Indicação de leitura: O mundo é diferente da ponte pra cá: Crônicas do Solimões (org. Angélica Ferreira)
Eliéverton Cristiano dos Santos
Mestre em Letras: Linguagens e Letramentos (PROFLETRAS/FALE/UFMG); Licenciado em Letras – Língua Portuguesa (FALE/UFMG). É professor de Língua Portuguesa e Literatura na Escola Municipal Florestan Fernandes, Rede Municipal de Belo Horizonte, e professor de Língua Portuguesa e Literatura nos colégios da Rede Chromos de Ensino.
E-mail: timliteratura@gmail.com
O ensino de leitura e escrita ainda é um dos maiores desafios educacionais do Brasil. Metodologias tradicionalistas, muitas vezes, não são capazes de responder às demandas das crianças, adolescentes e jovens contemporâneos, os quais são cada vez mais dinâmicos, conectados de diferentes maneiras com a realidade em que vivem. Nesse contexto, faz-se necessária a utilização de metodologias e práticas pedagógicas que possibilitem não somente que o estudante realize o processo metalinguístico de nomear teorias e definir conceitos, mas é essencial que sejam estimulados a vivenciar e experienciar de modo prático o conhecimento que é compartilhado e construído na escola.
Na escola, sobretudo nas aulas de Língua Portuguesa, os estudantes devem ser convidados à leitura, interpretação e compreensão de textos de diferentes gêneros, épocas e com diferentes formas de usos da linguagem. Conforme assinala SOARES (2008),
(…) não podem a escola nem os professores optar por desenvolver habilidades de leitura de apenas um determinado tipo ou gênero de texto: a escola deve formar o leitor da ampla variedade de textos que circulam nas sociedades grafocêntricas em que vivemos, e são diferentes processos de leitura e, portanto, diferentes modos de ensinar; é preciso desenvolver habilidades e atitudes de leitura de poemas, de prosa literária, de textos informativos, de textos jornalísticos, de manuais de instrução, de textos publicitários etc. (SOARES, 2008, p. 31).
É nesse contexto que me proponho a compartilhar parte da prática pedagógica desenvolvida por minha colega de trabalho na área de Língua Portuguesa e companheira de jornada, professora Angélica Gonçalves, com seus alunos(as) do 9º ano do Ensino Fundamental, da Escola Municipal Florestan Fernandes, na Zona Norte de Belo Horizonte. A professora, ao ensinar a seus(as) alunos(as) o gênero crônica, tomou a decisão de desenvolver um trabalho a partir da leitura de textos reais da língua, de autores canônicos e de autores menos conhecidos, além de letras de músicas dos Racionais MC’s. A partir dessas leituras e das reflexões por eles despertadas, a docente realizou atividades práticas de escritas de crônicas com os estudantes, os quais foram convidados a, observando a realidade e o cotidiano do bairro em que vivem, fazer seus próprios registros do cotidiano, como cronistas.
Do trabalho realizado pela professora Angélica e sua turma, nasceu o livro O mundo é diferente da ponte pra cá: Crônicas do Solimões, que reúne as crônicas produzidas pelos estudantes nas atividades de produção escrita das aulas de Língua Portuguesa. As crônicas, presentes no livro, evidenciam o fato de que a condução do processo de ensino e aprendizagem de modo a oportunizar a leitura crítica de textos de diferentes gêneros e a apresentação de situações reais de leitura e de escrita proporcionam aos estudantes uma forma interessante e interativa de acesso ao conhecimento. Além disso, os textos que integram a obra tornam notável a constatação do desenvolvimento da proficiência linguística dos alunos(as), seja como leitores de outras crônicas e da realidade à sua volta, seja como produtores de diferentes textos e gêneros textuais.
“Ler, de forma autônoma, e compreender ― selecionando procedimentos e estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em conta características dos gêneros e suportes (…)” (BRASIL, 2017, p. 187), é o que defende a Base Nacional Comum Curricular. E é com essa mesma tônica que, com organização do livro com as crônicas produzidas nas aulas, a professora Angélica reafirma, com sua prática docente, o fato de que é fundamental desenvolver práticas de leitura e escrita que formem os alunos(as) como sujeitos autônomos no mundo e capazes de intervir na realidade em que vivem.
