Figura 1

Uma pedagogia de gênero latente na educação das crianças pequenas

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Sandro Vinicius Sales dos Santos

Graduado em Pedagogia pelo Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira – Fundação Helena Antipoff. Especialista em Docência Na educação Infantil, Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Tem experiência de mais de dez anos como docente na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais. Atua na formação de professores em educação infantil e tem se dedicado a pesquisar os sentidos produzidos pelas crianças sobre os processos de socialização por elas vivenciados. É autor do livro: Crianças e Educação Infantil: Ampliação e continuidade das experiências infantis em contextos de cuidado e educação (Paco Editorial) e de inúmeros artigos publicados em periódicos da área da educação.

E-mail: sandrovssantos@gmail.com

Em minha dissertação de mestrado, na qual objetivei compreender os sentidos produzidos pelas crianças de quatro anos sobre a experiência de frequentar uma Instituição Pública de Educação Infantil, paulatinamente, percebi que meninos e meninas se apropriavam dos espaços de modos distintos.

Vamos tratar aqui do espaço de um parquinho instalado em uma escola e do modo de brincar de crianças pequenas no espaço escolar. A instituição tomada como referência, em função da topografia acidentada do terreno no qual fora construída, tem o parquinho dividido em dois ambientes: um situado logo na entrada da instituição, e outro localizado mais ao fundo. Questiono, então, os modos como os espaços de uma instituição de educação infantil são organizados, para trazer às claras as pedagogias ali empregadas (HORN, 2004). Assim, dando voz às crianças e visibilidade às suas ações, foi possível identificar e problematizar a presença de roteiros de gênero (CARVALHO; ISMAEL; MELO, 2008).

No âmbito dos estudos da área da Educação Infantil, a organização dos espaços tem se conformado como uma categoria pedagógica importante nesta que é considerada a primeira etapa da Educação Básica. Desse modo, o espaço é compreendido a partir da articulação de diferentes dimensões, entre as quais se destacam: “a física, a funcional, a temporal e a relacional, que, quando articuladas, o legitimam como um elemento curricular” (HORN, 2004, p. 35). Nesse sentido, é preciso diferenciar as categorias espaço e ambiente. Enquanto o espaço comporta a objetividade e a intencionalidade pedagógica, o ambiente traz em si toda a subjetividade dessas relações. Desse modo, espaço e ambiente não devem ser vistos de forma dualista, mas como um todo indissociável

[…] de objetos, de odores, de formas, de cores, de sons e de pessoas que habitam e relacionam-se dentro  e uma estrutura física determinada que contém tudo e que, ao mesmo tempo, é formada por elementos que pulsam dentro dela como se tivessem vida (HORN, 2004, p. 35).

Existe uma pedagogia gendrada (CARVALHO; ISMAEL; MELO, 2008), distribuída ao longo dos espaços das instituições, composta de roteiros com prescrições de modos subjetivamente visados de ser menino e menina, configurando uma pedagogia organizacional (implícita em algumas situações e explícita em outras). Trata-se de um conjunto de representações de gênero que são difundidas de modo silente nos espaços e nos ambientes da Educação Infantil.

PEDAGOGIAS LATENTES DE GÊNERO 

Cotidianamente, as crianças deixavam a sala de aula para brincar no parquinho por volta de 08h40min e permaneciam nesse espaço por aproximadamente uma hora; havia uma escala que as fazia alternar entre usar o ‘parquinho de cima’, duas vezes por semana, e o ‘parquinho de baixo’, nos outros três dias. A identidade de gênero das crianças atravessava a rotina de uso e de preferências por esses espaços, o que só foi possível de ser descortinado por meio de um sistemático cruzamento entre dados de pesquisa provenientes de diversos instrumentos, entre os quais podemos citar: as entrevistas com as crianças, as notas em caderno de campo, os desenhos e as fotografias produzidas por elas (articuladas com suas falas).

