada por meio da oferta atividades culturais educativas no contraturno, incluindo atividades externas e passeios; participando de projetos de literatura realizados por profissionais da biblioteca especializados; alguns contando com atividades de reforço da aprendizagem; outros/as contando com monitores/as em sala, intérprete de Libras e atendimento educacional especializado. Mas os professores e professoras ali diziam: “esta escola já foi boa; hoje ela piorou muito!”

Piorou como? Por que piorou? Até a formação de professores/as melhorou. Diferentemente de três décadas atrás, hoje, praticamente todas e todos que atuam no 2º e 3º ciclo do ensino fundamental (pelo menos na rede de BH) são licenciados/as em suas áreas de atuação, as professoras do 1º ciclo são formadas em pedagogia ou curso similar e as da Educação Infantil também apresentam formação equivalente. E boa parte desse corpo docente conta ainda com formação em nível de pós-graduação lato sensu e até, em alguns casos, stricto sensu.

Mesmo com este quadro, ainda acumularmos muitos desafios para a garantia de acesso à aprendizagem, os quais tem raízes na nossa história colonial, de séculos de escravidão, no racismo estrutural e na desigualdade socioeconômica. Estes fatores contam muito! É preciso lutar por justiça social ao mesmo tempo em que é preciso fomentar a escolarização de qualidade para crianças e adolescentes apesar das injustiças.

Como formar profissionais da educação, no Brasil, conscientes dos efeitos dessa desigualdade, sem que estes construam a ideia de que as pessoas mais empobrecidas terão dificuldades de aprendizagem¿ Eu fui engrossar o time que decidiu se dedicar a isso. Busquei ingressar na carreira acadêmica a partir do programa de pós-graduação em “Educação: conhecimento e inclusão social”, da UFMG, na linha de pesquisa de “Psicologia, psicanálise e educação”. No mestrado, foquei no estudo de dificuldades escolares como produção subjetiva; e no doutorado, defendi uma tese referente à mediação de conflitos na escola, a partir de uma interlocução com os campos da psicanálise, da psicologia e do teatro.

Em 2004, iniciei minha atuação como professora de ensino superior em cursos de licenciatura, responsável pela disciplina obrigatória “Psicologia da Educação”, que visa apresentar conhecimentos desse campo que embasam os processos da aprendizagem e ensino. Iniciei minha carreira nos cursos de licenciatura em física e em matemática, na PUC Minas; em seguida, lecionei por quase uma década no curso de licenciatura em artes plásticas, na escola Guignard, da UEMG; e, nos últimos 9 anos, em todas as licenciaturas na Faculdade de Educação da UFMG, incluindo o curso de pedagogia.

Não sei se vocês sabem o que compõe a grade dos cursos de formação de professores/as para a educação básica – além dos conteúdos específicos da área de formação, eles realizam estágios de observação nos níveis de ensino onde irão atuar e discutem metodologia de ensino; além disso, dependendo da faculdade ou universidade, discutem política educacional, história da educação, didática, sociologia da educação e fundamentos da educação inclusiva (essa temática se tornou de discussão obrigatória, nas licenciaturas, a partir de 2015). Mas, em todos os cursos de licenciatura (em física, química, ciências biológicas, ciências sociais, filosofia, geografia, história matemática, letras, dança, teatro, música, artes visuais, educação física, além, obviamente, do curso de pedagogia) discute-se obrigatoriamente conhecimentos do campo da Psicologia da Educação. E o que os professores e professoras em formação acessam nessa disciplina?

A título de exemplo, trouxe a ementa do plano de curso da disciplina na Faculdade de Educação da UFMG.

Eu trabalho o conteúdo desta ementa com pelo menos 160 futuros professores e professoras, todos os anos.  E para me manter atualizada no assunto, como a maior parte dos/as docentes de universidades públicas, realizo e/ou oriento pesquisas sobre o tema, muitas delas desenvolvidas em escolas da rede municipal de BH, assim como trabalho em projetos de extensão, atendendo a adolescentes desta rede, coordeno curso de formação continuada de professores – o Laseb, especialmente no campo da Educação Especial e Inclusiva, que já realizou 7 ofertas para esta rede. Atuo no mestrado profissional em Educação e Docência – um mestrado que acolhe principalmente professores/as e demais profissionais da educação básica que querem investigar a prática e pensar recursos diante dos desafios da educação contemporâneos.