O livro, com os textos dos alunos(as), possui 14 crônicas, com olhares distintos sobre a banalidade do cotidiano de suas próprias vidas e sobre o dia a dia do bairro Solimões, no qual a maior parte dos adolescentes da escola vivem. Com olhar realista e reflexivo, por vezes lírico e encantado, cada crônica constrói uma reflexão sobre a vida comum, sobre a experiência mais trivial que não passa despercebida pelo olhar atento dos jovens cronistas, os quais fazem com que a vida cotidiana se transforme em escrita literária.
A maior parte das crônicas foi escrita em duplas, o que certamente requereu o exercício da escrita colaborativa e do diálogo, o que pode tornar ainda mais rica a experiência da produção textual. Além dos textos verbais, o livro conta também com fotografias ilustrativas que os alunos(as) poderiam apresentar junto a suas produções. Com exceção de “Momentos ruins”, “Córrego Tamboril”, “Virada de ano” e “A maravilhosa roda gigante”, todas as crônicas acompanham uma fotografia da imagem que inspirou os alunos(as) a escrever seus textos.
“Velha infância”, nome da crônica que abre a coletânea, traz um narrador que apresenta uma reflexão sobre a infância e memória, a partir da observação da vida pela janela do prédio em que mora. “Festival de pipas” e “A maravilhosa roda gigante” mostram o olhar encantado sobre possibilidades de diversão e brincadeiras típicas do universo infantil, tais como empinar pipas.
Outros textos do livro, como “A verdadeira liberdade”, “Momentos ruins”, “A realidade do meu bairro”, “A vida na rua”, “Por que tanto cachorro?”, “Córrego Tamboril”, “Reflexão sobre o crime” refletem sobre questões pessoais dos narradores ou de moradores do bairro ou sobre problemas sociais, econômicos, culturais e ambientais do espaço em que os adolescentes-autores vivem. Há reflexões sobre a criminalidade que afeta a vida de muitos jovens na comunidade e as possibilidades de contraposição à vida no crime. Há textos que refletem sobre o verdadeiro sentido da liberdade, outros lançam olhar sobre estados íntimos e emocionais das pessoas. Há reflexões também problemas socioambientais, tais como a poluição das águas fluviais e sobre os animais soltos e abandonados nas ruas, o quais se constituem como verdadeiros problemas à vida, à saúde e ao bem estar de todos os seres humanos e não humanos que convivem neste ambiente.
“A virada do ano”, “O céu na comunidade”, “Aquele pôr do sol”, “Rotina” apresentam uma visão lírica, encantada e reflexiva sobre o que há de mais comum na vida, como o olhar contemplativo sobre a própria rotina, o encanto e beleza do céu e o pôr do sol visto da comunidade da Mabel. Tal beleza é apresentada em duas crônicas, sendo que em “Aquele pôr do sol”, além da contemplação da beleza do crepúsculo, o narrador acompanha um mulher que chega do trabalho, com olhar cansado e semblante triste, mas que sorri levemente, quase como um alívio ao ver a exuberância do sol poente.
Os textos de O mundo é diferente da ponte pra cá: Crônicas do Solimôes se constituem como um verdadeiro convite à fruição lírica e poética, sobretudo quando se consideram que seus autores são estudantes do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal de Belo Horizonte situada na periferia da Zona Norte. Os textos abordam com beleza e crueza a realidade do espaço em que vivem e cumprem um dos princípios fundamentais da crônica e do cronista: observar o cotidiano, registrá-lo de modo a torná-lo digno de reflexão crítica e estética, uma vez que a vida comum é reinterpretada literariamente.
A prática pedagógica da professora Angélica e as crônicas[1] de seus estudantes são uma luz e um sopro em tempos de tanto obscurantismo social, político e pedagógico. Tal trabalho é, para além da possibilidade de fruição e deleite com a leitura, um importante apontamento de construção de caminhos possíveis para a construção de práticas pedagógicas de letramentos que oportunizam que os alunos tornem-se leitores e produtores proficientes de diferentes textos e gêneros textuais, bem como cidadãos conscientes, capazes de intervir criticamente no mundo e na realidade em que vivem.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular (BNCC): Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília, DF, Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 06 ago. 2022.
SOARES, Magda. Ler, verbo intransitivo. In: MARTINS, Aracy et al (Org.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2008.
[1] A revista pode ser acessada no link Crônicas 9 ano FF.pdf
SANTOS, Eliéverton Cristiano dos. Indicação de leitura: O mundo é diferente da ponte pra cá: Crônicas do Solimões (org. Angélica Ferreira). Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número 29, junho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
Imagem de destaque: Angélica Ferreira (2023)