Um dos objetivos da pesquisa em questão era investigar os espaços que as crianças mais gostavam na instituição, de modo a evidenciar as possíveis relações com as experiências por elas vividas nesses espaços. Quando perguntadas sobre quais experiências, situações e momentos vivenciados na instituição de que elas gostavam, brincar foi a situação de maior recorrência:

“Eu gosto é de brincar! Isso eu gosto mesmo.” (Carina – 07/08/2012).
“Brincar! De pega-pega com Márcio!” (Jonas – 06/08/2012).
“De quando usa brinquedo!! (Marcus – 06/08/2012).
“Aqui é bom pra brincar! Brincar com as crianças todas.” (Paula Beatriz – 01/08/2012).

No âmbito dos desenhos produzidos pelas crianças, a predileção pelas brincadeiras também apresentou grande recorrência:

Figura 1 – Desenho de Jéssica (4 anos)

figura-1Fonte: SANTOS, 2013.

Este é o diálogo sobre o desenho produzido pela criança (FIGURA 1):

Pesquisador: – O que você desenhou?
Jéssica: – Essa sou eu e esse é o Júlio!
Pesquisador: – E o que vocês estão fazendo?
Jéssica: – Brincando!
Pesquisador: – E você gosta de brincar?
Jéssica: – Eu adoro brincar! (SANTOS, 2013).

Figura 2 – Desenho de Márcio (4 anos)

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Fonte: SANTOS, 2013.

Este é o diálogo sobre o desenho produzido pela criança (FIGURA 2):

Márcio: – Deixa eu te mostrar meu desenho agora?
Pesquisador: – Claro, me mostra!
Márcio: – É a Jéssica! Ela está no parquinho correndo!
Pesquisador: – E você? Não está correndo com ela?
Márcio: – Não! Eu fiquei sentado descansando! (SANTOS, 2013).

Os parquinhos da instituição foram apontados como os espaços que mais satisfaziam os deleites das crianças, uma vez que elas correlacionam o uso dos espaços aos fazeres e vivências específicas que neles se desencadeavam (SANTOS, 2015; 2013). As fotografias das crianças também elucidam essa afirmação:

Fotografia 1 – Foto produzida por Maria Clara (4 anos)

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Fonte: SANTOS, 2013.

Diálogo entre a criança e o pesquisador sobre a Fotografia 1:

Pesquisador: – E quais são os lugares de que você gosta?
Pesquisador: – E o que você gosta de fazer lá?
Maria Clara: – Brincar de casinha com as meninas!
Pesquisador: – E os meninos não brincam?
Maria Clara: – Brinca! Mas é mais as meninas! (SANTOS, 2013).

Fotografia 2 – Foto produzida por Gabriel (4 anos)

fotografia-2

Fonte: SANTOS, 2013.

Diálogo entre o menino Daniel, de 4 anos, e o pesquisador acerca da Fotografia 2:

Pesquisador: – E quais são os lugares da escola de que você gosta?
Gabriel: – O parquinho!
Pesquisador: – Qual deles?
Gabriel: – Do parquinho debaixo!
Pesquisador: – Por quê?
Gabriel: – Porque lá, no debaixo, tem um escorregador grandão. Legal demais! (SANTOS, 2013).

Percebe-se no conteúdo das fotografias produzidas por Maria Clara (FOTOGRAFIA 1) e por Gabriel (FOTOGRAFIA 2) que os aparelhos de maior tamanho e imponência dos dois espaços (a casinha no ‘parquinho de cima’ e o escorregador no ‘parquinho de baixo’) marcam as preferências de meninos e de meninas. Desse modo, percebe-se que os brinquedos e as brincadeiras são apropriados pelas crianças

[…] como ícones, por meio do quais são acionados, dentre outros valores, os referenciais de gênero que vão sendo introjetados / construídos, no imaginário infantil, de acordo com as formas de acesso e os usos dos brinquedos (BARRETO; SILVESTRI, 2005, p. 3).