É exatamente por ter atravessado este percurso, que eu acho que posso dizer com segurança que faço muita ideia dos desafios que vocês estão vivenciando nessa empreitada de construir uma política pública de educação referente à presença de uma/a profissional da psicologia na educação básica. Desafios estes, originados de muitos fatores, alguns dos quais já abordei aqui nas entrelinhas. Mas quero destacar 4 deles:

  • o 1º, eu considero ser a formação acadêmica em psicologia, que de modo geral, não contempla de forma satisfatória o campo da educação, em especial, o universo da escola;
  • o 2º desafio considero ser a herança histórica do saber científico da psicologia nas práticas educativas, ligada à lógica do ajustamento, da homogeneização, da segregação, do foco na criança-problema;
  • o 3º, diz do tempo em que vivemos, no qual parece trazer uma reedição da lógica de patologização do comportamento e da aprendizagem;
  • o 4º desafio que destaco é a fragilidade do vínculo profissional, específico dessa proposta da PBH, uma vez que não houve concursos ainda e não sabemos se o poder público continuará mantendo o Projeto PAS como política pública.

Referente ao primeiro desafio, é preciso destacar que a Psicologia é uma ciência razoavelmente madura. No entanto, uma profissão e formação acadêmica de certa forma recentes (pouco mais de 60 anos). E embora a psicologia tenha uma história (no Brasil) muito atrelada à educação, os cursos ainda contemplam pouco este campo. Quando contempla, o foco até então esteve no desenvolvimento e aprendizagem, embora pareça que isso sofrerá modificações a partir dessa Lei 13.935/2019.

Só pra gente ter uma ideia, eu fiz um levantamento das matrizes curriculares de alguns destes cursos:

Cabe destacar um curso criado recentemente (2023) pela Universidade do Estado de MG, oferecido no campus da Faculdade de Educação (BH), o qual contempla uma ênfase da formação em Processos Escolares e Aprendizagem, conforme quadro a seguir.

A formação do/a psicólogo/a, em especial a que ocorreu até a promulgação da presente lei, de modo geral não oferece elementos significativos para o trabalho no espaço escolar, em especial na perspectiva prevista na lei. Mesmo porque, esta inserção específica, em especial no formato experimentado por BH, na prática, é algo muito novo. E mudar um curso, implantar um conteúdo numa formação, requer uma burocracia significativa junto aos órgãos reguladores. Não é do dia pra noite, nem de um ano pro outro. São anos, depende de resoluções nacionais etc.

As instituições de pós-graduação, em nível de especialização, são mais ágeis na construção de propostas de formação, mas, nem por isso, são qualificadas ou dão conta do recado. E não raro são oferecidas por instituições que buscam vender formações aligeiradas e superficiais, aproveitando-se de uma demanda, muito mais do que preocupadas com uma formação qualificada.

Por isso, o projeto PAS tem um ponto que é de invenção, por haver poucos precedentes que norteiam a experiência. E, mesmo tendo a proposta geral, orientadora, cada dupla, cada psicólogo, acaba tendo que construir sua prática.

Alguns e algumas de vocês, eu acredito, se acomodaram rapidamente à escola, em função de outras experiências institucionais, ligadas a outras políticas públicas. Mas muitos/as devem estar chocados/as com a complexidade desse universo. E não digo apenas referente aos/ às estudantes e suas famílias, mas ao próprio grupo de gestores/as, docentes, terceirizados/as do PEI, do apoio à inclusão e serviços gerais. É uma engrenagem muito complexa, articulada em setores, hierarquias, múltiplos projetos, tempos, espaços, siglas, documentos, relatórios, protocolos, planilhas, avaliações, complexidades burocráticas, que asseguram o funcionamento, mas que também minam a possibilidade de vigorar os elementos essenciais que constituam nossa profissão – a palavra/ a escuta. Como ser mais um/a ali? E promover, com meu colega/ minha colega AS, uma atividade efetiva?

Mesmo com algumas diretrizes traçadas pela diretoria à qual se vincula ao projeto, nesse mundão que é cada escola, no “bololô” de cada uma, a prática, muitas vezes se assemelha a “cavar um túnel com as mãos”. E cada escola é um mundo, não só por conta do território onde ela se localiza, mas pela lógica que se constitui a partir dos seus atores.

No universo de pesquisa, já me deparei com escolas localizadas em territórios muito áridos, tensos, vulneráveis, mas, com gestores/as que conduziam o trabalho com muita leveza, com modos de funcionamento muito fluidos, em parceria com a comunidade e articulado em rede. Bem como já me deparei com escolas localizadas em espaços privilegiados, no entanto, enfrentando questões dificílimas que dividiam o corpo docente, inviabilizando o trabalho da gestão.

Pesquisas com adolescentes da rede já nos apontaram situações cotidianas de experiência de racismo na escola, por parte do corpo docente; e pior, o corpo docente não tinha ideia de que o racismo estava presente na transmissão.

Me deparei com uma escola recentemente em que o corpo discente era composto de 95% de crianças e adolescentes negros/as e o corpo docente de 98% de adultos brancos/as, com questões muito visíveis fruto desse percentual desigual e não percebidas pelo grupo.

Ainda na perspectiva do sintoma que se produz na singularidade de cada instituição, as pesquisas localizam escolas que criem impasses na transmissão porque têm cristalizadas ideias muito negativas sobre o território; escolas que excluem as famílias das formas mais sutis; escolas que recusam os estudantes, de formas sutis e mesmo muito explícitas; territórios que recusam o que vem da escola; estudantes que recusam o saber que vem dos professores.

Mas também as pesquisas apontam espaços que, por longo tempo, fluem de modo muito saudável. Também há estes. E não são raros. E o que eles têm em comum?

Do que eu pude constatar, duas coisas se destacam: uma é a abertura para o que os/as estudantes e a comunidade trazem, valorizando o que trazem, sem preconceitos (conceitos pré-concebidos) ou rótulos; e a outra é o espaço para a palavra, de todos os lados.

E porque algumas escolas conseguem essa proeza? Pois é! Infelizmente, não há fator que permita replicar o sucesso. Há uma coincidência no encontro de sujeitos alinhados com a perspectiva de educação como direito humano básico e de que o/a protagonista do processo de aprendizagem é o/a aprendiz, quem nos dá pistas sobre como ensinar. Que encaram o mal-estar por meio de invenções coletivas.

Isso tudo, e mais um monte de coisas, é o universo da escola.  A formação oferecida pelos cursos de graduação em psicologia não nos prepara para este trabalho em si. É preciso encontrar caminhos para que esta formação se dê no fazer.

Referente ao segundo desafio, considero ser a herança histórica do saber científico da psicologia nas práticas educativas – durante muito tempo ligada à lógica do ajustamento, da homogeneização, da segregação, do foco na criança-problema.

Alguns estudiosos da história da psicologia no Brasil destacam sua participação específica em alguns períodos, de modo geral, atendendo aos interesses da classe dominante, a partir da educação:

  • Período colonial – saberes psicológicos, vindos da Europa, estiveram alicerçados nos propósitos da colonização / aos interesses do império
  • Período do projeto de um Brasil moderno e industrializado – previa-se um “novo homem” que deveria ser “produzido” pela educação escolar. Ideias científicas do campo da psicologia foram apropriadas pela educação subsidiando práticas (testes psicológicos, seleção de alunos, homogeneização de turmas, entre outras); e compondo também a formação de professoras para atuarem no magistério de ensino primário, promovida nas Escola Normais, criadas século XIX e permanecendo ao longo da República, chegando até os anos 1940/50. Cabe destacar que, consequentemente, a classe trabalhadora, embora vítima, foi culpabilizada por suas dificuldades no processo escolarização, atribuindo a isso fatores orgânicos, psicológicos e sociais, deixando marcas ainda na atualidade.
  • Período do Escolanovismo (1930/1960) – fortemente marcado pelo surgimento e participação de psicologistas da educação que contribuíram para uma pedagogia nova, mais centrada na criança, embora ainda excludente.
  • Período entre 1962 – 1981 – regulamentação da profissão, da criação dos primeiros cursos de psicologia, da consolidação de uma psicologia educacional e do espaço escolar como um dos campos de atuação profissional. Muito embora tratando-se ainda de uma psicologia “ajustatória” e normalizadora no campo da educação, vigorando a ideia de fracasso escolar amparada em instrumentos importados da Europa e dos EUA, aplicados muitas vezes de modo equivocado em nossa população escolar.
  • Período 1981 – 1990 – período de crítica à psicologia educacional, especialmente por ela até então ter se centrado na ideia de criança-problema. Dá-se início a uma psicologia escolar crítica, compromissada com a transformação social, com os interesses da maioria da população. Foi o período da promulgação da Constituição do 1988, da Criação do SUS, do ECA, da atua lei de diretrizes e bases da educação, da psicologia social comunitária, do avanço de teorias da psicologia organizacional focadas na saúde do trabalhador e não nos interesses do capital, das lutas pela redemocratização do país, da luta antimanicomial.
  • E por fim o Período da virada dos anos 2000 – quando são apontados novos rumos para a psicologia da educação. Após a crítica e a reconstrução, surgem novas propostas e fundamentos teórico-práticos comprometidos com a emancipação humana. Passa a vigorar a perspectiva do ser humano como síntese de múltiplas determinações históricas, sociais, culturais. Assim como a crítica à patologização e medicalização da vida escolar muito incrementada pelo discurso médico farmacêutico e incorporado pelos profissionais da educação e pelas famílias. Trata-se hoje de uma psicologia que contribui na defesa da educação (como direito humano universal) pública, laica de qualidade para todos, todas e todes, sem discriminação ou preconceito.

Apesar dessa mudança de paradigma presente na virada do século, ainda paira na educação a herança da psicologia referente aos testes de QI, à criança-problema, à homogeneização, à segregação, à criminalização da pobreza. Diante disso, muitas vezes, o que se espera do psicólogo é que ele resolva “o que não funciona”, conserte o que está errado ou encaminhe para o conserto. Pois se não é isso o que ele pode fazer, então para que ele está aqui? Ou seja, este pensamento tem raízes históricas que precisam ser reescritas. E como fazer isso, num tempo que parece reeditar a patologização do comportamento?

Esse, para mim, é o terceiro desafio. Vamos lá! Vocês devem estar testemunhando um enxame de pedidos de encaminhamento de crianças para investigação de transtornos.

Na universidade, boa parte das estudantes de pedagogia já atuam como estagiárias em escolas da rede própria, auxiliando ou mesmo assumindo turmas de crianças pequenas (num esquema nítido de sucateamento de mão de obra). Chama a atenção como estas estudantes já trazem incorporado o discurso massivo do transtorno, do déficit, do laudo, da medicalização, referindo-se a crianças que, aos 3 anos de idade, têm dificuldades em ficar assentadas nas cadeiras, prestando atenção na professora. Pelo visto, estas têm sido muito rapidamente indicadas para a busca de laudo médico que poderá subsidiar suportes na sala de aula.

Não desconsiderando a importância da detecção de alguma questão que possa se beneficiar de uma intervenção precoce, há uma demanda por diagnósticos médicos, impulsionados por discursos de banalização dos transtornos, presentes inclusive nas redes sociais, onde são proferidos por não especialistas.

Certamente que o sofrimento no mundo contemporâneo – mundo do excesso, do gozo desenfreado, do desamparo – toma novas proporções diante da digitalização da vida, do imperativo do sucesso neoliberal. Mas é preciso discutir também a busca por anular a dimensão de sofrimento humano, constituinte, por meio de um CID e uma pílula.

A palavra, assim, parece perder seu valor de enlaçamento do sujeito com o que causa seu desejo. E como psicólogos/as, somos o tempo todo convocados/as a ações diagnósticas. E não raro convocados/as a ações de prevenção. O que seria prevenir um adoecimento psíquico, o sintoma, a violência? Talvez isso não seja possível. Mas, talvez, uma saída para prevenir o ato como primeira alternativa possa ser a abertura para o dizer do sujeito em sofrimento. E onde há espaço para esse dizer, que remete ao sujeito?

Bem, escola deve ser lugar de palavra. De enlaçamento, de escuta, ou seja, de subjetivação. Lugar tão necessário para a cultura e para os sujeitos. Lugar de direito, de ofertas simbólicas, de aprendizagem social, de trocas, de transmissão. Lugar de vida. Como incentivar esse fluxo da palavra em tempos de interrupção da escuta? Numa rotina insana imposta pela expectativa de sucesso?