No âmbito das entrevistas, tornou-se visível a distinção entre a preferência de meninos e meninas nos dois parquinhos. Quando perguntamos às crianças sobre quais espaços da UMEI de que elas mais gostavam, meninos e meninas concederam-nos respostas discrepantes:

[Meninos]
“Eu gosto tanto do parquinho de baixo! Por causa do velocípede! Eu ando de velocípede todo dia!” (Jonas – 06/08/2012).
“Parquinho de baixo! Porque eu fico me divertindo lá! Jogo bola, ando de velocípede e fico no escorregador com meus amigos!” (Gabriel – 01/08/2012).
“Eu gosto da sala de aula e do parquinho [de baixo]! Por causa do escorregador que tem lá! Tem um escorregador grandão!” (Marcus – 06/08/2012).
[Meninas]
“Eu gosto do parquinho! Porque aqui a gente pode brincar na casinha!” (Maria Clara – 07/08/2012).
“Parquinho de cima! Por causa da casinha!” (Ana – 06/08/2012).
“Eu gosto dos parquinhos por causa dos brinquedos.” (Carina – 07/08/2012).

Reitero: as experiências das crianças na Educação Infantil se conformam por meio das trocas que elas realizam simultaneamente com os espaços, os ambientes, as pessoas que ali se encontram (SANTOS, 2015). Nesse sentido, a ação das crianças nesses dois espaços, dadas as diferenças organizacionais desses lugares de referência, também se alternavam sob a perspectiva de gênero:

Após o desjejum matinal, as crianças descem para o parquinho de baixo. Nesse espaço, pude perceber diferenças nos modos delas brincarem. No parquinho de cima, que é menor em termos de espaço e dispõe de aparelhos um pouco mais aconchegantes, as crianças brincam em grupos maiores, quase não se separam por gênero; correm menos. Já no parquinho de baixo, espacialmente maior e com aparelhos mais desafiadores, as crianças quase sempre se separam por gênero e brincam em grupos menores, às vezes pares e até sozinhas. (SANTOS, 2013. Caderno de campo – 07/06/2012).

Fotografias 3 e 4 – As crianças brincando no ‘parquinho de cima’ da UMEI

                                                         fotografia-3fotografia-4

Fonte: SANTOS, 2013.

 Fotografias 5 e 6: As crianças brincando no ‘parquinho de baixo’ da UMEI

                                                         fotografia-5fotografia-6

Fonte: SANTOS, 2013.

Se no ‘parquinho de cima’ (onde predomina a casinha) a organização dos brinquedos pressupunha uma conotação mais intimista, as crianças atuavam em grupos heterossociais, meninos e meninas brincavam juntos (FOTOGRAFIA 3; 4), quando se encontravam no ‘parquinho de baixo’ (onde o escorregador sobressai), as crianças brincavam em grupos menores e em relações homossociais – meninas com meninas; meninos com meninos (FOTOGRAFIA 5; 6).

E O QUE CONCLUIR?

Percebe-se que de modo silente e fluido, uma profusão de discursos de gênero (que disseminam modos de conformação de masculinidades e feminilidades) se espalham na distribuição dos parquinhos da instituição. Isso permite questionar: como são organizados os espaços de educação infantil na perspectiva dos estudos de gênero?; como tais espaços têm contribuído para as produções simbólicas de meninos e meninas sobre as relações de gênero? Esses questionamentos indicam a necessidade de novas pesquisas que busquem compreender melhor os significados construídos pelas crianças nos usos e apropriações que fazem dos espaços da Educação Infantil. Discussão esta que necessita estar na agenda de debates de professores e pesquisadores da área.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BARRETO, F. de O.; SILVESTRI, M. L.. Relações dialógicas interculturais: brinquedos e gênero. REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 28., 2005, Caxambu, MG. Anais eletrônicos… Disponível em: <http://28reuniao.anped.org.br/textos/ge23/ge23943int.pdf>. Acesso em: jun. 2014.

CARVALHO, M.; Ismael, E.; MELO, R. Roteiros de gênero: a pedagogia organizacional e visual gendrada no cotidiano da educação infantil. REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 31., 2008, Caxambu. Anais… Disponível em: <http://31reuniao.anped.org.br/1trabalho/GT23-3953–Int.pdf>. Acesso em: jun. 2014.