Num dos programas de extensão do qual faço parte, o Brota, que acontece no contraturno escolar, no Centro de Referência das Juventudes, nosso foco é a escuta de adolescentes do 9º ano que têm apresentado sinais de rompimento do laço com a escola, ensaiando o abandono e a evasão. Muitos já desistiram de falar, mas a gente continua ali, disponível, enquanto andamos nos corredores, enquanto subimos uma escada ao lado deles e delas, durante uma oficina, durante o lanche… Sem criar muita expectativa, a palavra muitas vezes reaparece. E eles/as dizem do que os/as angustiam; do desinteresse pelo saber; da falta de desejo pelo futuro; da falta de sentido. E esse dizer, bem escutado, de maneira atenta, interessada, faz diferença.

Freud chamou isso de atenção flutuante, que deve estar presente na clínica, no setting analítico. Onde vigora a Suspensão de Julgamentos; Ausência de Expectativas; Ausência de Direcionamentos; Escuta Plena com Valorização de Detalhes que o sujeito apresenta, sem buscar a construção de um sentido que não seja do próprio sujeito.

A pesquisadora e psicanalista Rose Gurski, de porto alegre, cunhou o termo de escuta flâneur, quando investigou adolescentes no sistema socioeducativo. Fazendo referência à experiência presente na obra de Benjamin em menção à poesia de Baudelaire, que destacou o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, o investigador da cidade.

Segundo ela, ao nos colocarmos na posição de flâneur ao oferecermos a possibilidade de uma fala livre e mais implicada com o tempo de cada um, dentro da instituição, evocamos o surgimento de uma narrativa mais próxima das questões do sujeito.

Seria possível essa escuta e a atenção flutuante acontecer no espaço da escola? Seria o/a psicólogo/a quem estaria disponível a todos os/as estudantes? Seria possível o/a psicólogo/a transmitir aos/às docentes e gestores/as o que significa a escuta e fazer dela uma cultura da escola? Vocês acham possível alcançarem um pouco disso na atuação de vocês nas escolas? Acredito que em muitos casos sim, mas isso muitas vezes leva tempo.

E o quarto desafio que destaco é a fragilidade do vínculo profissional específico dessa proposta do projeto PAS, uma vez que não houve concursos ainda e não sabemos se o poder público continuará mantendo esta política de um/a profissional da psicologia e outro/a da assistência social, por escola.

Isso pode fazer com que muitos/as de vocês não se engajem tanto ou mesmo desistam. O que é uma pena, pois já temos notícias de efeitos muito significativos da presença de vocês em muitas escolas, das invenções que cada dupla tem conseguido fazer – juntas ou de modo mais individual e específico.

Fato é que o campo da psicologia educacional já está consolidado, com saberes próprios, dentro da psicologia científica. Da mesma forma, a área de atuação da psicologia escolar já está constituída. Mas a atuação do/a psicólogo/a, na perspectiva de política pública de educação, no limiar entre o saber clínico e o institucional, é inédita. A experiência do projeto PAS é uma entre estas experiências e que está por ser constituída em meio a muitos desafios, alguns dos quais apontei aqui.

Os conselhos de psicologia estão atuando ativamente, juntamente com outras instituições, para a garantia do cumprimento da Lei 13.935/2019. Mas é preciso nossa participação nas discussões.

Nesse mundo da correria, as organizações, as ações coletivas, movimentos sociais são desencorajados ou mesmo dissolvidos com muita facilidade, pois isso requer outro tipo de articulação com o tempo e com o outro, a qual não tem espaço na lógica neoliberal. Então, como vamos fazer?

Talvez precisemos divulgar os resultados do projeto, atentarmos para a adesão das famílias, das comunidades.

Dependemos de vontade política; da prioridade no uso de recursos públicos (a disputa de prioridades na educação é enorme!); dependemos de união e luta por parte da categoria; e dependemos do nosso desejo diante de tudo isso, o que nos convoca na dimensão do ato, da escolha.

NEVES, Libéria Rodrigues. Conversa com as psicólogas e psicólogos do Projeto PAS, da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 8, Número 33, Janeiro – Abril, 2025, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Foto de Sigmund na Unsplash

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