HANISH, L. D. et al. Gênero: socialização inicial. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância. UNICEF: 2013. Disponível em: <http://www.enciclopedia-crianca.com/sites/default/files/dossiers-complets/pt-pt/genero-socializacao-inicial.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2016.

HORN, M. G. S. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004.

SANTOS, S. V. S. Crianças e Educação Infantil: ampliação e continuidade das experiências infantis em contextos de cuidado e educação.  Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

SANTOS, S. V. S. dos. A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade – a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil. (2013).  Dissertação. (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.

UNIVERSIDADE VIRTUAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – UNIVESP. Organização do Espaço e do Tempo – Legislação, pesquisas e práticas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Gdg2j_Y-BsQ>. Acesso em: 19 ago. 2016.

This Post Has 4 Comments
  1. Meu amigo, Sandro!

    Seu texto, como sempre, é exemplar para o entendimento das sutilezas presentes nas relações estabelecidas nas instituições de educação infantil espalhadas por todos os cantos desse nosso país. É preciso dizer, em alto e bom tom, que há muito ainda o que desvelar nas relações sociais que ocorrem no interior das instituições escolares no que diz respeito às questões de gênero. Sabemos muito pouco. São trabalhos de pesquisadores como você que nos ajudam a entender os meandros dessas relações. Conforme você mesmo diz, se existe muitas pesquisas sobre a questão racial no campo da educação infantil, há, ainda, muito o que se pesquisar sobre as relações de gênero neste mesmo campo. Sem esquecermos do que diz nosso amigo Waldiney, “vamos tocando o barquinho!”

    Abraços e parabéns!

    Joaquim

    1. Meu caro amigo Joaquim,

      Como é bom termos um espaço de reflexão coletivo e um fórum de debates educacionais como a RBEB!
      Penso que em tempos de desmonte de políticas públicas e de perda de direitos historicamente conquistados, uma revista como esta se torna uma ferramenta de mobilização e empoderamnto dos/as docentes da educação básica.
      Assim como fiz no comentário de Luciene, reitero o convite para publicação de um texto de sua autoria na RBEB – que com certeza nos brindará com uma reflexão critica sobre os rumos da Educação em nosso país.

      Abraços, fraternos!

      Sandro

  2. Boa noite,
    parabéns pelo artigo que de um modo claro e objetivo nos faz perceber como as crianças experienciam os espaços escolares. Sou professora de educação infantil na rede pública do Rio de Janeiro e confesso que ainda não conhecia o termo homossociais. A partir desta leitura possivelmente terei outro olhar sobre o modo como o espaço escolar em que trabalho se organiza. Entendo a importância de as crianças saberem o que de fato são: menina e menino, neste caso, sou a favor da pedagogia de gênero. Gostei muito de conhecer esta revista. Obrigada!

    1. Oi Luciene,

      Que bom que o texto lhe sensibilizou para esta questão que considero ser tão relevante e atual.
      No caso da educação infantil, tenho percebido que existe toda uma “arquitetura de gênero” que se estende da organização visual da escola (por meio de cartazes e diferentes marcadores visuais) até o projeto arquitetônico (que no caso desse relato, está presente na divisão entre os parquinhos, mas que também se expressa na divisão/separação entre os banheiros, entre os usos dos tempos e dos espaços da educação infantil). Isso faz com que profissionais e pesquisadores/as da área tenham de refletir e debater sobre a questão.
      As expressões “relações homossociais” e “relações heterossociais” foram cunhadas por Manuela Ferreria – pesquisa da da infância de Portugal – e visam diferenciar as relações que as crianças estabelecem entre seus grupos de gênero (meninos com meninas; meninas com meninas) e as relações vivenciadas por elas em grupos mistos (meninos com meninas).
      Por fim, fica aqui o convite para que você também traga relatos, resultados de pesquisas e estudos ou reflexões sobre a prática pedagógica em forma de texto, pois, como é de conhecimento amplo, a RBEB se configura como um espaço de reflexão docente feito por professores/as e para professores/as.

      Abraços,

      Sandro Santos

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